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A minha Força Aérea - Os Cavaleiros Guardiões do Império


Esta é uma história de Cavalaria passada num Império, fictício.


Uma Epopeia dos Falcões nos idos dos anos 60 do Séc. XX









Como se sabe não há Império que dure sempre e na verdade onde haveria um Império em pleno Século XX cujo território se espraiasse por todos os grandes Oceanos da Terra?

Onde existisse um país espalhado por três Continentes diferentes?

É pois uma ficção cujos personagens, os Cavaleiros Guardiões desse Império, eram admirados e acarinhados pelo povo que no entanto vivia subjugado por uma ditadura.




E como acontece sempre...


Um dia... o Império, puf!... Ruiu.















Como em Roma, como na Pérsia, como em Moscovo até.

E os novos pequenos guardiões do pequeno país que sobrou reescreveram a História, apagaram todos os vergonhosos feitos do passado que assim deixou de existir e inventaram, num pequeno território, algo que pretendem ser um país como alguns outros.

Reescreveram-na de tal maneira que levaram o povo a considerar que o facto mais importante de toda a sua História foi o 25 de Abril! Sondagem de Abril de 2014 no jornal Expresso



Isto também é uma ficção, claro.



Mas aqueles feitos desta fictícia história de Cavalaria que vos quero contar, para que a percebam melhor, necessitam de um ambiente geo-referenciado (eu, mesmo Reformado, também tenho um smartphone... já o tinha, senão…).

Mas não se esqueçam que é somente uma História de Cavalaria, passada num tempo em que a Guerra varria o Império, época de muitos heroísmos, de muitas traições também.


Naquele tempo...


Os Cavaleiros estavam em plena época de treino na Carreira de Tiro de Alcochete.

Eram pilotos dos aviões a jacto mais evoluídos daquela nobre Confraria a que ainda chamamos, com muita honra, a Força Aérea Portuguesa, que existia naquele tempo e que nos dias de hoje continua a ser uma referência de bem-fazer, de bem servir.

Eram, como hoje ainda são, os Falcões.

Aqueles Cavaleiros guardiões volta e meia juntavam-se em grandes banquetes, alguns memoráveis, fora do Palácio dos Falcões onde habitavam, como este banquete de que vos dou notícia porque o li num amarelado pergaminho que consultei numa noite de muito frio, à lareira, com o meu gato Arnold ao colo. O Silvester não é muito de colos…

E vendo melhor, pode ser que eu também lá tenha estado…
 

Naquele dia os Falcões escolheram uma adega particular perto de uma praia com um grande promontório onde reza a história um outro Cavaleiro, D. Fuas Roupinho (atenção aos mais novos: este existiu mesmo… já não vos ensinam, eu sei) uns bons 784 anos antes, ao raiar do dia 14 de Setembro de 1182, na perseguição a um veado, travou a montada mesmo na beirinha de um precipício após uma breve prece à Virgem Maria:

- Senhora! Valei-me!











Ainda hoje se pode ver no Sítio o resultado daquela travagem milagrosa.

Até deve ter feito faísca, para marcar assim a rocha…

Pois tudo isto fica muito perto do actual
Castelo dos Falcões daqueles nobres Senhores.





Correu bem o repasto que era pago com o soldo dos nobres Cavaleiros. Ou melhor, era pago com as multas, em "bicadas", que lhes eram aplicadas por um qualquer deles quando alguém considerava que um dos Cavaleiros tinha cometido uma asneira.

E, como em Hollywood, aqueles banquetes nem sempre acabavam bem, nem sempre eram muito certinhos...

Àquele almoço, onde como era da praxe também compareceram o Falcão Mor e o Grande Comandante, acabou com os habituais prolongados discursos inflamados, desta vez em cima dos avantajados tonéis de vinho da adega, no meio de uma enorme vozearia onde ninguém ouvia ninguém mas todos concordavam com todos.


Nobre gente...











