Publicações - Parabéns Quelimane



20 de Setembro...


Hoje é o dia da Cidade de Quelimane.
Há mais de 70 anos foi elevada a Cidade.
No dia 20 de Setembro de 1942.

Tinha eu 1 ano e pouco de vida.




Foto recente de Quelimane




Quelimane foi decisiva para a descoberta do Caminho Marítimo para a Índia. Foi aqui que Vasco da Gama, em 1498, teve notícias do muito Comércio que já naquela altura por ali se fazia com a Índia.

Foi aqui que iniciou as diligências para contratar um Piloto que o guiasse até á Índia aproveitando as Monções.




A cidade no início do Sec XX


Foi aqui que me apaixonei pela primeira vez.

Exactamente no dia 5 de Julho de 1953.

No dia em que fiz 12 anos. No dia em que desembarquei naquele cais do Rio a que Vasco da Gama chamou "dos Bons Sinais", que dá o nome a este Blogue.

Vinha de um colégio interno (Instituto Portugal) onde estava há dois anos. Fiz a viagem de barco desde Lourenço Marques num navio costeiro, sozinho, numa viagem de sete dias.



Lurio



Dois anos antes o meu Pai metera-me neste mesmo barco ou noutro semelhante não me lembro para iniciar a 5ª classe naquele Colégio por não haver mais que a 4ª classe em Pebane onde morávamos na altura e onde o meu irmão mais novo nasceu.

Tinha eu portanto 10 anos…


A cidade e o Rio dos Bons Sinais



Depois do almoço após o barco zarpar de Quelimane para Lourenço Marques, os seis passageiros que eu nunca tinha visto, já que não conhecia ninguém a bordo, reuniram-se no bar para o café e o bagaço da ordem.

Conversa puxa conversa eu a um canto muito calado ouvi um dos meus companheiros de viagem dizer bem alto:

- Logo vamos ao pacote ao puto.

Nos meus primeiros 10 anos de vida sempre a viver no mato sem miúdos brancos com quem brincar (os meninos pretos eram os meus únicos e melhores amigos) nunca tinha tido medo de nada a não ser de uma viagem de almadia (piroga feita de tronco de árvore escavado) com os meus pais numa travessia em dia de temporal e de uma cobra, na Maganja da Costa, que às tantas apareceu do nada entre as cadeiras em que eu e a minha irmã mais velha, a Lourdes, nos sentávamos ela a ler-me o Cavaleiro Andante.



Foto do porto de Quelimane muito antiga


Aquela frase dita num bar de um pequeno barco costeiro no meio do Oceano Índico entre gente desconhecida eu com 10 anos sozinho sem família nem ninguém a quem pedir ajuda, levou-me a lutar contra o que me pareceu, vagamente, ser uma ameaça.

Nem eu sabia o que em gíria “pacote” queria dizer.

Nem eu sabia que havia sexo e muito menos pedofilia.

Mas o instinto de sobrevivência levou-me a sair calmamente do bar e a desaparecer naquele pequeno barco, ilha minúscula no grande Oceano Índico.

Resultou.

Era noite cerrada quando finalmente o Comandante do naviozinho me encontrou escondido debaixo de um oleado dentro de uma baleeira.

Acalmaram-me e disseram-me que estavam a brincar comigo, brincadeiras parvas já se vê.

O resto da viagem decorreu sem mais incidentes.

Comecei por dizer que Quelimane foi onde me apaixonei pela primeira vez. Paixão que durou uns bons 8 anos. Pudera a Bela era a miúda mais gira de Quelimane por quem todos se apaixonavam quando lá chegavam e era minha vizinha e irmã de um dos meus3 ou 5 grandes amigos, até hoje.

Apaixonei-me depois variadíssimas vezes mas a última... é que foi fatal! Vivemos há 26 anos juntos.

Mas Quelimane foi muito mais que uma paixão.

Foi onde aprendi a conviver com gentes muito diferentes de mim sem isso causar conflito algum.

