Deus é Grande. Neste caso chamemos-lhe… Alá.
Em 1976, um ano após a descolonização e a Ponte Aérea, a frota da TAP continuava a ter 4 Boeings B747. Ultrapassavam em muito a nossa capacidade de os utilizar rentavelmente. Tanto avião para tão poucos passageiros… Não conseguíamos tráfego para tantos lugares oferecidos. A solução passou pela venda de dois aviões.
E foi assim que de Maio desse ano e até ao fim de Agosto, várias tripulações TAP deram assistência técnica em voo aos Pilotos e Mecânicos de Voo da Pakistan International Airlines, PIA, os felizardos que nos compraram os 2 mais modernos aviões da nossa frota de B 747. Eu fiz o último de todos esses voos e com uma história rocambolesca, que conto noutra história aqui.
É claro que os Pilotos paquistaneses a voar esses aviões eram os mais antigos e mais experientes.
Mas nem sempre humildes, no sentido de aceitarem alguns simples conselhos que os experientes Pilotos e Mecânicos de Voo da nossa companhia lhes davam. Com aquele espírito que nos caracteriza de tudo dar quando se trata de transmitir conhecimento.
Hoje a classe de Mecânicos de Voo, depois chamados Técnicos de voo ou simplesmente TVs, desapareceu com a informatização dos cockpits.
Grandes senhores, estes profissionais com quem eu privei nessa altura!
Os paquistaneses tinham feito o curso na Boeing e agora, a voar já largados e com passageiros pagantes, precisavam da nossa experiência para tornar mais eficiente e segura a complicada tarefa de executar os muitos procedimento que o avião exigia. Especialmente quando uma revolucionária tecnologia tinha sido implementada há pouco na Aviação Comercial. De seu nome a “Nova Tecnologia”.
Consistia na execução de todo e qualquer procedimento, normal ou de emergência, seguindo um checklist que era lido pelo Piloto que de momento não estava aos comandos e executado por ambos.
Contrariamente ao que antes se fazia e que levava a alguns acidentes: todos os procedimentos tinham de ser executados de cor, em voz alta, volta e meia aos berros, no meio do stress de uma emergência, com alguns itens vitais a ficarem, às vezes, para trás por esquecimento no meio de todo aquele nervosismo…
Era muita novidade junta e o nosso papel ali era orientá-los, ajudá-los.
E foi assim que numa bela manhã de Maio de 1976, logo num dos primeiros voos, ainda na Placa do Aeroporto de Londres, o nosso Comandante TAP quis explicar ao camarada paquistanês como devia utilizar correctamente o novo sistema electrónico de navegação que equipava aqueles magníficos aviões: o INS, Inertial Navigation System. Equipamento que eles nunca tinham utilizado.
O INS funcionava à base de acelerómetros. Na partida de um Aeroporto só tínhamos de lhe colocar as coordenadas do sítio exacto onde estávamos para ele conseguir navegar sem mais ajudas electrónicas externas. E tinha uma grande precisão. Ao fim de dez horas de voo o erro de posição era mínimo. Um equipamento que dispensava qualquer ajuda ou contacto via rádio ou por satélite. 100% autónomo, o que era uma enorme mais-valia.
Muito basicamente, para que tudo corresse bem, o que havia a fazer era introduzir no painel do instrumento, além das coordenadas da posição actual, as primeiras 9 coordenadas dos pontos que se iriam sobrevoar e que constavam do plano de voo entregue e aceite pelas autoridades aeroportuárias.
Nada mais simples e óbvio. O piloto automático encarregava-se de nos levar ao longo desses pontos introduzidos e assim sucessivamente ao longo do voo, por mais longo que fosse.
O que o nosso jovem Comandante TAP tentou explicar ao senhor Comandante paquistanês foi que numa descolagem, em que se sobrevoam várias posições espaçadas poucas milhas umas das outras, em curtos minutos, não era boa política colocar no INS todas essas primeiras posições porque rapidamente se esgotava a capacidade do aparelho: tendo só 9 posições de armazenamento de coordenadas, obrigava a estar permanentemente a “abastecê-lo” de novos pontos de modo a permitir que o piloto automático prosseguisse o seu voo ao longo do sinuoso caminho que é, normalmente, preciso percorrer depois de uma descolagem.
E com o muito trabalho que se tem, em voo, na saída de um grande Aeroporto, o correcto é colocar o primeiro ponto, no INS, numa posição do mapa já um pouco afastado do aeroporto, quando as distâncias entre os vários pontos a sobrevoar a seguir, já sejam de molde a manter o “abastecimento” do INS sem grande stress. Uma questão de bom senso e até de segurança.
Mas naquele dia o homem não estava para aturar aquele jovem Comandante português e com a experiência que tinha disse que sabia muito bem o que devia fazer.
A primeira classe do B747 era magnífica e foi para aí que o nosso Comandante e o seu Co-piloto TAP, este que escreve estas linhas, se dirigiram rapidamente, uma vez que os colegas aos comandos sabiam tão bem o que fazer…
O nosso Mecânico de Voo ficou no cockpit a ajudar o colega da PIA que manifestou o interesse nisso.
E lá foram aquelas centenas de pessoas para o ar em direcção a Frankfurt, Teerão e finalmente, Carachi.
Breves minutos após a descolagem, escassos minutos, muito poucos, num momento do voo em volta acentuada pela esquerda, o nosso Mecânico de Voo desce apressadamente as escadas do upper-deck do B747, que desembocam à entrada da 1ª classe e num riso perdido, entre palavras, gargalhadas e lágrimas soltas lá conseguiu explicar que o Comandante paquistanês estava em pânico com o avião a voltar inexplicavelmente para a esquerda, sendo que a rota era em frente e ele não percebia porquê nem sabia o que fazer…
O riso era justificado porque o nosso competente Mecânico sabia perfeitamente o que se estava a passar. O Comandante paquistanês é que não…Quando o INS esgotava as 9 posições que o avião já tinha sobrevoado, indicava ao piloto automático que devia ir agora para a posição Nº1 que entretanto já tinha sido preenchida com as coordenadas da posição geográfica logo a seguir e assim sucessivamente até ao destino.
Nesta primeira descolagem dos experientes Pilotos da PIA, aquelas almas colocaram todos os pontos da saída de Londres no INS, a começar pelo ponto onde, no fim da pista, teriam de voltar à esquerda para o 2º ponto e assim sucessivamente. Eram 9 pontos que cobriam umas míseras 10 milhas no mapa. Voadas num ápice.
Com a sobrecarga de trabalho normal da descolagem, ninguém se lembrou de “abastecer” o INS de novos pontos para a frente em substituição dos já utilizados tão repentinamente e entretanto o avião estava a voltar, naturalmente, para voar da posição Nº 9, entretanto alcançada, para a posição Nº 1, praticamente o final da pista de onde se descolara breves minutos antes. Era para aí que o avião se dirigia, obediente e previsivelmente, sem nenhuma falha… e sem que aquelas almas conseguissem atinar porquê! Mas a rota era em frente…
É o que acontece quando se sabe tudo…
Esclarecido o Comandante paquistanês, lá prosseguiu o voo sem mais problemas de maior, com o Controlador de Tráfego Aéreo, em terra, sem perceber muito bem o que tinha sido aquilo.
(Actualizada em 1 de Maio de 2014)
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