Capítulos

Na Guerra do Ultramar e não só - O Comando de uma LFG na Guiné (1)

 

O Comando de uma LFG na Guiné

(LFG - Lancha de Fiscalização grande)


1ª Parte

Os navios da classe ARGOS













LFG ORION


Esta história relata, muito resumidamente, o que foi a comissão no Ultramar de um digníssimo Oficial da Armada, Luiz Pereira Vale

 na altura 1º Tenente, na Guiné, exactamente no auge do conflito com o PAIGC, imediatamente antes do 25 de Abril.

Conhecemo-nos por essa altura por morarmos no mesmo prédio em Lisboa. A amizade ficou-nos agarrada desde aí...

O texto está publicado na Revista de Marinha, Nº 985, Maio/Junho 2015.

O texto, integral, está subdividido por mim em várias histórias, tendo-lhe acrescentado eu imagens que fui encontrando na Internet e um ou outro texto que ajuda a perceber o envolvimento de alguns episódios aqui narrados.


A história é todo o texto que se segue:

__________________________________________________________


Entre junho de 1963 e setembro de 1965 foram aumentados ao efectivo da armada 10 navios da classe ARGOS, então designados por lanchas de fiscalização grandes (LFG’s).

Os primeiros 4 foram construídos nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo e os restantes no Arsenal do Alfeite.


Na Wikipédia encontrei este texto que o blogue aqui reproduz (não está na história do autor):

“A classe Argos foi uma classe de lanchas de fiscalização grandes (LFG), ao serviço da Marinha Portuguesa, entre 1963 e 1975.

 As lanchas foram construídas entre 1963 e 1965 no Arsenal do Alfeite, e nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo.

 As unidades desta classe foram baptizadas com o nome de constelações.

 As Argos tiveram origem no Projeto de Lancha para Timor, resultante de um requisito da Capitania do Porto de Dili, para um tipo de lancha com capacidade para ser empregue na fiscalização das águas territoriais de Timor Português. Em virtude da Guerra do Ultramar, nenhuma das lanchas acabou por ir para Timor, sendo enviadas para África, onde foram empregues em operações militares.

 A maioria delas foi transferida em 1975 para a República Popular de Angola, e as restantes afundadas ao largo da Guiné-Bissau no mesmo ano.

 De notar que a Marinha Portuguesa voltou a utilizar o nome de Classe Argos para denominar uma nova classe de Lanchas de Fiscalização lançadas ao mar em 1991” 


No fim do conflito, 7 desses navios,

ARGOS, DRAGÃO, CASSIOPEIA, HIDRA, LIRA, ORION e SAGITÁRIO,

 encontravam-se na Guiné.



     LFG's no cais de Bissau


Os outros 3 ESCORPIÃO, PÉGASO e CENTAURO, em Angola.

Os da Guiné estavam reforçados com chapa balística para proteção da ponte e do costado na zona da casa das máquinas.

Estes navios tinham deslocamento máximo de 210 tons, cumprimento de 41,7 m e um calado de 2,1 m e eram proporcionadas por 2 motores que permitiam uma velocidade Máxima de cerca de 17 de nós e uma autonomia de 1660 milhas em velocidade de cruzeiro.

O comando dos motores era feito diretamente da ponte, o que facilitava muito a manobra, fator importante nas condições de navegação da Guiné, efectuada muitas vezes em águas restritas e sujeitas a fortes correntes e marés de grande amplitude e particularmente nas atracações, que aliás só podiam ser efectuadas nos cais de Bissau e de Bolama e em 2 pontões de madeira no rio Cacheu.

O armamento principal das LFG’S’s era constituído por 2 peças Boffors de 40 mm, complementado na Guiné com 2 metralhadoras ligeiras MG-42 instaladas nas asas da ponte e por vezes também com 2 espingardas G-com dispositivo lança-granadas ofensivas.


Em rios estreitos, designadamente no Rio Cacheu era também instalado o morteiro de 60 mm na ponte alta operada por fuzileiros.


As peças boa Boffors, dotadas de uma elevada cadência de tiro e projéteis explosivos, constituíam um armamento poderoso no tipo de operações efectuadas nos rios da Guiné, mas tinham uma forte vulnerabilidade por serem de comando exclusivamente elétrico.


Com a vantagem de necessitarem apenas de um apontador, em vez de 2 como nas peças de comando mecânico, um para apontar em direção e outro em elevação, podiam assim fazer um fogo mais rápido e certeiro, mas tinha um perigoso inconveniente de ficarem inoperativas em caso de falha de energia.


Daí que a principal limitação operacional das LFG’S’s se devesse aos seus geradores, já com muitos milhares de horas de funcionamento e com grandes dificuldades de sobressalentes que só podiam estar parados quando os navios recebiam energia de terra.


Sem energia elétrica os navios ficavam indefesos, sem comunicações e até sem poder de manobra, pelo que quando um dos 2 geradores se avariava os navios entravam em limitação operacional. Outra limitação das LFG’S’s tinha a ver com as comunicações.


Possuíam bons equipamentos de HF, mas que apenas podiam comunicar em grafia e um mau equipamento de fonia, que só foi substituído após o fim do conflito.






    A LFG ORION no Tejo. em Lisboa



Assim, quando os navios necessitavam de comunicar com Bissau, dadas as características dos seus equipamentos, tinham de enviar as mensagens em morse para a estação rádio naval de Cabo Verde, que depois as retransmitia para Bissau. 


Isso significava que num pedido de apoio aéreo urgente, os minutos necessários para que as os aviões nos apoiassem podiam transformar-se facilmente numa hora.


As LFG’S’s dispunham também de equipamentos portáteis para comunicações a curta distância com as forças terrestres ou aéreas mas que eram de fácil intercepção pelo inimigo pelo que a sua utilização era fortemente restringida.


Quanto a pessoal, as guarnições das LFG’s eram constituídas por 2 oficiais, 4 sargentos (Condutor de Máquinas, Artilheiro, Manobra e Enfermeiro), e 21 praças, complementadas com 3 civis africanos que desempenhavam as funções de impedidos dos oficiais e dos sargentos e a de padeiro e ajudante do cozinheiro.


Esta lotação permitia que os navios navegassem abordadas meia guarnição nos postos e a outra a descansar, mantendo praticamente a mesma capacidade da situação de “postos de combate”.




As outras Histórias sobre este assunto:



 



 

Luiz Pereira Vale

Oficial da Armada

ex-Comandante do N.R.P. Orion

Revista de Marinha, 985, Maio, Junho 2015









Na Guerra do Ultramar e não só - O Comando de uma LFG na Guiné (3)


O Comando de uma LFG na Guiné 


3ª Parte

A operação no rio Cacheu e não só

                                               


No Cacheu, rio de grande extensão navegável, a zona de operações da LFG’s era essencialmente entre a base de Guanturé e a povoação de Binta.

A sua missão principal era tentar impedir a travessia do rio (cambança) por parte do inimigo, que o utilizava para efectuar o seu abastecimento logístico em pessoal e material à área do Morés a partir da fronteira com o Senegal, situada a poucos quilómetros a Norte. 

Nesta zona a navegação diurna não oferecia dificuldade, pois bastava navegar a meio do rio, que embora estreita e com grande corrente, tinha profundidade suficiente para se navegar até junto das margens, pelo que havia apenas que estar com atenção às ações do inimigo, normalmente efectuadas a partir das clareiras da margem de sul. 

Dava até prazer navegar naquele rio com um luxuriante conjunto de árvores de grande porte ao longo das suas margens e recordo especialmente a sua beleza ao nascer do dia quando a macacada por vezes nos pregava sustos com os saltos e guinchos repentinamente largados à nossa passagem. 

Já a navegação noturna era bastante complicada, pois era feita normalmente em grande velocidade e total ocultação de luzes, quer para tentar surpreender o inimigo quer para dificultar as suas possíveis ações ofensivas. 

Para isso o Comandante e o Imediato posicionavam-se junto ao radar, cujo monitor emitia a única claridade permitida, rodeados de torcidas fumegantes de Lion-Brand para afugentar os inúmeros mosquitos que os mordiam impiedosamente, embrulhados muitas vezes em cobertores, pois naquele clima quente o frio noturno nos rios também era muito.

 No radar apenas se conseguia observar o troço do rio em que se estava a navegar, sabendo-se pela carta que o troço seguinte seria para estibordo ou para bombordo e qual a variação de rumo aproximada. 

Quando o navio entrava na ou curva metia-se o leme todo a um bordo e aguentava se a guinada quando no radar se começava a ver o troço seguinte. 

Às vezes as coisas não corriam bem e os navios roçavam pelas árvores lá deixando alguns vergueiros, pelo que no exterior apenas podiam permanecer os operadores das peças. 