Perfeita analogia com o que aconteceu ao Vasco da Gama o que me enche o ego mas com pouca validade como se perceberá…

No Colégio de Freiras onde estudei, o Colégio do Sagrado Coração de Maria porque não havia Liceu, contrariamente ao que se passava em Portugal Continental, na Colónia de Moçambique (na altura ainda não era uma Província) todas as salas de aula tinham rapazes e raparigas, cristãos e nessa altura eu Comungava todos os dias, protestantes, muçulmanos com o seu Ramadão que respeitávamos muito por o cumprirem à risca e simultaneamente todas as obrigações académicas incluindo desporto, hindus, mestiços, goeses, pretos e brancos tudo à molhada e com fé em vários deuses..



O Colégio novo que eu já não conheci mas vi em obras





A Igreja de Nª Srª do Livramento, hoje em ruinas


O Mundo para mim ainda é assim. Uma grande panela onde cabe tudo e todos têm direito ao mesmo lume aos mesmos temperos e acabam cozinhados todos ao mesmo tempo.

Uns têm melhor sabor que outros.

Nem sempre se gosta de tudo.

Mas há sempre quem goste. É normal assim.

Em Quelimane aprendi a andar a sério de bicicleta

Pratiquei muito também o fascinante desporto de “roubar” almadias “perdidas” e então remar ao longo da marginal e pelos mocurros acima que são pequenos riachos, na maré enchente e depois descê-los a toda a velocidade na vazante. Mas depois deixava-as onde as tinha tirado.

Aprendi a desobedecer e a ser penalizado da maneira que mais dói.

Um fim-de-semana em que estava proibido de ir ao cinema se calhar por más notas pisguei-me a meio da tarde como se fosse dar uma voltinha de bicicleta.

Mas o meu Pai, Administrador de Quelimane e portanto Comandante da Polícia é que desconfiava onde é que eu me tinha metido entretido a desobedecer-lhe.



Era neste edifício, a Camara Municipal, que o meu Pai trabalhava


A meio do filme tudo às escuras e em silêncio profundo as pipocas eram ali desconhecidas ouve-se na coxia uma frase em voz bem alta e muito afirmativa:

- Minino! Sr Administrador está chamar!

Era mesmo um Cipaio impecavelmente fardado de cofió e tudo. (Polícia negro com o característico barrete castanho) de dedo em riste a apontar para o meio da fila exactamente onde eu estava sentado, já todo encolhido.

Felizmente o cinema só levava 200 pessoas e TODOS sabiam quem eu era…

Em Quelimane aprendi a nadar bem na Piscina Municipal construída em 1937 com o treinador do Campeão Nacional de bruços João Godinho meu colega no Colégio. O Treinador chamava-se Passeti.



A legenda desta foto diz: Clarinha Soares de Albergaria Ferreira Martins, tia da Clarinha Múrias, duas amigas e a sua mãe Petitinha Soares de Albergaria Brandão de Mello. Na piscina de Quelimane, 1949.



Em Quelimane comecei a tirar a carta de condução teria 16 anos com um Instrutor que às tantas adormecia e eu andava por ali fora sozinho no meio da cidade a embalá-lo docemente não fosse ele acordar e lá se ia o gozo.

Foi em Quelimane que a minha vida sem eu o saber tomou o rumo que me havia de levar até à Reforma:

- Aprendi a voar num Piper Cub do Aero Clube da Zambézia com o Instrutor Câmara e fui largado (voei sozinho) com 16 anos e 8 horas de voo. Com subsídio da Mocidade Portuguesa pois claro.



Era mais ou menos assim...


Foi em Quelimane que fiz outro dos 2 ou 3 ou 4 ou 5 grandes amigos para a vida. O Pedro era filho do Governador Civil, Dr Gouveia e Melo, chefe do meu Pai.

Para que se saiba este senhor é tio de um português Ilustre, bem conhecido na Pandemia de 2020. O Vice-Almirante Gouveia e Melo, Coordenador da Task Force da Vacinação contra o Covid 19, é filho do irmão mais novo deste senhor que era Avogado em Quelimane.

O Vice-Almirante Gouveia e Melo nasceu em Quelimane.

Nós os dois, o Pedro e eu, aprendemos a hipnotizar com o curso do Sr C. H Ciernan que encontrámos na Biblioteca Municipal da cidade.