Acabado o almoço, reconfortados de fartos sólidos e imenso líquido, subiram às montadas e dirigiram-se para a praia onde muitos anos depois, ali mesmo ao lado o também famoso Cavaleiro Mc Namara cavalgou com grande mestria um grande monstro de mais de 20m de altura.




Não me digam que não gostam de Mitologia…


Lendárias paragens, estas. Recheadas com todas estas nobres histórias de Cavalaria...

Um lugar mágico, certamente.


Chegados ao grande largo junto à praia, o magnifico Promontório à direita, no meio daquele lugar muito concorrido pelos muitos forasteiros que naquele sábado saboreavam o Sol do fim da tarde, os nobres Cavaleiros escolheram um espaço no meio da mais concorrida das esplanadas e juntaram as mesas suficientes onde coubessem todos.

Mas faltava ainda o Grande Comandante (que se atrasara, vá-se lá saber porquê…) Que o era não só dos Cavaleiros, mas de todo o Castelo a que os Falcões pertenciam. Um nobre cujos feitos memoráveis em combates pelas Terras do Demo lhe tinham valido duas promoções sucessivas.


Juntadas as mesas, esperaram sossegadamente por ele. Chefe é chefe e sem ele, nada!



Até que…

  - Mas o que é isto?! 
 - O que é que vem a ser isto?!
   Berrou o espantado empregado de mesa, toda a esplanada a ver, incrédula.
 
 - Isto o quê?!
 - As mesas!
 - O que é que tem?
 - O que é que tem?!… O que é que tem? Quatro mesas em cima umas das outras???!
 - E acha que cabíamos numa só?
 - Mas em cima umas das outras?!
 - E atão?!
 - Não vos sirvo nada!




E desandou, felizmente para ele...




      Era exactamente assim a esplanada.
      Os Nobres Cavaleiros estavam montados nas cadeiras na parte de cá desta iluminura...





Ao redor de toda a praça começa a juntar-se gente. Principalmente o bom povo daquela nobre terra de pescadores.

Perante coisa nunca vista…

Afinal havia quem, à luz do dia, no meio da rua, afrontasse a podre normalidade daqueles tempos.

Havia quem afrontasse a ordem Superior e Divinamente estabelecida naquela ditadura.

Eram certamente seres poderosos. Só podia… e como tal o que é que mais poderia acontecer…

O silêncio começou a pesar. Quem serão estes... Pensava aquela muita gente já temente do que de desconhecido poderia ainda vir.

E eis que finalmente aparece o Grande Comandante, muito calmo sempre de semblante carregado e a dar-se conta daquela grande agitação em torno dos seus Cavaleiro Falcões!


 - O que é que se passa aqui?
 - Senhor Comandante, juntámos as mesas e o empregado diz que não nos serve o café!
 - Como?!
 - Não nos serve o café... foi o que ele disse!
 - Vamos já buscar a máquina do café!


Manda quem pode…


Os Nobres Cavaleiros levantaram-se todos de supetão, obedientemente como convinha e meia esplanada também!

Ui...

O dito café, á direita na iluminura, era antes um moderno snack-bar com toda a fachada em vidro. Óptimo écran para reproduzir completamente as muitas caras coladas, esborrachadas, a ver no que aquilo ia dar lá dentro…

No interior, poucos clientes, 2 ou 3, assistiam calma e silenciosamente.
Sentados ao balcão, aqueles bem vestidos e apessoados Cavaleiros em alegre convívio como se estivessem no Bar da Messe dos Oficias, pediam, com muitas palmadas no tampo:

 - Queremos café! Queremos café!

 - Não sirvo café a ninguém, respondia o indignado proprietário!


A montra já não tinha espaço para mais caras esborrachadas de atónitos cidadãos, na maioria autóctones, que estavam em pleno Reality Show.

 - Queremos café! Queremos café!

 - Vou chamar um polícia!


 - Olhe que um não chega! Tem de chamar mais...


E finalmente lá veio a Polícia da Esquadra ali perto. Mandaram dois ou três Agentes para controlar o motim.