Enfim, uma operação arriscada e votada ao insucesso, uma vez que o ruído dos motores naquele ambiente silencioso era ouvido a distâncias consideráveis e mesmo com o navio a pairar ou fundeado, ouvia-se o ruído dos geradores.




Foi no Rio Cacheu que passei o meu primeiro Natal na Guiné e aí recebi do Ministro da Marinha, senhor muito simpático, que ofereceu uma nota de 100 escudos, para pagar umas cervejas à minha guarnição.

Nesse Natal de 1972 o senhor Ministro foi fazer uma visita aos fuzileiros na base de Ganturé e depois de me pedir desculpa por não ter tempo para ir ao meu navio, disse-me para desejar um bom Natal à minha guarnição, o que fiz sem lhes revelar quem na realidade pagou a maioria das cervejas por ele oferecidas.

Mas é nessa base de Ganturé em que, passados mais 3 meses, acompanhei os trágicos episódios que se sucederam ao abate nas suas proximidades de 3 dos nossos aviões, perecendo camaradas com quem convivi.

É também aí que algum tempo depois, desembarquei e me despedi com a emoção, do meu amigo Capitão Matos Gomes, que heroicamente com os seus comandos africanos atravessou a fronteira com o Senegal durante a noite para atacar a base inimiga de Cumbamori e assim aliviar o prolongado cerco ao nosso aquartelamento fronteiriço de Guidaje, em cuja defesa se distinguiu, entre outros, o então Capitão Salgueiro Maia.

É também de Ganturé que guardo a imagem da evacuação dos feridos numa violenta emboscada sofrida na temida clareira de Tancroal, efectuada por vários helicópteros em simultâneo, numa cena que lembrava filmes de outras paragens.

A comandar a LFG DRAGÃO, em missão de escolta a várias embarcações civis e à LDG MONTANTE, entrámos numa clareira à velocidade mínima, com uma máquina parada e a outra avante devagar, cozidos com a margem onde estava o inimigo, para proteger as embarcações civis que navegavam encostadas à margem oposta.

Sem termos tomado a precaução de efetuar alguns disparos prévios, fomos atingidos a muito curta distância, valendo-nos imediata a reação das nossas peças, que acabaram por ficar inoperativas durante o contato de fogo.

A peça de vante apenas fez alguns tiros porque ficou logo sem energia, devido a termos sido atingidos na zona do quadro elétrico que a alimentava e aos ferimentos sofridos pelo seu municiador. A peça de ré por sobreaquecimento do cano, devido os muitos disparos efetuados em curto espaço de tempo.

Da emboscada resultaram 2 feridos na guarnição da LFG e 14 no pessoal da estiva da LDG, que navegava à nossa popa e também se envolveu no combate. Tivemos sorte, porque a maioria dos projéteis inimigos caíram na água e uma munição explosiva que penetrou num dos nossos cunhetes os de munições não explodiu.

No rio Combijã a navegação era completamente diferente da do rio Cacheu. Não era fácil demandar a sua barra, pois era necessário Navegar por uma estreita passagem entre 2 baixios, apoiados apenas por uma única marca radar colocada a várias milhas de distância, pelo que um pequeno desvio podia dar direito a encalhar.

À entrada do rio tínhamos a bombordo a célebre ilha do Como, alvo de uma penosa ação militar alguns anos antes quando era considerada a principal base do inimigo e estibordo, a península do Cantanhez santuário do inimigo, onde em fins de 1972 se tentou fazer uma vez mais a sua ocupação militar.




A ORION foi uma das várias unidades navais envolvidas nessa ação e recordo naquele cenário de guerra em que foram empregues avultados meios terrestres, aéreos e navais. a desagradável sensação do silvo das granadas da nossa artilharia ao passarem por cima de nós ou a de adrenalina sentida, quando numa noite escura como breu fomos forçados a abortar um desembarque de fuzileiros por termos sido detectados pelo inimigo que se encontrava na margem a curta distância do local onde tínhamos fundeado.

O enorme ruído dos motores da LDM que transportava os fuzileiros fiz com que o inimigo procurasse saber a nossa exata posição, lançando very-lights. Sem podermos sair daquele local enquanto a LDM não regressasse, também não poderíamos ripostar se fossemos atacados, pelo perigo de podermos alvejar o nosso pessoal, pelo que se viveram momentos de grande tensão.

Mas voltando à navegação no rio Combijã, este era praticável para as LFG’s até à zona de Cufar, onde existia a pista de aviação alternativa à de Bissau para aeronaves de maior porte e apoio é toda a zona sul da Guiné.

Ao contrário do rio Cacheu, no Cumbijã a navegação não podia ser efetuada a meio do rio e tinha de ser bastante cuidadosa, navegando-se junto a uma ou outra margem, conforme a sua profundidade.




As outras Histórias sobre este assunto:




 



Luiz Pereira Vale

Oficial da Armada

ex-Comandante do N.R.P. Orion

Revista de Marinha, 985, Maio, Junho 2015








Na Guerra do Ultramar e não só - O Comando de uma LFG na Guiné (2)

 

O Comando de uma LFG na Guiné


                                                               2ª Parte

Primeiros tempos na Guiné




NRP Argos                

Cheguei à Guiné para assumir o comando da Orion e em meados de Outubro de 1972, após uma atribulada viagem aérea por força das avarias dos 2 motores da mesma asa de um velho quadrimotor DC-6, ocorridas entre as Canárias e Cabo Verde.

Aterrei em Bissau 5 dias depois de sair de Lisboa, à boleia de outro DC-6 de carga, sentado em cima de caixotes de sobressalentes de 2 velhos bombardeiros B-26 da 2ª Grande Guerra Mundial, cuja aquisição tinha levantado um grande alarido nos areópagos internacionais e que iam para Angola. 

Logo no dia seguinte à minha chegada, após os cumprimentos da praxe e um briefing sobre a situação militar no território, voltei a embarcar num pequeno avião pertença da marinha a embarcar no pequeno avião pertença da Marinha, destinado principalmente ao transporte de correio para as unidades que estavam fora de Bissau, para ver como era a “guerra”.

Depois de aterrar numa pequena pista de terra batida, desbravada no meio da floresta compacta Já muito perto da fronteira com o Senegal, subi para o camião conduzido pelo fuzileiro que me aguardava e ao fim de uns quilómetros de picada, vislumbrei no meio das árvores o que me pareceu ser um navio de guerra.

Na realidade lá estava uma LFG, atracada no pontão de madeira que servia a base de fuzileiros de Ganturé, na margem do rio Cacheu.

 

Lembro-me de ter reparado de imediato que na tolda, envolta da peça de ré, havia uma profusão de cunhetes de munições, bidons de combustível, um jogo de matraquilhos e até uma vaca viva que aguardava espaço nas frigorificas… estava noutra Marinha!

 

Depois do susto da praxe, a cargo dos fuzileiros que nessa noite simularam um ataque do inimigo, no dia seguinte fizemos a patrulha do rio na zona de operações que ia até à povoação de Binta, onde estava aquartelada uma companhia do Exército e perante os meus receios ao observar toda aquela alta vegetação junto às margens estreitas por onde íamos navegando, fui elucidado que não era dali que vinha o perigo mas sim das clareiras, onde os navios eram atacados.

Quando já me sentia mais descontraído recebemos um pedido de apoio dos fuzileiros que estavam a ser atacados numas dessas clareiras a célebre clareira do Tancroal, para onde nos dirigimos imediatamente à máxima velocidade. Eis que quando estávamos já muito perto e em “postos de combate”, o Comandante mandou parar o navio e perante a minha interrogação, apontou para o céu, onde se viam os nossos aviões e esclareceu-me que quando isso acontecia ele não entrava na zona de combate, porque na sua anterior comissão, também na Guiné mas como fuzileiro, tinha havido diversas baixas provocadas pelos nossos meios aéreos. Senti-me elucidado e em apenas 48 horas, já bastante preparado para o que se iria seguir…

Quando iniciei a minha comissão a iniciativa militar ainda nos pertencia. No final desse ano de 1972 foi lançada uma grande ofensiva contra um dos santuários do inimigo, a península do Cantanhez, situada na parte sudoeste do território da Guiné, entre os rios Cumbijã e Cacine.

Mas logo a seguir à morte de Amílcar Cabral, ocorrida em Janeiro de 1973, o curso da guerra sofreu uma drástica alteração, especialmente após serem abatidos vários aviões com mísseis Strella SA-7, quebrando a nossa supremacia aérea e prejudicando o imprescindível apoio às forças terrestres.