Comprei, anos depois, os livrinhos e ainda os tenho.

Era o Joel a nossa “vítima”. Um colega do Colégio. Com ele conseguimos ler o pensamento das pessoas e o meu amigo Pedro sabia sempre quando devia ir para casa porque o Joel o avisava dos passos do Pai não fosse o “velho” chegar primeiro e ele não estar lá como devia. Nunca falhou. Mas a Madre Albert soube das nossas actividades "paranormais" e fez-nos jurar que nunca mais o fazíamos e por ali nos ficámos.



O Palácio do Governador, a casa do Pai do Pedro






Reunião de Administradores em Quelimane. O Governador Dr. Gouveia e Melo está na frente de casaco branco e o meu Pai logo atrás dele por sobre o ombro esquerdo.



Também foi em Quelimane que aprendi que as diferenças entre as pessoas são para serem respeitadas até ao último grau. Não me refiro a uns seres mais que os outros mas a sermos todos diferentes.

Um fim de tarde apareceu um Cipaio aflito em nossa casa e pediu ajuda pessoal ao meu Pai, na qualidade de Comandante da Polícia:

- Sr. Administrador! Tem um branco bêbado na Mesquita sentado na cadeira do Profeta a dizer:

- Agora aaaadorem-me!

O meu Pai quis ir prendê-lo, pessoalmente, para dar o exemplo.

Foi em Quelimane que comecei a ver o que era política.

Nas eleições em que o Gen Humberto Delgado participou os comícios eleitorais eram em recintos fechados com a devida autorização obrigatória.

Ora a União Nacional do Estado Novo do Salazar resolveu fazer um comício em Quelimane e nem se preocupou com autorizações nenhumas.

Foi o Pai do Pedro, o Governador Civil, que convenceu o meu Pai a não "mandar prender aqueles gajos todos". Era o que lhe apetecia fazer…

Já agora digo-vos que embora 2/3 dos zambezianos tenham votado em Umberto Delgado, foi Américo Tomás quem, oficialmente, ganhou. Coisas do Estado Novo...

Quando saí de Quelimane após o 5º ano porque não havia 6º no Colégio não sabia que nunca mais viveria naquela terra tão amada.

Mas não faz mal.

Eu nunca saí mesmo de Quelimane…

Parabéns Quelimane!!!
Parabéns Quelimanenses!
Parabéns Chuabos!

Mas não fui só eu quem se apaixonou por aquela terra.



Vejam o que um  Vice - Almirante disse de Quelimane em 2021


«Quelimane - a minha Terra, uma inspiração. 

Quando olho para o caminho que percorri, agradeço a Deus ter nascido nesta pequena e pacata cidade, na foz do rio dos Bons Sinais, em Moçambique, onde as circunstâncias me proporcionaram uma infância verdadeiramente feliz e equilibrada, entre a natureza, muito presente no dia a dia, seres humanos de diferentes raças e credos, numa comunidade vibrante e cheia de energia, num mundo pequeno inserido num oásis num espaço muito mais amplo, africano.  Foi aí também que senti o sopro dos ventos de mudança que afetaram todas as nossas vidas futuras, a Revolução, o princípio da descolonização, o fim do último império ocidental.  

Vivia na marginal, a 50 metros da Piscina Municipal, com o rio dos Bons Sinais pela frente e a Igreja de Nossa Senhora do Livramento ao lado. 

Os meus pais educaram-me com princípios e valores cristãos, respeitador, autoconfiante, mas sem orgulhos  deslocados ou sentimento de qualquer forma de superioridade, com carinho quanto bastasse, mas sem proteção especial. Conferiram com isso “asas” à minha resiliência e adaptabilidade, essenciais no meu futuro percurso. 

Lembro-me de viver entre a Piscina, o Clube Náutico, a Escola Vasco da Gama, o Colégio Paulo VI e, depois, o Liceu João Azevedo Coutinho, já nos arredores da cidade. 

Guardo memórias de cheiros e sons do rio dos Bons Sinais, onde nadei, brinquei e velejei, dos amigos da marginal, dos Sedeval Martins, meus amigos de infância e adolescência, da Capitania do Porto e da sua rampa,  onde se picava a ferrugem dos cascos metálicos das embarcações, dos passeios e das caçadas nas savanas africanas, das praias, em especial da fabulosa praia de Zalala. 