A legítima autoridade presente tentou algemar um dos Cavaleiros que começava a asneirar em demasia mas o Grande Comandante agarrou-o por um braço e logo de seguida foram todos gentilmente convidados a seguir em procissão pela esplanada fora, para a Esquadra, custodiados pelos Agentes.

Em fila indiana. A furar literalmente através de um estreito corredor que se ia abrindo no meio de uma multidão que aplaudia em delírio, vibrantemente!

Simplesmente inacreditável mas só possível nesta ficção de Cavalaria Medieval…

É por isso que passei a respeitar ainda mais as gentes do mar. Nobre gente desta destemida Nação!

Chegados à esquadra com o “prisioneiro” de braço dado ao Grande Comandante, o guardião daquela unidade policial acedeu gentilmente que remédio permitir que o Grande Comandante, que se identificou verbalmente, fosse ao Castelo dos Falcões ali tão perto buscar as credenciais que o identificavam oficialmente.

O asneirento Camarada ficou como refém dentro da Esquadra.

Foi a mais sensata das soluções... Já que todos os demais Falcões se sentaram em amena cavaqueira nas altas escadas daquela Esquadra, completamente cercados por uma enorme multidão de intrigados mas alegres e vibrantes cidadãos daquela vila que no entanto aparentavam estar mais dispostos a dar a vida por eles do que a defender a autoridade e o bom nome locais.

Pelo menos parecia que ameaçavam isso... E na Esquadra a adrenalina subia.

E quando as coisas se podem complicar ainda mais, é certo e sabido que se complicam mesmo.

Nem 15 minutos depois aparece no largo um pequeno carro de matrícula francesa com um desvairado citoyen aos berros também.

Uma perfeita loucura aquele fim de tarde…

E declarou o seguinte, ao atónito Comandante da Esquadra:

- Fui abalroado por um Volkswagen preto! Ali mesmo à entrada da Vila! A matrícula do carro começa por "AM" (de Aeronáutica Militar, já se vê…) e o gajo… o gajo, veja lá, foi-se logo embora e ainda me mandou à merda!

O desgraçado do Comandante da Esquadra começou a arrepender-se e a ver a vida a andar para trás...
E com toda aquela ameaçadora gente ali mesmo à frente, do nosso lado, a torcer por nós.

Passada mais meia hora de grande emoção para todos os sitiantes e de completa descontracção entre os Falcões lá aparece um "novo" Comandante, agora devidamente fardado, ostentando discretamente (…) no peito os símbolos que a Nação achara por bem, por duas vezes, outorgar-lhe pelos muitos actos de bravura cometidos para com a Pátria. Promovido por distinção, sucessivamente a Ten Coronel e a Coronel...

Um pequeno intervalo para eu explicar melhor quem era este Senhor:

Em plena boda do casamento de um seu Camarada que viria a ser General (Galvão de Melo) este agora Comandante do Castelo dos Falcões, impecavelmente fardado, com a farda de gala, andava com um elegante prato com um enorme e delicioso bolo coberto de chatilly que oferecia às senhoras.

As que aceitavam ficavam com um bonito e farfalhudo bigode branquinho...

Voltando novamente àquela Esquadra da Polícia.

Após uma breve e protocolar conferência, as duas entidades soberanas da Nação ali representadas apertaram civilizadamente as mãos e tudo se resolveu com galhardia (não faço a mínima ideia do que teria realmente acontecido entre eles...)

Povo e guardiões da Pátria puderam assim voltar à sua vida rotineira.

Incluindo o asneirento Cavaleiro.

Ok…Falta o francês. Não me esqueci.

Este foi informado das circunstâncias e convidado a comparecer no dia seguinte no ninho dos Falcões para um almoço, pelo Grande Comandante.

E lá apareceu na manhã seguinte.

Enquanto comia umas coisas e bebia muitíssimo mais do que devia (é para aprenderes…) o seu pequeno carro foi completamente restaurado e ficou como novo.