À táctica de guerrilha seguida até então sucedeu-se uma poderosa ofensiva do inimigo, que dispondo de mais e melhor armamento, passou a atacar fortemente os nossos aquartelamentos mais vulneráveis, Guidaje, na fronteira norte com o Senegal e Guilege e Guadamael, perto da fronteira sul com a Guiné-Conakri. Em Setembro o PAIG c declarou a independência e daí até ao dia 25 de Abril de 1974, a situação militar não parou de se deteriorar perigosamente.




Nesta fase do conflito fase do conflito, a Marinha desdobrava-se no apoio militar e logístico das forças terrestres empenhadas nas áreas com acesso marítimo. As LFG’s enfectuavam sobretudo a vigilância e patrulha do rio Cacheu no norte da Guiné e dos rios com bijan e cacine no sul com o objetivo de impedir ou dificultar a sua utilização pelo inimigo, mas também outras missões tais como o patrulhamento das águas territoriais e do arquipélago dos Bijagós, a escolta a partir da denominada “bóia de espera” dos navios militares e civis que demandavam o porto de Bissau, a escolta de outros meios navais ou embarcações civis nos rios em que isso era possível e necessário, o transporte e a projeção de forças terrestres e asseguravam também a defesa marítima do porto e cidade de Bissau.

Quer no comando da ORION, quer embarcado noutros navios, em apoio a substituição dos seus Comandantes nos seus impedimentos, testemunhei muitos e variados episódios ocorridos naquele período difícil de fins de 1972 até ao fim do conflito, que não seria possível narrar aqui, pelo que apenas referirei alguns que poderão dar uma ideia do ambiente que então se vivia nos rios Cacheu, Cumbijã e Cacine.





Nem todos esses episódios foram trágicos e os piores que recordo foram vividos no acompanhamento de acontecimentos que envolveram os militares as forças terrestres os grandes sacrificados naquela guerra.

Na Marinha, para além dos Fuzileiros, o meu grande apreço veio para as guarnições das Lanchas de Desembarque Médio (LDM’s), que para além da perigosidade das suas missões, viviam em péssimas condições de habitabilidade, agravadas pelo clima dos rios da Guiné.

Nas LFG’s, para além do sentimento de uma maior segurança incutido pelo seu elevado poder de fogo, as guarnições dispunham de razoáveis condições de vida com alojamentos climatizados e até uma melhor alimentação.




As outras Histórias sobre este assunto:



 




Luiz Pereira Vale

Oficial da Armada

ex-Comandante do N.R.P. Orion

Revista de Marinha, 985, Maio, Junho 2015









Na Guerra do Ultramar e não só - O Comando de uma LFG na Guiné (4)

 

O Comando de uma LFG na Guiné 


4ª Parte

2 episódios que vivi


É neste rio que também vivi 2 episódios que não resisto a narrar rapidamente.











Um, que agora dá para sorrir, foi a recuperação de um avião DO-27, que aterrou de emergência no lodo, junto à célebre ilha do Como. Vinha embarcado na LFG LIRA a demandar a entrada do rio, quando avistámos a aeronave, que ao longe nos fez imaginar uma hipotética rampa de foguetões, dada a sua inclinação a 45°. Enquanto nos aproximámos, os tripulantes, o piloto e 2 enfermeiras para-quedistas, foram recolhidos pelos fuzileiros, pelo que nos restava tentar a recuperar o avião. A primeira parte da operação foi fácil, porque amarrámos uns bidões vazios à sua fuselagem e quando a maré encheu o avião ficou a flutuar.











Pediu-se então a Bissau o envio de uma LDG, que chegou no dia seguinte, mas aí começaram as complicações. Devido às fortes correntes não se conseguiu içar o avião para dentro da LDG, pelo que foi necessário pedir o envio de uma outra LDG transportando uma grua.


Mas nem com a grua se conseguiu içar a aeronave, que entretanto já estava muito danificada, pelo que se tomou a decisão de se separar as asas da fuselagem e amarrá-las aos bordos da LFG. Quando voltámos para Bissau, impantes da nossa proeza, não fomos bem recebidos pelos camaradas da Força Aérea pelos estragos que tínhamos causados ao avião!...


O outro episódio que recordo deste rio foi bastante mais triste. 


No Natal de 1973,

estava embarcado novamente na LFG LIRA, quando foi decidido lançar outra grande ofensiva no Cantanhez, tentando desta forma surpreender o inimigo, quando na véspera e no dia de Natal era usa ver um cessar-fogo dos 2 lados.

Mas nessa noite terrível, ouviam-se nas nossas comunicações os desesperados pedidos de ajuda dos jovens em risco de vida, em combate ali tão perto de nós e sem qualquer possibilidade de lhes prestarmos qualquer auxílio.

Nessa altura não pude deixar de imaginar que àquela hora, os pais daqueles jovens estariam provavelmente a pensar nos seus filhos e talvez mesmo a rezar por eles à lareira ou a assistir a alguma missa do galo…

Por fim, vou referir-me ao Cacine, outro rio bastante demandado pelas LFG’s, especialmente a partir de meados de 1973. Era um rio bastante largo e, tal como o rio Geba que servia Bissau, não oferecia dificuldades especiais de navegação até a zona de Gadamael.

No entanto apresentado problemas na sua barra, que para além de ter sondas muito baixas, necessitava de ser demandada navegando em águas territoriais da Guiné-Conakry, mas onde felizmente no meu tempo não se registaram ataques aos nossos navios por artilharia instalada no território daquele país.

É ao rio Cacine que vou pela primeira vez no dia 2/06/1973 vindo de emergência do rio Cumbijã com 2 LDM’s e uma companhia de para-quedistas, para acorrer aos acontecimentos que vieram a ser recordados como o “Inferno de Gadamael”.


Ver aqui o que foi esse Inferno:


O Inferno de Gadamael

Escrito por: José Casimiro Pereira de Carvalho


Também em:

Gadamael - o verdadeiro Inferno


A situação que ali se deparava era terrível. Muitos dos nossos militares pertencentes às guarnições de Guilege e Gadamael, não aguentando a pressão exercida pelos pesados e precisos bombardeamentos do inimigo, para os quais nem sequer dispunham de abrigos adequados, tinham-se refugiado nas margens do rio, onde se encontravam à sua mercê.


Ignorando a ordem do General Spínola que proibia a sua recolhaa Orion e as LDM’s e os botes de Fuzileiros retiraram nesse dia cerca de 300 militares para o quartel de Cacine e mais algumas centenas de civis africanos, no dia seguinte.


Mas o pior viria a acontecer nos dias que se seguiram quando foi ordenada a defesa a todo o custo de Gadamael, cabendo à Marinha o transporte de homens e material para lá, e a evacuação dos feridos e mortos para Cacine, onde os helicópteros já podiam aterrar para fazer o seu transporte para Bissau.

Dessa ação, em que muito se distinguiu o meu amigo então Capitão Manuel Monge, que viria a comandar o golpe de 16 de Março que antecedeu o do 25 de Abril, resultaram em poucos dias 24 mortos e 147 feridos, uma grande parte dos quais transitaram pela ORION para serem levados para Cacine, onde os meios aéreos efetuavam a sua evacuação para Bissau. 

A mesa do refeitório das praças eram local onde o sargento enfermeiro, ajudado pelo grumete eletricista, lhes prestava a assistência possível naquelas circunstâncias e as variadas cenas então vividas são ainda hoje de dolorosa recordação.


25/04/1974


Mas foi também no rio Cacine que a Orion se encontrava no dia 25/04/1974. Nesse dia, ao contrário dos anteriores, sentiu-se uma estranha acalmia das ações do inimigo, designadamente nos pesados bombardeamentos dos nossos quarteis.

Já passava da meia-noite quando o telegrafista comunicou que suspeitava que alguma coisa tinha acontecido em Lisboa e, passados 2 ou 3 dias recebemos a bordo, a seu pedido, uma delegação de guerrilheiros do PAIGC, que apenas nos queriam transmitir que para eles a guerra tinha acabado, uma vez que tinha sido uma guerra contra o nosso governo e não contra os portugueses.

Não pude deixar de pensar então no sacrifício de tantos jovens, que ali sofreram e, em particular, naqueles que ali deixaram a própria vida!... E também que estava ali a testemunhar o fim de uma era gloriosa da nossa história!


Em Julho de 1974 regressei a casa.










A ORION ainda foi morrer a Angola,,,

mas permanecerá

sempre viva

nas minhas recordações!


 



As outras Histórias sobre este assunto:




 




Luiz Pereira Vale

Oficial da Armada

ex-Comandante do N.R.P. Orion

Revista de Marinha, 985, Maio, Junho 2015










Linha Aérea e outros voos - Reconstituição do acidente de Camarate

 


     4 de Dezembro de 1980

 

Preliminares

 

A investigação de um acidente de aviação é sempre feita por especialistas na matéria, como é obvio.