Guardo também memórias do meu irmão, já falecido, o Manuel, maior do que a vida, um verdadeiro enfant terrible, que deixava o meu pai com “os nervos em franja,” mas que tinha “ um coração do tamanho do mundo ” e que se tornou uma personagem na cidade. 

Lembro-me que Quelimane na sua pequenez era estranhamente cosmopolita, uma junção de europeus, africanos, indianos e alguns chineses, com duas igrejas e uma mesquita, parte natural da comunidade. 

Regressado de África em 1975, fui para o Brasil, onde passei da pacata Quelimane, com uma pequena paragem em Viseu, para a gigantesca metrópole de São Paulo. Curiosamente, não me senti amedrontado, algo de selvagem em mim, nutrido em África, me preparou para  esse choque e para muitos outros seguintes. 

De volta a Portugal, entrei na Escola Naval em 1979. Curiosamente, e por feliz coincidência, aportámos no mesmo curso três quelimanenses: eu, o João Azevedo e o José Costa e Castro, este último meu companheiro nos submarinos durante muitos anos. 

Quiseram as circunstâncias da vida que o mar, na sua dimensão, a solidão e  a torça dos elementos me fizessem sentir tantas vezes a minha terra natal, na imensidão das suas planícies e savanas, nas tempestades tropicais e na força indomada da natureza que nos  fazia sentir pequeninos, indefesos e com um verdadeiro sabor da fragilidade humana. Nestas ocasiões, os cheiros, os sons e os esplendor do pôr e do nascer do sol prendiam-me num limbo transcendente de quase felicidade. 

Após uma longa carreira na Marinha de Guerra Portuguesa, grande parte realizada em submarinos, as circunstâncias vieram tornar-me o coordenador do processo de vacinação contra a covid-19. 

O processo de vacinação contra a Covid-19 veio colocar Portugal numa posição cimeira e singular, tendo sido o primeiro país do Mundo a ultrapassar a marca de 85% de vacinação completa.

Este sucesso não é meu, mas de toda uma comunidade que se soube unir em torno de uma ideia simples: combater um vírus mortal e resgatar o controlo das nossas vidas. Isto implicou um esforço coletivo gigantesco, em que reagimos, de forma excecional, enquanto comunidade unida por um desígnio. Estou em crer que vencemos a primeira batalha, mas que a “guerra” continua e que nada está ainda garantido a longo prazo. E é sobre isto que gostaria de escrever algumas poucas palavras e através delas lembrar Quelimane. 

Enquanto privilegiado que fui,  pela posição e pela sorte, não posso esquecer de que tínhamos uma relação muito desigual para com uma grande comunidade de africanos à nossa volta. Durante a crise e a entrada da Troika para Portugal, voltei a pensar em Quelimane, interiorizando melhor o que se sente quando nos acusam de indolentes, quando rebaixam a nossa estima e nos roubam a esperança. Por isso, Quelimane não é para mim uma saudade, mas uma permanente inspiração. 

O mundo ocidental tem de fazer a sua “guerra” de vacinar as partes menos desenvolvidas do planeta Terra; vivemos todas na mesma nave que circula o Sol, uma nave limitada e interconectada pela globalização. Na mesma Quelimane onde nascemos, estão seres desprotegidos, sem acesso a tantas coisas que consideramos banais. A essa e outras cidades, devemos fazer chegar as vacinas contra a covid-19, devemos lutar por isso enquanto privilegiados que  somos. 

Assim termino a minha história sobre Quelimane, dizendo que Quelimane me gravou no coração a certeza de que não há seres humanos menos importantes ou descartáveis nem lugares que possam ser esquecidos e que não mais deixarei que a minha consciência descanse e que seja “envenenada” por uma ética e moral relativa, focada só num pequeno mundo próximo. 


Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo,»


Vice - Almirante, Coordenador da Task Force contra a Covid 19 em 2021.

 







(Ultima actualização em 26 de Fevereiro de 2022)