Ao sair, o agora imensamente feliz citoyen e a sua gentil esposa tiveram de ser cuidadosamente acompanhados até à porta de armas não fosse ele falhar a pontaria entre os grandes portões, e com uma bela história para contar aos netos.

Isto podia ter ficado por aqui, não fosse a mania do costume de algumas pessoas não se conformarem por não ficarem nas fotografias.

Poucos dias depois o nosso Comandante irrompe no Palácio dos Falcões de semblante carregado como de costume e com um papel na mão que exibia ameaçadoramente. Percebia-se logo que o assunto era sério.

E dirigindo-se ao Falcão Mor, que era o Cavaleiro alado que comandava todos aqueles gentis-homens (em francês ficava mais bonito mas ninguém ia perceber-me) disse mais ou menos isto, a memória já me falha:

- Recebi esta carta do Presidente da Câmara daquela Vila a denunciar o comportamento dos seus subordinados naquela tarde. Queira agir em conformidade.

E foi-se… Sem mais palavras.

Cá se fazem, cá se pagam.

Como dizia o saudoso Vitorino Nemésio, se bem se lembram, eu disse lá mais atrás que quando esta ficção começou os Falcões estavam em plena época de tiro na Carreira de Tiro de Alcochete.


Torre de controlo da Carreira de Tiro





Como guerreiros que eram, as artes de tiro ao alvo com bombas rockets e metralhadoras, montados naquelas bem ajaezadas supersónicas montadas, tinham de ser praticadas nalgum sítio. Ele ainda hoje existe e no mesmo lugar. Onde o “Jamais” quis construir o eterno futuro Novo Aeroporto de Lisboa. Em Alcochete.

A propósito, eu tenho, tenho mesmo! um grosso livro com um estudo sobre esse futuro novo aeroporto, datado de 1972. Idade Média, claro…




Aquelas belas montadas descolavam da Base Aérea que fica a um curto galope do Castelo onde D, Dinis e a Rainha Santa Isabel viveram. Um muito belo Castelo… mandado construir pelo trisavô, o fundador do Reino.












Sentados naquela magnífica varanda virada para o rio Lis, o nosso Rei Lavrador e a Rainha Santa mandaram ajardinar tudo aquilo lá para trás com milhares e milhares de pinheiros (diz-se que foi o Rei mas sabe-se como são as Senhoras em questões de plantinhas) para, entre outras coisas, terem matéria-prima para construir as naus que a Coroa mais tarde mandou à Descoberta de tudo aquilo e que agora a República perdeu, ou entregou ou devolveu, uma coisa dessas.

Não interessa agora.



Cá se fazem cá se pagam e o que é que se pagou pelos sucedidos naquela tarde?

O Falcão Mor ordenou que «todos as supersónicas montadas, na ida e na volta de Alcochete, sobrevoassem aquela simpática vila a rapar os telhados».


A RAPAR OS TELHADOS!!!


Foram as suas ordens. Como castigo…

E foram umas dez parelhas de máquinas que durante uns dias passaram por ali duas vezes, na ida e na volta, cada uma.

A rapar os telhados.

Acho que ainda sei quantas telhas tem cada casa…

O Presidente da Câmara deve ter-se dado por satisfeito, mas ao menos podia ter agradecido. Nem uma palavra…

E pronto, acaba aqui esta fictícia história muito adequada para estas noites agora frias de Primavera.










(Actualizada em 11 de Novembro de 2021)




A minha Força Aérea - Alferes Rica


 







Uma Homenagem a um jovem Camarada prematuramente perdido











A gabardina em Terylene forrada a espuma sintética, bege clarinho, a última moda e muito cara, era à estreia...

Tinha-a comprado nesse dia e estava agora transformada num instrumento de degranhar o milho, de subelar as espigas, tanto que batia com ela furiosa e repetidamente no chão...



O jantar mensal da Esquadra 51, dos pilotos de F-86 em Monte Real, tinha corrido como sempre muito bem, demasiado bem, digo eu… e ali estávamos nós agora no Bar da Messe dos Oficiais da Base Aérea Nº 5 para o grande rescaldo do costume...