A razão principal, a mais importante, para a investigação de um acidente é sempre a mesma:

 

- A Segurança de Voo.

 

Num acidente de avião, é preciso detectar se alguma coisa foi feita contra as regras estabelecidas nos manuais, se essas mesmas regras precisam de ser revistas, se houve falha humana, avaliar se algo falhou mecanicamente etc., etc.

Vou falar-vos sobre isto, porque é a área onde me movo melhor.

Voei, sozinho num avião, pela 1ª vez com 16 anos. Voei depois 8 tipos diferentes de aviões na Força Aérea, durante 7 anos, entre aviões de hélice e jactos mais ou menos supersónicos. Voei depois na TAP, durante outros 25 anos, 5 aviões, pequenos, médios grandes e muito grandes, da Boeing e da Airbus. Ao serviço da TAP voei também nas Aerolineas Argentinas e nas linhas aéreas do Paquistão, a PIA.

Gostei sempre muito de aprender. Gostei muito, também, de ensinar…

Agora que se aproxima o 41º aniversário do trágico acidente de 4 de Dezembro de 1980 e para que não esqueça, vou pôr-vos perante os factos averiguados pelas únicas autoridades Aeronáuticas competentes, na altura, em investigação de acidentes. Só factos, sem nenhuma especulação, nem teorias da conspiração.

Por autoridades Aeronáuticas entendo:

- OGabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários, hoje chamado assim, a entidade portuguesa responsável na matéria,

- E o National Transportation Safety Board (NTSB), que é um departamento federal americano que investiga tudo o que se passa nos transportes, sejam bicicletas, comboios, aviões, barcos ou balões de ar.

Portanto, são só factos, comprovados, aqueles de que vos vou falar. Aconteceu, realmente, isto e aquilo. Não são conjecturas. São factos! Só factos.

Perceber o que correu mal é salvar vidas voos adiante. É melhorar procedimentos que, porventura, necessitem ser alterados.

Não se investiga para criminalizar ninguém, tal como está expresso no Anexo 13 da ICAO (o organismo internacional que rege toda a aviação civil), que diz:


- “Os Estados Contratantes assumem a obrigação de investigar os acidentes e incidentes com aeronaves civis com a finalidade exclusiva da prevenção de acidentes, sem apontar culpas ou responsabilidades”.

 

Espero, pois, que aceitem que não estou aqui para apontar o dedo a ninguém.

Conheço bem todo o envolvimento deste acidente e fiz, já na altura, uma análise, de que agora me sirvo.

 

 

O porquê deste voo

 



No dia 4 de Dezembro de 1980 Portugal estava em plena campanha para a eleição do Presidente da República.

Defrontavam-se o General Ramalho Eanes, para um 2º mandato, como Independente e o General Soares Carneiro, com o apoio da Aliança Democrática, (PPD/CDS/PPM).


Nesse dia, em Lisboa, durante um almoço da campanha com outros dirigentes e apoiantes de Soares Carneiro, Adelino Amaro da Costa, Ministro da Defesa, disse a Francisco Sá Carneiro, 1º Ministro, que tinha ao seu dispor um Cessna 421 Golden Eagle, que estava ao serviço da campanha presidencial do candidato apoiado pela AD, Soares Carneiro, a fim de ele, Amaro da Costa, se deslocar ao Porto, onde iria assistir ao encerramento da campanha.




Sugeriu-lhe, uma vez que Francisco Sá Carneiro também se dirigia nesse mesmo dia para o Porto, com bilhetes já reservados na TAP, que era mais fácil e cómodo irem todos naquele avião, que estava disponível.

Sá Carneiro aceitou o convite de Amaro da Costa e mandou desmarcar os bilhetes reservados na TAP.



Ficou assim agendado, para o fim dessa tarde, um voo no Cessna propriedade de Jorge Moreira, que levaria a bordo Francisco Sá Carneiro e a sua companheira Snu Abecassis, Adelino Amaro da Costa e a sua mulher Maria Manuel Simões Vaz da Silva Pires e o chefe de gabinete do primeiro-ministro, António Patrício Gouveia.


Comecemos pelo avião.

 

Que avião era aquele?

 

    CESSNA 421A, Golden Eagle

Era um pequeno bimotor CESSNA 421A, Golden Eagle, com capacidade de transportar um máximo de 6 passageiros, construído em 1969 nos E.U.A., e exportado para a Venezuela em Junho do mesmo ano de 69, com matrícula venezuelana, YV - 314P.

11 anos depois, o avião foi vendido a um cidadão português, tendo a aeronave estado imobilizada na Venezuela cerca de ano e meio, antes desta aquisição.

A venda foi no dia 2 de Setembro de1980 e a viagem para Portugal iniciou-se logo dois dias depois. Tudo muito rápido!


No entanto, demoraram quase mês e meio entre Caracas e Lisboa. E não foi por turismo…

Por onde teria andado o avião este tempo todo? E a fazer o quê? Vamos já descobrir….


Ao longo daqueles 42 dias de viagem, foram detectadas, resumidamente, as seguintes mais graves anomalias no avião:

O motor direito, por exemplo, parou 3 vezes. Pronto!…foram só 3 vezes…


  • Uma delas com aborto á descolagem, no Haiti.
  • Outra, por se ter soltado um tubo de combustível.
  • Outra, por um princípio de incendio.

 


      O avião no Haiti



Tudo coisas simples, como se vê. Este mesmo motor, às tantas, também lhe deu para começar a vibrar.

Ambos os motores tiveram quedas inesperadas de rotações.

Houve também uma fuga de combustível à descolagem devido a fractura de uma braçadeira num tubo de um dos tanques auxiliares.

Tiveram várias indicações incorrectas de quantidade e de débito de combustível para os motores.

Houve avarias nos instrumentos de voo, bem assim como:

  • no radar,
  • na pressurização,
  • nas comunicações.

 

Mas ainda há mais:

  • Tiveram uma falha eléctrica numa bomba de transferência de combustível
  • E as baterias foram substituídas 3 vezes.


Foi neste estado que o avião chegou a Portugal, adquirido dois dias antes da partida de Caracas, onde tinha estado imobilizado um ano e meio e que até ao fatídico voo com o Dr. Sá Carneiro e acompanhantes, não efectuou nenhuma revisão geral rigorosa de manutenção, apesar de tudo isto que leram.

A primeira inspecção deveria ocorrer às 50 horas de voo acumuladas. Mas a aeronave, desde o dia de partida de Caracas até ao dia do acidente, já acumulava 52h37m de voo, estimadas.

A inspecção das 50 horas estava marcada para dia 5 de Dezembro de 1980, ou seja, o dia a seguir ao do acidente. Ironias do Destino…


E porquê?

 

Porque tinha sido adiada para que o avião pudesse efectuar a campanha presidencial que decorria.

 

Adiada!?

Dá para acreditar?...

 

Foi assim, mas há mais…Existiam ainda…

 

Outras anomalias

 

Anomalias que, entretanto, foram aparecendo, já em Portugal.

Alguns passageiros do voo de 3 para 4 de Dezembro, queixaram-se de ter ouvido ratés no motor e diziam que "o avião não estava bem preparado".

O próprio piloto Júlio (alterei-lhe o nome, bem assim como a todos os participantes nesta história) queixara-se anteriormente, bem como outros, dos Indicadores de quantidade de combustível. Não forneciam indicações credíveis.

O Piloto Marco, durante uma inquirição, disse:

“Por norma eu não acreditava neles (nos indicadores). “Nós fazíamos o consumo por hora e por tempo, o tip tanque direito (principal) acusava sempre certo, o tip tanque esquerdo tinha bastantes oscilações, estava sempre a oscilar mas a partir de ¾ de meio para baixo começava a estacionar mas eu não acreditava naquilo e o Piloto Júlio também não, para todos os efeitos estes instrumentos estavam inoperativos”.

Mais ainda, a bomba de transferência de combustível do depósito wing locker direito, por estar inoperativa, havia sido retirada desse depósito.

Quanto ao alternador direito, foram observadas ocorrências de falha do Amperímetro.

Dizia o Piloto André que “O alternador não debitava nada [...] Esse alternador deixou de funcionar.”

O Piloto Marco afirmou que julga que o alternador funcionava, o problema era na indicação [...] “Não fiz um teste preciso para verificar o alternador, mas estive a fazer o tal teste do aquecimento, cerca de 5 ou 10 minutos e tudo funcionava. Penso que a bateria, só por si, não aguentava tamanha carga. Não posso, no entanto, garantir.”

