As coisas que podem acontecer a um jovem aviador aprendiz!
Os primeiros voos em F-86,
na Esquadra 51 em Monte Real, eram sempre uma experiência vibrante. Todos
queriam cumprir à risca a exigente disciplina e estar à altura do que era
esperado de todos nós. Afinal tínhamos a sorte, mas também o mérito, de voar o
avião no topo da hierarquia de todos os da Força Aérea Portuguesa.
Um avião monolugar para o
qual não havia simulador. Era entrar e fazer o primeiro voo consciente de que
poderia ser o último. Mas na nossa Força Aérea nunca aconteceu…
E numa esquadra em que
havia Oficiais da Academia Militar, de Majores (o nosso Comandante de Esquadra)
a Alferes (estes, obviamente, ainda sem muita experiência) Sargentos-ajudantes e 1ºs
Sargentos (muito, muito experientes) e Furriéis (a caminho de virem a ter
alguma experiência…) as saudáveis rivalidades nunca chocavam com as
competências e os deslizes de uns e outros.
Deslizes, deslizes, todos tínhamos. Mas pagávamos por isso. Em multas a que chamávamos bicadas. Em escudos depositadas num mealheiro que era aberto ao fim do mês para ajuda de jantares. Indescritíveis jantares onde valia tudo. Por vezes a convite de Administrações de Caves de vinhos, cujas primeiras "vítimas" eram eles mesmos, os Administradores. Mas a amizade era assim cimentada. Tempos de guerra, de quem já lá tinha estado ou para lá caminhava ou voltava. Amizades destas perduram toda a vida. Quase 50 anos depois as relações estão intactas!
O Comandante da Base,
Coronel Soares de Moura, promovido a Tenente Coronel e a Coronel por distinção,
era, obviamente, o mais digno aviador.
No caso dos Furriéis, Ary,
Leite da Silva e eu, estas questões entre nós não se punham em termos de rivalidades mas
sim num feroz combate ao erro, à indisciplina, ao facilitismo. Éramos muito
críticos uns dos outros. E como vivíamos numa casa que alugámos no meio da vila
de Monte Real, era fácil este lavar de roupa suja.
Só entre nós, normalmente
depois do jantar, de modo a que no dia seguinte as coisas voltassem ao rigor
que nos impúnhamos. A nossa grande amizade (que perdura e perdurará sempre, afinal
ambos são meus Padrinhos de Casamento…) nunca deixou nenhum de nós os três para
trás.
|
Ary Meca Murraças, Leite da Silva e eu |
Além disso tínhamos os
Sargentões todos à perna! Ai de nós se algum fugia um milímetro da linha…
Aquela Base Aérea foi a
minha maior escola de vida.
Muita camaradagem mas só
para quem cumpria. Era preciso ser o melhor, ou pelo menos demonstrar que se
lutava para isso.
E quando se subia para o
avião, naqueles dois passos mágicos, sem escada, caia-nos subitamente em cima
todo o rigor necessário para a execução rápida dos procedimentos. O timming era para cumprir, os
procedimentos para executar à risca mas a segurança não era para desprezar, de modo algum!
Quando o Comandante da
Esquadrilha (4 aviões que iriam voar juntos) estivesse pronto, os outros três aviadores
dentro dos seus aviões já deviam estar à espera do sinal para deixar o
estacionamento rumo à pista.
Nos primeiros voos era uma
terrível azáfama para fazer tudo bem e no tempo certo. Faltava-nos sempre o tempo.
Sobravam sempre as mãos...
E quando uma contrariedade
acontecia era como se o mundo estivesse prestes a acabar. Principalmente se era
fruto de algo errado que tivéssemos feito.
Quando tal acontecia, com os
segundos a passar aos dois e três de cada vez, havia que voltar a verificar
muito rapidamente os procedimentos todos de novo antes de declarar a nossa
eventual incapacidade em prosseguir a missão.
Situação delicada… fui eu que meti os pés ou isto está mesmo a
acontecer!?
Num dia assim, um aviador dos
menos experientes mas muito dedicado e competente descobre que tem uma luz
acesa, quando já estavam todos prontos para sair da placa de estacionamento com
os reactores a rugir.
O comandante da Esquadrilha, ciente do breve atraso, tentava já perceber o que se passava sem querer
apressar o novato.
A luz, mais brilhante que o
Sol, como lhe parecia naquele aperto, mesmo no meio do painel de instrumentos, faiscante
à frente dos seus olhos era amarela e dizia:
- “Low Oil Pressure”.
Terrível, terrível!
Avaria grave, quando se
sabe que os motores precisam de óleo para suavizar o atrito entre as partes que
se movem a grande velocidade. Sem óleo um motor está condenado.
E aquele voo também parecia
estar condenado, logo à partida.
- É preciso ter azar…
E agir com rapidez!
O motor
pode gripar, como o de qualquer corta relva…
Enfim, um grave impedimento
para a execução do voo a pedir a intervenção pronta da Manutenção, ainda por
cima agora que já estão todos os reactores a trabalhar o que impede uma
circulação livre à volta dos aviões pelo perigo de alguém ser sugado ao passar
em frente deles.
O nosso aviador aprendiz
faz sinal ao Cabo Mecânico que sobe lá acima e inteirado do problema, estudada
a situação rapidamente, considera-se também incapaz de dar andamento ao
problema e vai chamar o chefe da Linha da Frente, sempre a andar por ali a
supervisionar as coisas.
- Luz do óleo do motor,
acesa? Coisa estranha e pouco comum… vamos lá ver o que se passa.
O nosso 1º Sargento
Mecânico, daqueles homens que todos nós, pilotos, conhecemos, profundamente
conhecedores dos aviões que têm a seu cargo, sábios também na maneira de lidar
com aviadores a cheirar ainda a pó de talco, ou mesmo dos outros a cheirar a
Gitanes sem filtro e dentes amarelos, dirige-se rapidamente ao avião e sobe.
- Então, o que se passa?
O stressado aviador, estica
o braço e com um dedo aponta, infeliz, para a ofuscante luz amarela.
- A luz do óleo! A luz do óleo!
Mas ninguém o consegue
ouvir.
Com todo aquele barulho e de capacete na cabeça, o diálogo não era fácil. Mas lá se entenderam.
O nosso muito competente 1º
Sargento, chefe da Linha da Frente, o barulho de todos aqueles reactores a
entrarem-lhe pelos ouvidos, dá uma rápida olhada a todos os instrumentos do
cockpit, analisa a situação e embora habituado a algumas asneiras naturais em
novatos, é com alguma bonomia e muito espanto, mas com um sorriso que qualquer
Pai faria em situação semelhante, que dá uma pequena palmada no ombro do
aviador e diz-lhe bem alto, tão alto que ele ainda hoje deve ouvi:
- Ó nosso Alferes! Porque é que não
experimenta pôr o reactor a trabalhar!?...
Para quem não está dentro
destes assuntos, aquela luz só acende quando, estando o reactor a trabalhar, falha
a circulação do óleo pelo motor.
Ou, como neste caso, com o
reactor ainda parado… à espera que alguém lhe tivesse ligasse a ignição, como já
devia ter feito… e por stress se esquecera.
Este muito jovem Top Gun era muito divertido, muito bom camarada, excelente piloto e com uma sólida formação.
Ocupou mais tarde altos cargos na Força Aérea.
Para ti, um grande abraço...
(Actualizada em 19 de Abril de 2016)