Estas coisas passaram-se em 1965/66, em ambiente de preparação de pilotos para a Guerra do Ultramar, num país fortemente condicionado para tal. Em ditadura. E onde ser militar era ainda um bem precioso para a Nação.

Já era a segunda ou terceira vez nessa noite que voltava a malhar milho, depois de os meus camaradas me terem metido à força na cama várias vezes por causa de uma minha enorme incapacidade acidental para me manter na vertical…

Enquanto desfazia a gabardina à estreia contra a calçada frente à Messe, na ausência de milho verdadeiro, chorava copiosamente e todos os meus camaradas sabiam o que me estava a acontecer:



- Muito poucos dias antes o Alferes Rica tinha sido vítima de um fatal
acidente de viação no seu pequeno Morris vermelho, descapotável.



Na Força Aérea sempre me senti um privilegiado. Fiz alguma coisa por isso, claro, mas fui sempre muito amparado, muito protegido, beneficiando de muitas oportunidades que agarrei avidamente.

Comecei por ter sido brevetado em T-6 pela Força Aérea Espanhola em Salamanca. Só depois o fui em Sintra, há meio Século... a comemorar este ano de 2012 no Palácio da Base Aérea de Sintra.

Convidaram-me depois a frequentar o Curso de Piloto de Caça, em aviões a jacto T-33 na Ota. Foi o primeiro curso na nossa Força Aérea em moldes totalmente Americanos. E no fim… o F-86 onde cheguei à Esquadra dos Falcões, acabado de ser promovido a Furriel.

Aqui, depois de me ter sido dado o curso ficaram à espera que digerisse o resto que me cabia estudar, sozinho, o tempo que eu considerasse necessário. O camarada anterior tinha sido devolvido ao remetente ao fim de 6 meses de boa vida e nenhum empenho.

Pois eu, em 15 dias, apresentei-me ao meu Comandante de Esquadra, Major Moreira e declarei-me pronto a voar naquele avião, o F-86, que era supersónico (em condições especiais) e monolugar ou seja teria de o voar sozinho sem ninguém a ensinar-me ao meu lado, dentro do avião…

Foi grande o seu espanto e logo ali ele, sentado à secretária e eu de pé à sua frente, me fez um exaustivo exame sobre um variado leque de matérias. Técnicas, de segurança e outras.

Nessa mesma tarde aprendi naquele fantástico avião a manobrá-lo no chão, com o instrutor encavalitado em cima da asa e eu a executar o que ele me dizia aos gritos, por causa do barulho do reactor.
 

Um grande instrutor, o Carvalhão!


E no dia seguinte estava a fazer o meu primeiro voo num avião que poucos dias depois me levou a bater a Barreira do Som!

Eu, o Ary e o Leite da Silva (um malandro que nos deixou há pouco, rumo às estrelas), o cocó o ranheta e o facada, a ordem dependia das asneiras que fazíamos, já andávamos nisto desde 1962 e chegar aqui foi um grande feito para nós, tão pouco graduados no meio de gente tão ilustre. Que olhava para nós com alguma natural desconfiança e expectativa, mas com toda a solidariedade.

Os senhores Tenentes pilotos nossos superiores pareciam-nos de outra galáxia. Os Sargentos-Ajudantes, mais próximos, tinham sempre um dedo apontado a nós: “Portem-se bem, senão…”

E tudo corria muito bem até que somos informados que uma nova leva de pilotos estava a chegar.
Pilotos da Academia Militar.

Imaginámos o que nos iria caber, agora que já estávamos encaixados naquela estrutura, com jovens Oficiais da Academia Militar a confrontarem-se connosco, nós mais antigos na Base, mais experientes mas de uma condição militar muito inferior.


Mas isto passava-se num tempo e num lugar que hoje parece mais ficção que realidade.


Nós os três, abaixo de Sargentos, fomos encarregues de dar instrução àqueles jovens pilotos Top Gun, acabados de sair da Academia.