Fuga de óleo do motor esquerdo.

Havia uma fuga de óleo no motor esquerdo, comprovada, não só pelos vestígios visíveis de óleo no próprio motor, como no estabilizador horizontal do mesmo lado, mas também pelo reabastecimento necessário nas últimas semanas:

  • Em 12/11/80 com 3 litros.
  • Em 25/11/80 com 4 litros.
  • Em 2/12/80 com 8 litros.

 

A empresa Sofinare forneceu ao Piloto Júlio, a seu pedido, um recipiente de plástico com 5 litros para reposição, sempre que necessário.

 

OK... Isto, é tal e qual o que acontecia a muito boa gente, nos anos 70, quando se ia de carro, de férias, para poder atravessar penosamente as serras de Grândola e do Algarve, com os putos todos lá atrás, metidos em carros às vezes a cair da tripeça…

 

Preocupado, o Piloto Luciano chegou a dizer: “Apresentava assim vestígios de óleo, quer dizer, fuga grande e eu adverti-o e disse-lhe: É pá, ó Júlio, tem cuidado com aquele motor que não me inspira confiança nenhuma; e ele disse: Não há problema, Luciano. Aquilo é do radiador e eu tenho até uma lata de óleo lá atrás.”

 

Só faltavam mesmo os putos e a bagagem toda no tejadilho!

 

Um mecânico (da ALAR, Empresa de Manutenção), disse em declarações à DGAC que:

“o motor esquerdo se encontrava banhado em óleo" e viu a poça no dia seguinte.


Piloto Marco:

“Efectivamente o radiador de óleo tinha uma fuga quando fui lá mudar (a bateria) [...] o que não inspirava confiança nenhuma era o motor esquerdo, mas por uma questão de óleo.”

 

Um passageiro, no voo anterior (dia 4, de madrugada) observou que “o motor esquerdo perdia ou, pelo menos, estava muito sujo de óleo.”

 






O avião também tinha dificuldades no arranque dos motores:

Em Portimão, no dia 2, foi necessário adquirir uma bateria para o pôr em marcha.

No dia 3, em Faro, foi necessário um carro de arranque.

Ainda no dia 3, em Lisboa, foi colocada uma bateria no avião. O Piloto Marco substituiu a bateria adquirida em Portimão, por outra retirada de um avião imobilizado em Tires, há 2 ou 3 meses.

Piloto Marco:

“A bateria já não estava totalmente carregada.”

Sofinare (Empresa de Manutenção):

Em 4/12/80, o Piloto Júlio solicitou o empréstimo de uma bateria de 24 V adaptável ao avião, que transportou em viatura automóvel para o aeroporto de Lisboa...”

 

E quem eram os pilotos do avião?

O Piloto Júlio, o que voava o avião no dia do acidente, era Piloto Comercial de Aviões, com licença obtida em Lourenço Marques (Maputo) no dia 16 de Junho de 1975, ou seja (reparem na data) 19 dias antes da Independência de Moçambique, naqueles conturbados tempos…

A licença foi convertida, pela extinta DGAC, um ano depois. Tinha 26 anos de idade.

O Piloto Júlio esteve inactivo um ano, entre Janeiro de 1977 e Janeiro de 1978 e sem ocupação profissional permanente, depois dessa data. Ou seja, durante 3 anos.

Tinha cerca de 1600 horas de voo, sendo 560 em bimotores e 43 naquele tipo de avião.

Não foi aceite na TAP, em 1979, por ter sido considerado inapto no exame psicotécnico feito pelo bem conhecido Psicólogo da TAP, Dr. Cabral de Sá, o terror de todos os candidatos a piloto da TAP.


Quando o analisou, disse:

- “a sua organização pessoal é frágil. Faltam-lhe a maleabilidade e meios de autodomínio no plano reflexivo para resolver situações menos habituais e opta por isso a defesas rígidas e obsessivas que limitam a sua capacidade de análise.”

 

Tinha pouca experiência em voo nocturno em geral e no tipo de avião acidentado. Voava habitualmente um modelo de avião diferente, o CESSNA 402.

Desde a chegada de Caracas, a 16 de Outubro desse ano, voou pouco mais de 4 horas naquele avião.

           

Tempos de Trabalho do Piloto Júlio no início daquele voo:

 

  • Nos 2 dias anteriores: 22 horas de trabalho.
  • Nas últimas 24 horas: 9 horas.
  • Períodos nocturnos de trabalho: Iniciava o 2º período nocturno consecutivo.

           Eu não acredito em bruxas, mas…

 

piloto Mendes, que fez a função de copiloto naquele voo, tinha a Licença de Piloto Comercial de aviões, com um total de 745 horas de voo, mas… não tinha experiência alguma em aviões multimotores, portanto, nenhumas qualificações técnicas para voar aquele avião.

O primeiro patrão do Piloto Júlio, em Lourenço Marques (Maputo), que o ensinou a voar em multimotores, disse no inquérito:

“... a certa altura começou a constar que o Júlio se tinha desleixado muito, parecendo não ser a mesma pessoa. Não ligava ao Check List, já não conhecia o manual de voo e fazia asneiras constantes e que até já não estava à vontade no avião”.

“Num voo num avião monomotor, ao chegar a Lisboa vindo de Londres, foi obrigado a alternar para Faro por razões meteorológicas. Após a aterragem naquele aeroporto, os depósitos de combustível encontravam-se praticamente vazios”.

No entanto, o avião devia ter, obrigatoriamente, combustível, no mínimo, para mais 45 minutos de voo...

O piloto Fernandes disse:

“Ele facilitava por vezes um bocado”.

O piloto André disse:

“Às vezes não ligava muito ao vento, (como factor de consumo de combustível - vento de frente, vento de cauda) não ligava muito ao controlo de combustível, etc. Onde nós entrámos mais em divergência foi naqueles voos em que ele iria usar quase a autonomia total do avião, iria diminuir muito a segurança...”

Ou seja, iria consumir todo o combustível, até à última gota, sem respeitar os regulamentos.

Um outro piloto, bem como o proprietário do avião, disseram ambos que:

“o Piloto Júlio não costumava verificar as quantidades de combustível antes da descolagem”.

O proprietário de uma aeronave, disse dele:

- era um “indivíduo bastante desembaraçado no ar, mas ligava pouco a relatórios e procedimentos em terra, incluindo pre-flight check”.


O assessor aeronáutico do Governo não se opôs a este voo, ou então não soube disso.

Foi como se não existisse…

 

 

Vamos então ao dia do acidente


Em finais de 1980, um cidadão nacional cede á campanha do  General Soares Carneiro um avião para utilização nas deslocações necessárias para a sua campanha para as Eleições Presidenciais. Teve até a amabilidade de adiar a inspecção obrigatória ao avião, que até já ultrapassara o limite de horas para tal…

O piloto do avião, Júlio, assim lhe chamo, fez o último voo programado, com aterragem em Lisboa, no dia 4 de Dezembro, eram 3h13m da madrugada.

Um dos passageiros, o Ministro da Defesa Nacional, Eng.º Amaro da Costa, pediu ao piloto Júlio para o levar na noite desse mesmo dia 4 de Dezembro, ao Porto, mas com regresso a Lisboa depois dos seus afazeres, por volta da 1h do dia 5 de Dezembro. Ficou de lhe dar uma resposta.

Nesse dia 04 de Dezembro, a secretária do Primeiro Ministro cerca das 12:00 horas, contacta a secretária do Ministro da Defesa Nacional informando-a que o Dr. Sá Carneiro e a sua companheira, bem como o Dr. Patrício Gouveia se deslocariam ao Porto no mesmo avião utilizado pelo Eng.º Amaro da Costa.

Esta informação é de imediato transmitida telefonicamente ao Piloto Júlio, que havia acabado de acordar, tendo aquele afirmado que andava muito cansado e que tinha de aproveitar todos os minutos para descansar pois era um trabalho violento. Lembro que ele tinha aterrado em Lisboa pouco depois das 3 horas da manhã desse mesmo dia, umas 9 horas antes...

Mas a descolagem ficou aprazada para as 19h30 desse dia 4 de Dezembro

O Piloto Júlio é telefonicamente avisado, durante a tarde, de uma nova hora de partida. Devia estar no Aeroporto de Lisboa, pelas 17h30 horas e encarregando-se de contactar o Piloto Mendes, que seria o seu copiloto (oficialmente não qualificado)

 

Preparativos para o voo

 

A tripulação chega ao Aeroporto de Lisboa pelas 18:30 horas.

Por volta das 18:36 horas, o Piloto Júlio dirige-se ao serviço de Movimentos e Despacho do aeroporto, elabora e deposita o plano de voo, com algumas discrepâncias.