Ao mesmo tempo que nos divertíamos imenso a ensiná-los a voar Chipmunk e Super Cub (é melhor não falar muito no que se fazia…) também íamos para o ar, em parelhas de F-86, para lhes dar a qualificação de Comandantes de Parelha.

Ou seja, à chegada à Esquadra, de manhã, batíamos a pala aos nossos superiores e depois íamos para o ar, eles a obedecerem às nossas instruções como mais qualificados que nós éramos. No fim do debrieffing saía mais uma palada nossa de despedida.

Este era o ambiente em Monte Real, anos 60 do Século XX.

Um dia cabe-me levar o Alferes Rica num voo de instrução que acabaria com manobras de aproximação e aterragem à pista da Base, às cegas, só com apoio radar, até ao chão. o GCA (Ground Controlled Aproach, um controlador fechado dentro de uma roulote junto à pista, a dar instruções de aproximação e aterragem pela rádio, frente a um grande écran).

No brieffing delineámos todas as manobras que se iam executar, estudou-se o quadro meteorológico, não muito famoso mas razoável, em que iríamos voar, a quantidade de combustível necessária e todos os itens pertinentes a uma missão que teria de ser executada com todo o rigor.

Nesse dia cabia ao meu aluno, o Alferes Rica, fazer de chefe e executar todas as manobras comigo no outro avião ao seu lado mas um pouco mais atrás, como se eu fosse o nº2 da parelha.

Como instrutor eu tinha o dever de lhe ministrar tudo o que sabia mas nunca descurando a segurança, ou seja, se algo corresse mal a responsabilidade era só minha e eu podia e devia assumir o comando da parelha em qualquer altura que entendesse.

E lá fomos para o ar, o Rica todo ufano no avião da frente, ele era o “chefe” e eu expectante mas confiante nele.






A missão compreendia umas quantas manobras iniciais em voo para apurar as capacidades de chefia de parelha e ao mesmo tempo descontrair antes das complicadas manobras de aproximação e aterragem sob controlo de radar, GCA, na nossa Base.

Já a grande altitude a situação meteorológica, contrariamente ao brieffing que nos tinham dado, alterou por completo os nossos planos.

Num instante a nossa Base “fechou” meteorológicamente e fomos encaminhados para pistas mais a sul, na zona de Lisboa. Pouco depois, para nosso espanto, fui também informado que as Bases de Tancos e da Ota, bem como Alverca e Lisboa estavam abaixo dos mínimos, impedindo qualquer tentativa de aproximação.

E como os homens só são postos verdadeiramente à prova quando tudo parece fugir do nosso controlo, as frequências rádio começaram a falhar. À medida que os minutos passavam fomos progressivamente ficando sem contactos rádio ao mesmo tempo que nos dirigíamos para Norte, confortáveis quanto ao combustível nos depósitos, mas sem saber onde aterrar…

Lembro-me que só tinha uma frequência rádio funcional de um qualquer interlocutor que tentava ser prestável mas que pouco podia fazer.

Entretanto eu como responsável pelo desenrolar dos acontecimentos começava a ter outro problema que para mim era não menos grave.

O meu aluno, que tinha o comando provisório do voo em si, estava a ficar, naturalmente, nervoso.

Quando falava eu ouvia perfeitamente a respiração alterada dentro da máscara de oxigénio, equipamento obrigatório neste tipo de aviões.

Não sei se as minhas palavras denotavam ou não o meu stress mas esforcei-me para lhe falar calmamente sem nunca o perder de vista, antes quase colado a ele, a 10km de altitude e a quase 500km/h.

E aí comecei a pensar que o melhor seria eu tomar os comandos reais da parelha…

Era fácil. Eu é que era ali o responsável perante o Comandante da Base e da Esquadra.

A Meteorologia impedia-nos de aterrar fosse lá onde fosse. As frequências rádio reduziam-se a uma única e não era de uma torre de controlo sequer. O meu aluno estava a ficar nervoso.


Faltava o quê para eu assumir o comando?


Faltava o respeito pelo meu aluno.

Faltava saber realmente se ele era ou não capaz de chefiar uma parelha numa situação de emergência.


E se eu assumisse o comando o que seria da sua auto-estima? Estaria a ajudá-lo? A formá-lo como piloto?

E se ele pensasse que eu queria pôr-me em bico dos pés perante ele? Não ajudaria ao reconhecimento da sua hipotética incapacidade de gestão da situação.


A 500km/h e sem pista onde aterrar não há lugar para grandes divagações.










 

O Rica tem de seguir à frente, decidi eu.

Enquanto isto se passava eu tentava falar
com mais alguém capaz de nos ajudar.





Já perto de Monte Real consegui contacto com o GCA mas não conseguia falar com os outros responsáveis do controlo da Torre ou da aproximação da nossa Base.

Ficou decidido que o Radar ia tentar levar-nos à pista que não estava operacional devido às condições meteorológicas. Mas a descida para o encontro da capacidade de alcance do Radar teria de ficar por nossa conta.

Éramos  os únicos aviões militares no ar, naquele momento...


O Rica continuava a respirar com algum nervosismo mas ia cumprindo o seu papel e eu seguia-o que nem galgo a uma lebre, controlando-o “à distância”, o que ele supunha não estar a acontecer.






Quando o GCA finalmente nos apanha no Radar e dá início a uma tentativa de aproximação à pista, o Rica aumenta os níveis de stress e eu baixo a voz uns tons a ver se consigo simular uma normalidade que de todo não existia.

Era talvez a nossa única oportunidade de colocar aquelas preciosas máquinas e os seus dois pilotos no chão, em segurança.

Asseguro-me de que o Rica cumpre escrupulosamente as instruções do radar e simultaneamente vou tentando ver se encontro algum vislumbre de terra, eu que estava confortável quanto à capacidade do Radar em nos guiar até a um ponto de decisão. Conseguir ou não ver a pista era um assunto para mais à frente…


Pouca conversa havia entre nós os três, o Alferes Rica, eu e o magnífico controlador do Radar.
Só o estritamente necessário para resolver aquela delicada situação, muito pouco habitual. 


Agora estamos já a chegar à nossa hora da verdade e o Rica continua a cumprir a sua função de futuro Comandante de Parelha...


E de súbito vejo finalmente a pista!



Mas como nunca a tinha visto!


Parecia que metade do Pinhal de Leiria tinha “aterrado” nela, tal era a quantidade de pequenos ramos de pinheiro aqui e ali plantados por algumas rajadas de vento não previstas no brieffing meteorológico que tivéramos há menos de uma hora.

Pedi ao Rica para não travar muito fortemente (uma tentação nestas emergências em que finalmente se vê a salvação à frente e o que se quer é parar "aquilo" rapidamente) e aterrei atrás dele como me competia.

Missão cumprida! O meu aluno cumprira integralmente o que seria de esperar de um chefe e eu cumprira bem o meu dever de o levar a assumir as suas futuras responsabilidades.

Estas coisas, quando se corre grande perigo e tudo acaba bem porque nós fazemos bem o que deve ser feito e ainda mais em equipa, levam a um grande aproximação entre as pessoas.

Quando finalmente nos encontrámos no chão, os aviões intactos e nós melhor do que nunca, as lágrimas a cair no meio de um forte abraço, em silêncio, percebemos que os nossos caminhos estavam inexoravelmente ligados.

Foi por isso que naquele jantar, poucos dias depois, eu não aceitei a ausência do meu Amigo Rica.

Foi por ele que naquela noite malhei tanto milho. Foi por ele que não consegui ficar na cama as vezes que tentaram deitar-me lá.



E é em sua memória que escrevo isto.




PS: a fotografia do Alferes Rica foi "colhida" por mim no painel onde estão todos os pilotos que passaram pelo Palácio dos Falcões, na Base Aérea N 5, em Monte Real, no último encontro dos Falcões, 4 de Outubro de 2017.




(Ultima actualização em 29 de Março de 2018)