Pelo menos 3 e importantes:


1ª. Tipo de avião – informa ser um CESSNA 402, quando na realidade se tratava de um CESSNA 421A.

2ª. Pessoas a bordo – informa serem 4 pessoas e 2 tripulantes, quando na realidade eram 5 pessoas e 2 tripulantes.

3ª. Autonomia de voo: Indica 4 horas de autonomia quando ele sabia perfeitamente ter, aproximadamente, apenas o combustível necessário para chegar ao Porto e mais meia hora, isto é, cerca de 1 hora e 25 minutos.

 

A mulher do piloto Júlio declarou:

“Ele disse que não valia a pena (reabastecer em Lisboa) pois a gasolina chegava para ir ao Porto e aí reabasteceria...”


Não teria, pois, combustível legal para alternar caso não fosse possível aterrar no Porto.

O proprietário de uma aeronave lembra-se que:

 “ele teria indicado ter cerca de 300 litros...”

 

Piloto Marco declarou:

“Ele disse que não tinha gasolina nos auxiliares e que tinha de abastecer no Porto”.

A verdadeira quantidade de combustível a bordo situava-se, portanto, abaixo dos mínimos obrigatórios de segurança operacional para aquele voo.

Na investigação, no dia seguinte após o acidente, verificou-se que o depósito da asa esquerda não tinha combustível algum. Estava completamente seco…Essa asa não ardeu sequer.


Nota:

Por Lei, o combustível mínimo para um voo por instrumentos, deve compreender:

  • o necessário para chegar ao destino
  • acrescido da quantidade para atingir o aeroporto alternativo
  • mais 45 minutos de voo


Ou seja, combustível para:

2 horas e 35 minutos, no caso Lisboa-Porto, com alternativo Lisboa.

 

Caso não seja necessário alternativo, em voo visual, é

obrigatório o combustível para o destino acrescido de 45 minutos.

1 hora e 40 minutos, no caso Lisboa-Porto, em voo visual).

No plano de voo regista também que o aeroporto alternativo é Lisboa, sabendo perfeitamente que não tem combustível para tal, caso não fosse capaz de aterrar no Porto.

 

Meteorologia:

A tripulação não solicitou no Centro Meteorológico do Aeroporto a elaboração da informação meteo para o voo nem a do Porto. Não foi, mesmo, efectuada qualquer consulta nos respectivos Serviços.

Desconheciam, portante a real, situação meteorológica do destino do voo.


Folha de Carga:

- Não havendo indicações sobre o preenchimento da folha de carga (procedimento aconselhado, mas sem obrigatoriedade de apresentação às autoridades) os elementos conhecidos indicam:

  • Peso inferior ao máximo permitido, calculando-se um peso de 6.460 libras para um máximo de 6.840 libras.
  • Centro de gravidade recuado e fora dos limites permitidos pelo fabricante, considerando qualquer cenário de distribuição e quantidade de combustível no avião.


Havia a necessidade de colocação de peso na frente do avião para compensar o transporte de um passageiro no lugar de trás, de modo a equilibrar o centro de gravidade.

O centro de gravidade recuado e fora dos limites permitidos, obriga a aeronave a voar com a frente levantada, aumenta a resistência ao avanço (drag), pondo em risco a estabilidade longitudinal.


Os 5 passageiros chegam ao avião, no Parque Delta, pelas 19:35 horas e embarcam de imediato.

O Ministro da Defesa e mulher sentam-se logo atrás dos pilotos, de costas para a frente.

O Primeiro-Ministro de frente para o Ministro da Defesa e a sua companheira de frente para a mulher do Ministro da Defesa.

O chefe de gabinete do Primeiro-Ministro no banco de trás, ficando de frente para o lado esquerdo do avião.

 

Não foi efectuado qualquer transporte anterior dos pilotos ao Parque Delta, onde estava o avião, o que significa que eles devem ter tido 5 minutos para proceder à inspecção do avião (Pre-Flight Inspection), constituída por 76 itens.

 

Arranque dos motores

 

Foram efectuadas 6 tentativas de arranque dos motores, usando apenas a bateria do avião.

Todas sem sucesso…

Foram:

  • 4 tentativas de arranque do motor esquerdo.
  • 1 tentativa de arranque no motor direito.
  • 1 nova tentativa de arranque no motor esquerdo.


O Piloto Júlio sai então do avião e dirige-se ao motorista Xico, da A.N.A. - E.P., solicitando que pedisse por fonia, á TAP, um gerador (carro de arranque).

O funcionário da TAP Manuel é contactado cerca das 19:45 e ao chegar à aeronave, apercebeu-se que “o Piloto estava com grande pressa e nervosismo”, segundo declarou.

O piloto indica-lhe onde ligar o carro gerador, entrando depois no avião para iniciar novamente o arranque dos motores.


Usando agora o carro gerador da TAP, foram efectuadas mais 5 tentativas.

  • 1 tentativa ao motor esquerdo
  • 1 tentativa ao motor direito
  • 3 tentativas mais ao motor esquerdo


        Novamente todas sem sucesso.


Já iam com 11 tentativas falhadas:

  • 9 no motor esquerdo e
  • 2 no direito

 

         Nenhum motor pegava…

 

Por fim, após nova tentativa ao motor direito, este arranca, finalmente, começando logo o avião a mover-se, cerca de 1 metro, pela placa fora…

Foi quando o Sr Manuel, o funcionário da TAP, alertou o Piloto Júlio desse facto. Para que travasse o avião, acção prevista no 2º item da inspecção exterior, que pelos vistos havia sido omitido… o avião não tinha calços! Nem sequer estava travado!

De seguida foram executadas inúmeras tentativas, consecutivas, de arranque ao motor esquerdo, as quais terão demorado cerca de 20 minutos!

 

Todas, mais uma vez, sem sucesso!

 

No entanto, às 20h14 o motor esquerdo dá-lhe para arrancar, finalmente, depois de quase 35 minutos de tentativas falhadas, seguidas, ininterruptas, quando o Manual de Voo daquele avião estipula que:

- "se a tentativa de arranque de um motor demorar mais de 30 segundos, é necessário um intervalo de 5 minutos, para arrefecimento, antes de nova tentativa.”


Como é que estariam aqueles fantásticos motores de arranque!?


O piloto solicita então à torre às 20:14:20 horas, “instruções de rolagem e descolagem imediata se possível.”

Manuel, funcionário de Placa da TAP, disse:

"Saiu logo, não esperou, tirei o tractor e ele arrancou. Nisto, ele vai para a pista, mas quando o motor começou a trabalhar, ele ia a falhar".

 

Rolagem

 

Ao ser autorizado a iniciar a rolagem, o piloto opta pela intercepção da pista 36 e não pelo início da pista.

Saindo do Parque Delta segue pelo caminho de circulação 17 para a intercepção da pista 36.

Às 20:15:40 recebe a autorização de voo e é autorizado a fazer uma descolagem imediata.

Às 20:16:10 o piloto solicita, novamente, autorização para descolagem imediata tendo a torre, de novo, autorizado a descolar na pista 36.

Às 20:16:25 o avião não repete a mensagem da torre, como é obrigatório, tendo apenas respondido “314 PAPA” o que indicia haver, já nesse momento, uma preocupação e atenção maior à execução da descolagem.

Desde o arranque do motor esquerdo (último a ser posto em marcha), até ao início da descolagem, decorreram 2 minutos e 30 segundos, estimados, período em que seria necessário efectuar o Before Take Off Check List no qual constam 22 itens, entre os quais, o aquecimento e teste dos motores.

O tempo decorrido indicia uma rolagem apressada e insuficiente para executar os procedimentos necessários.

Era necessário um tempo de aquecimento dos motores entre 6 a 10 minutos, dependendo da temperatura exterior, que até era baixa, 6ºC. É obvio que os motores não tiveram o aquecimento devido, nem os testes podiam ser feitos com o avião em andamento.

É do conhecimento geral e da experiência de manutenção de aeronaves que o aquecimento insuficiente do óleo do motor pode provocar danos no motor, tais como:

  • Quebra de potência
  • Funcionamento irregular
  • Falha de motor

 

O Manual do avião diz que:

“É importante que a temperatura de óleo do motor esteja dentro dos limites operacionais antes de se aplicar potência de descolagem.”

“A rotação do motor não deve exceder as 1000 rotações enquanto o óleo estiver frio.”

 

O Piloto Marco declarou:

“Só se pode dispor dos motores a partir dos 300º de temperatura na cabeça dos cilindros conforme estipulado no manual do avião.”

“Não há dúvida que estacionado ou a rolar teria de se aguardar sensivelmente 6 minutos para se obter as temperaturas mínimas para se iniciarem as verificações.”

“[...] e daí se pode concluir que o warm up não se fez ou então realizou-se sem ter as condições, o que é o mesmo que nada fazer”.


“O Piloto Júlio, como não tinha obtido as temperaturas desejadas e tinha consciência disso, é natural que não tenha executado uma verificação de potência.”


O Piloto André declarou:

“Tem de ser mesmo bem aquecido, porque senão pode acontecer o motor overbustar, à descolagem “.

“Só depois dos motores estarem aquecidos é que estão prontos para fazer o teste.

Um teste para a temperatura estar dentro dos limites, bem dentro dos arcos verdes, só ao fim de 10 minutos. Talvez no nosso clima seja um pouco menos...”

 

Descolagem

 

2 min e meio depois de pôr o último motor em marcha, eram 20:16:30, o piloto inicia uma rolling takeoff, sem se deter, a partir de uma intercepção da pista 36, deixando atrás de si cerca de 420m de pista desperdiçados e, mais que certo, omitindo vários procedimentos obrigatórios (só possíveis com o avião imobilizado) para testar o estado dos motores, antes de se iniciar um voo. Ainda por cima com a cena das tentativas falhadas de pôr aqueles 2 motores em marcha!

 


uyuckuckuckuc
     A laranja pista utilizada e o local do acidente, a verde, a pista desperdiçada


Aqueles 420m de pista desperdiçados, foram sensivelmente os mesmos a que se despenhará o avião, 26 segundos depois, para lá do fim da pista…

 

Durante a corrida de descolagem, ainda no chão, com motor esquerdo sempre aos ratés, muito provavelmente com falha de / ou baixa potência, o piloto baixa parcialmente os flapsaparentemente para compensar a falta da pista que desperdiçara e porque o peso do avião estava quase no limite, aumentando assim a sustentação, mas muito à custa da performance.

 

O uso de flaps durante a descolagem, não é permitido pelo manual de voo do avião e duvido que o seja em qualquer outro avião, durante a corrida de descolagem…

Este procedimento costumava o piloto fazê-lo em África, em pistas curtas, segundo outros depoimentos.

O avião descolou, largou realmente a pista, graças aos flaps, ficou no ar, mas a voar a muito baixa altitude e a muito baixa velocidade para a configuração que tinha.

A velocidade, naquele momento, calculada pela investigação, era de 100MPH.

Segundo o Manual do avião, a velocidade mínima de controlo horizontal do avião com perda de um motor, é de 107 MPH.

E a velocidade mínima, para conseguir executar todos os procedimentos normais, mas com falha de um motor á descolagem, é de 120 MPH.

Além da baixa velocidade, o avião tinha, irregularmente, os flaps parcialmente de fora o que penalizava fortemente o voo.

Os flaps foram encontrados nos destroços da aeronave na posição entre 5,6º e 7º.


Piloto Marco:

“Eu e o Piloto Júlio, em Moçambique, habituamo-nos a usar flaps na parte final da descolagem.

“No Cessa 421 fazíamos isso à volta das 100 MPH. Julgo que o Piloto Júlio também costumava fazer isso. Voei com ele cá várias vezes e normalmente fazia-o, principalmente quando estávamos carregados com passageiros...”

Piloto André:

O Piloto Marco descolou com ele de Braga em 15º de flaps.”

Este deficiente e proibido procedimento, não permitida pelo manual de voo, tem como objectivo, alegadamente, diminuir a distância a percorrer na pista.

No entanto, a velocidade no momento da descolagem (100 MPH) é inferior à recomendada para a hipótese da falha de um motor (120 MPH com flaps recolhidos) e abaixo da velocidade mínima de controlo lateral (rudder) do avião com perda de um motor (107 MPH).

 

O piloto recolheu o trem e a cerca de 30 metros (90 pés) o avião suspende a subida mantendo inicialmente uma altitude mais ou menos constante.


Jaime, controlador da Torre:

Notei então uma atitude anormal na linha de subida do avião, que chegou a uma certa altura estacionou na sua subida e iniciou uma curva descendente [...] a perspectiva que tenho do lugar não permitiu verificar se ele se adornou ou virou para um lado ou para o outro, a minha perspectiva de profundidade não permite garantir para que lado se virou... a percepção que eu tive foi que ele teria a asa direita, estaria posta em baixo [...]

Após o início da corrida, não houve qualquer contacto ou tentativa de contacto da parte do Piloto Mendes com a torre e não me apercebi de qualquer anomalia no barulho dos motores que indicasse qualquer anomalia dos mesmos.”

 

2 Testemunhas oculares disseram:

O avião levanta voo e quando sobe a 40/50 metros tem uma quebra brusca; o motor começa aos ratés, expelindo faíscas pelo escape”.

 

 

Falha de potência e paragem do motor esquerdo

 

Perante esta quebra de potência, o piloto Júlio pede ao outro piloto, o tal não qualificado naquele tipo de avião, para transferir combustível para o motor esquerdo, que estava quase a parar, mas ele, não qualificado, obviamente pouco á vontade no avião, coloca, erradamente, a válvula de transferência de combustível em OFF, cortando de vez o motor…

 

Esta válvula ficou absolutamente intacta nos destroços. O braço da alavanca da válvula não estava encostado ao batente limitador de curso, como logicamente sucederia se tivesse sido colocado nessa posição devido a um esforço resultante do próprio acidente ou remoção, mas sim na posição de desligado, (a esfera estava introduzida no respectivo fuso), o que leva a presumir que foi seleccionada para tal posição, embora erradamente.

 

Factos Comprovados:

O avião deixa então de ter performance suficiente para manter a razão de subida, agravada pelo uso irregular dos flaps, pois com 2 motores em funcionamento passaria

 no final da pista 36 a cerca de 98 metros de altura, em vez dos 30 metros a que passou.

 no local do impacto a cerca de 174 metros de altura, em vez de 20 metros.


O tempo decorrido desde a descolagem até ao impacto, 26 segundos, permite definir a velocidade média do voo de cerca de 101,6 MPH, que não se coaduna com o funcionamento pleno de dois motores.

Neste caso, o avião teria atingido o local de embate com uma velocidade superior e, consequentemente, em menos tempo.

O posicionamento e a análise das pás do hélice do motor esquerdo (duas dobradas para trás com um ângulo de cerca de 45º e uma intacta) indicam que as mesmas estavam em baixa rotação (não em “bandeira”, com o motor parado) no momento do primeiro embate.

O percurso do avião com desvio longitudinal para a esquerda, desfasado de cerca de 20º do rumo de descolagem, é compatível com a potência superior do motor direito em relação ao esquerdo.

A reacção inicial do piloto para manter o controlo direccional do avião com asa direita em baixo é indicadora da aplicação da técnica preconizada pelo Manual do Avião, em caso de falha do motor esquerdo. Não com toda a eficácia devido á baixa velocidade.

A leitura dos indicadores de pressão de óleo dos motores (um com cerca de 100 psi e outro com cerca de 15 psi) indica que um deles não estava a desenvolver potência compatível para a descolagem, ao contrário do outro motor.

A válvula selectora do combustível do motor esquerdo encontrava-se na posição OFF.

Tenha-se também em atenção que se tinham, observado, anteriormente, ocorrências de falha do amperímetro do alternador direito.

Piloto André  declarou que “o alternador direito não debitava nada [...] Esse alternador deixou de funcionar.”

E era o motor que estava a funcionar, se calhar sem alternador, sem fornecimento de energia eléctrica para a normal condução do voo, já que o motor esquerdo estava parado…

Com falha total do motor esquerdo e sem o gerador no motor direito, que estava avariado, a bateria esgotada pelas várias tentativas de arranque, ficam sem energia eléctrica e todo o avião, subitamente, fica às escuras naquela noite de Inverno e já não podem recolher os flaps, que precisam de energia eléctrica para funcionarem.

Atrapalhados, sem nada verem a não ser as luzes da cidade, mas também sem tempo para fazer mais coisa nenhuma, tinham acabado de sobrevoar o fim da pista, não põem em bandeira as pás do hélice do motor esquerdo, parado, provocando assim ainda maior resistência ao avanço.

Mas como o avião também não tinha atingido a velocidade mínima de controlo direccional, iniciou uma ligeira curva, descendente, para a esquerda, com a asa direita em baixo para compensar a falha do motor esquerdo.

 

O avião tentava agora desesperadamente voar:

  •     Com um motor parado
  •     Sem energia eléctrica
  •     Com uma velocidade duplamente abaixo das recomendadas
  •     Uma proibida configuração de flaps
  •     As pás do motor esquerdo não em bandeira
  •     Sem potência suficiente para superar tudo isto.

 

Assim:

  •     Não consegue desenvolver aceleração
  •     Não tem suficiente controlo horizontal
  •     E está a perder altura, já a muito baixa altitude.


Ou seja, a partir deste momento agrava-se a situação, quando já não havia nada a fazer.

O avião, acabado de sair, forçadamente, do chão, está sem controlo.


Daqui para a frente, é tudo em vão…façam o que fizerem!


Reparem que a descrição que vos estou a fazer desde o início da descolagem, que eu cronometrei e leva pouco mais de 4 minutos a ler, ultrapassou, em muito, os 26 segundos que mediaram entre o início da descolagem e o final do voo, ou seja, o despenhamento do avião em Camarate, pouco mais de 400 m depois do fim da pista.

 

Foram só 26 segundos…

 

Augusto (Segurança no Portão 16):

Vi o avião ir aos ratés [...] bater contra a casa e incendiar-se [...] via-se bem, ele dava ratés e via-se bem a superfície. Só reparei quando ele me puxa a atenção com os ratés”.

 

Não tiveram tempo para fazer muito mais do que fizeram.

 

E tudo o que fizeram foi em vão…e errado.

 

Os Americanos, por aquela altura, diziam que ao 4º erro consecutivo, acumulado, um voo não tem hipótese.


Quantos erros fizeram?

 

Tantos que dava para terem quase dois acidentes ao mesmo tempo…

 


Embates no solo

 

Segundo o relatório do GPIAA, (que aqui transcrevo na íntegra mas cortando e adicionando texto meu para melhor compreensão vossa) os primeiros embates dão-se a cerca de 450 metros do fim da pista, quando o avião corta, com a asa esquerda, os fios condutores na linha de baixa tensão de iluminação pública, a uma altura de 18,5 metros em relação à pista, seccionando-os.

Ganha depois um pouco de altura, provocada pela reacção do piloto e, a cerca de 100 metros à frente, no rumo aproximado de 340º, com acentuado pranchamento à esquerda e de nariz em cima, (numa atitude, nitidamente, dada a baixa velocidade, de configuração de “perda” aerodinâmica, ou seja, falta de sustentação) vem a embater, nas traseiras da vivenda Paulos, incluindo na chaminé e nos pilares de cimento, onde rasga os tanques auxiliares de combustível da asa esquerda.

Colidindo com a vertente sul do telhado desta vivenda, a secção exterior da asa esquerda é cortada, junto ao motor, o que provoca a separação do tanque principal e do tanque auxiliar, que ficaram no telhado, a dobra de duas pás do hélice do motor esquerdo, fragilizando ainda, os apoios deste motor no respectivo berço.

 

Consequência dos primeiros embates na trajectória:

 

Após estes embates iniciais o avião, sem o tanque principal e parte da asa esquerda, voa descontrolado com forte inclinação sobre a esquerda, ainda com o motor direito a trabalhar, e embate com o estabilizador horizontal esquerdo no poste de iluminação pública encostado à vivenda Adília.

Isto provoca uma rotação brusca do avião, em pião pela esquerda, de cerca de 180º, acentuada pela propulsão do motor direito. Esta “manobra” revela claramente que a velocidade do avião era agora muito baixa, senão não teria feito um “pião”.

O motor esquerdo e o estabilizador horizontal desprendem-se do avião, vindo a cair juntos na Rua Ferramenta.




O restante da aeronave, com forte inclinação à esquerda, vem a cair sobre o telhado e terraço da vivenda Zeca, em sentido contrário ao que seguia. Parte da asa direita e o respectivo depósito principal foram arrancados, provocando um buraco na vivenda Fatinha onde é encontrado o aro do farol de aterragem dessa asa. A zona do motor direito bate no parapeito da varanda, desprendendo-se e caindo na rua.

Após os primeiros derrames de combustível no telhado e varanda, provocados pela fractura dos depósitos de combustível do lado direito, inicia-se um fogo neste local que se propaga à aeronave.

O restante do avião, já em fogo, descai progressivamente para a rua, ficando quase na vertical, sobre a traseira de uma viatura ali estacionada e inclinado sobre a esquerda.





Devido à posição quase vertical, torna-se impossível a saída dos ocupantes, dada a sua desorientação, estarem às escuras e também porque a porta se encontra agora acima deles.

Segundo declarou o Médico Dr. Mason, os ocupantes estavam vivos após a imobilização do cockpit, dada a pouca carga dinâmica do embate pela reduzida velocidade do embate, (após a série de impactos anteriores), o que justifica não ter havido muitas fracturas nos corpos das vítimas que morreram no local.

O avião arde intensamente, devido à posição inclinada, com forte incidência na cabina por ser a zona onde existe maior número de materiais combustíveis.

O fogo torna-se de fácil combustão, com chamas a atingirem os 11 metros de altura, tendo sido extinto pouco depois pelos bombeiros, os quais terão chegado 4 a 5 minutos depois.

Os cinco passageiros e os dois tripulantes morreram carbonizados, tendo inalado elevada percentagem de monóxido de carbono.

Segundo o Prof. Luís Concheiro Carro, a ingestão de monóxido de carbono acontece após o incêndio.

 

 

Avarias detectadas durante a investigação

 

Analisados, mais tarde, os destroços do avião, observou-se que:

1 - Não foi encontrado combustível nenhum no depósito da asa esquerda, que nem ardeu…

2 - As velas dos motores, estavam praticamente todas fora dos valores limites indicados pelo fabricante.

3 - Ambos os magnetos tinham mau funcionamento a baixas rotações.

4 - O gerador do motor direito, único que se encontrava a trabalhar, apresentava:

a.    enrolamentos totalmente queimados

b.    rolamentos gripados e por isso

c.    o ensaio foi considerado negativo.

 

 

Conclusão

 




Relatório escrito à mão, no Registo de Ocorrências, pelo Controlador da Torre do Aeroporto de Lisboa:

 

“O YV 314 P, com autorização de voo para o Porto, após ter sido dada autorização para alinhar e descolar na pista 36, com indicação de vento calmo, inicia a corrida para descolagem e ainda a muito baixa altitude, inicia, ainda antes de ter ultrapassado o topo da referida pista, uma trajectória descendente indo despenhar-se no enfiamento da pista, já fora do perímetro do aeroporto, tendo explodido em contacto com o solo”.

 

Isto foi o que realmente aconteceu. Visto da Torre de controlo, á noite.

 

Serviu, ao menos, de exemplo. Para isso é que se investigam acidentes. Para isso é que se elaboram normas para o transporte das altas individualidades do Estado.

 

Bater na tecla do atentado, além de um real atentado á inteligência, é principalmente limitar uma investigação que pode servir de lição, como tem servido desde que os aviões voam, para que a segurança melhore.

 

E pensem se era mesmo necessário um atentado para tudo o que realmente aconteceu…

 

Mesmo que tivesse explodido uma bomba, vamos imaginar, com muita vontade, muita força, só poderia ter sido depois de terem movido erradamente a válvula de transferência de combustível para OFF, isto porque, como diz o NTSB, “a inibição de um dos pilotos nunca levaria á paragem do motor esquerdo e mantendo-se os dois motores a trabalhar á potência de descolagem, desenvolver-se-ia uma aceleração e velocidade maiores, que nestas circunstâncias resultariam no embate do avião, nas casas, com características completamente diferentes”.

 

Antes, não poderia ter acontecido, porque os incapacitaria para fazer qualquer acção. E com o motor cortado a situação era a que já vos descrevi e a situação não se alterava, de todo…

 

“Em 2002 uma Comissão reviu o acidente e concluiu que o acidente foi causado pela combinação do corte inadvertido do motor esquerdo, com uso indevido de flaps na decolagem, não embandeiramento do hélice do motor esquerdo e centro de gravidade do avião fora dos limites, num avião perto do peso máximo permitido.”

 

Atentado, atentado, foi terem deixado um 1º Ministro e o seu Ministro da Defesa voarem naquele avião com aquela meia tripulação, já que um dos pilotos nem sequer estava qualificado no lugar, como aliás bem o demonstrou.


Como piloto, não posso, também, deixar de chamar a atenção para a carga de trabalho do piloto do avião, da acumulação de períodos de trabalho nocturno consecutivos e da falta de acompanhamento e aconselhamento de uma autoridade responsável pela realização de um voo de tal responsabilidade, como se os passageiros fossem paisanos em viagem de lazer...


A todos os que perderam a vida naquele voo, os meus respeitos.





Nota:

Algumas imagens foram colhidas de vídeos da RTP.

O desenho da Pista, do Livro: "Sá Carneiro - Caso Camarate -  Acidente ou Sabotagem", da autoria de António Neves. Edições Colibri