Na Guerra do Ultramar - O nosso envergonhado Túmulo do Soldado Desconhecido



Para homenagear aqueles que em combate deram as suas vidas e que anonimamente repousam para sempre, sendo um exemplo de sacrifício para que outros possam viver em paz e segurança, foram criados espaços mais ou menos elaborados, com maior ou menor ênfase no cerimonial, com maior ou menor empenho na atitude de respeitar quem se homenageia. Com maior ou menor vontade de nos dignificarmos a nós mesmos no modo como mostramos o que o local significa para nós.

Os primeiros começaram a ser erigidos no sec XIX e mais modernamente em 1920 no Reino Unido na Abadia de Westminster e em Paris no Arco do Triunfo. Outros foram também construídos nessa altura nos Estados Unidos, “Tomb of the Unknowns”, em Itália, “Monument to Vittorio Emanuele—Unknown Soldier” e em Portugal, “Tumulo do Soldado Desconhecido”, no Mosteiro da Batalha, inaugurado no dia 6 de Abril de 1921.

E rapidamente se espalharam a todo o mundo, já que a Guerra foi um elemento infelizmente preponderante do sec. XX.

O “nosso” Túmulo contém o corpo de dois Soldados Desconhecidos. Um da 1ª Grande Guerra, nas Flandres e outro do conflito que nessa altura se espalhou a África, em combate com os Alemães que tentavam conquistar as nossas Colónias.

E para perpetuar a memória de algumas guerras, celebrar vitórias primordiais e homenagear os caídos nesses e em tantos outros conflitos, ergueram-se também Memoriais de Guerra e Cenotáfios.

A ideia é sempre a Memória associada à Homenagem.

Para que não sejam esquecidos. Para que o seu exemplo ilumine e inspire os que os visitam.

E para que essas visitas reflictam o sentimento de respeito que o sacrifício sublime desses Ilustres Desconhecidos nos merecem.


Em meu entender o Túmulo dos “nossos” Soldados Desconhecidos não dignifica nada a sua Memória nem nos dignifica a nós próprios como responsáveis pela representação maior dos altos valores que pretendemos glorificar.



A coberto da majestade magnífica do grande Mosteiro da Batalha, também relegado para uma implantação menor, visto de cima para baixo, apequenado a partir daquela malfadada estrada que lhe fizeram demasiado perto, o Túmulo do Soldado Desconhecido parece estar guardado numa cave, não vá incomodar alguém…

No dia 15 de Janeiro de 2011 às cinco e um quarto da tarde, o Túmulo do Soldado Desconhecido da República Portuguesa apresentava-se assim aos incrédulos visitantes:






Os Soldados são Desconhecidos mas Abandonados também.

A fotografia foi tirada por mim.

Nesta foto, com ajuda do Photoshop, já se vê melhor alguma coisinha…






Feriado não era e o mosteiro estava aberto a qualquer visitante.

A menos que a Guarda de pouca Honra estivesse de folga naquele dia, não se percebe a razão de tal desrespeito.

Por todas estas razões, falta de dignidade do sítio exacto onde está, naquela sala perdida algures no grande Mosteiro da Batalha, falta de grandeza na decoração a arranjo do local e principalmente falta de visibilidade pública, os “nossos” Soldados Desconhecidos

devem ser tresladados para um local mais digno


com uma visibilidade que represente o tanto que lhes devemos e que nos dignifique a nós próprios como gente capaz de perceber, reconhecer e pagar tributo.

A seguir se mostram alguns dos mais conhecidos exemplos de como povos dignos respeitam realmente os seus símbolos maiores.


Não tem comparação possível…

 



Itália, Roma: Piazza Venezia junto aos pés do Monumento a Vittorio Emanuelle II









França, Paris: Arco do Triunfo









Canadá, Ottawa: no National War Memorial, Confederation Square.





Na Abadia de Westminster







No dia 10 de Maio de 2015 a Rainha Isabel II depõe uma coroa de flores no túmulo do Soldado Desconhecido por ocasião do 70º Aniversário do VE Day 1945, 2ª Grande Guerra, dia em que a Alemanha Nazi assinou a rendição, em Reims, França.










Uma visita guiada a esta Abadia:






Malásia, Kuala Lumpur: perto do Parlamento. A mais alta escultura em bronze do mundo





Egipto, Cairo:



E em Alexandria:





Brasil, Rio de Janeiro: sobre os túmulos de 467 militares mortos na 2ª Grande Guerra em Itália, anteriormente enterrados no cemitério Italiano de Pistoia, na Toscania.





Em Pistoia, Itália: Monumento colocado pelo Estado Brasileiro no cemitério Italiano de Pistoia.






Alemanha, Berlim: no Neue Wache reconstruido sob as indicações do Chanceler Helmut Kohl. No centro uma escultura da "Mãe com o filho morto", debaixo do óculo que expõe a escultura às inclemência do tempo, simbolizando o sofrimento dos civis alemães durante a 2ª Grande Guerra




A escultura sob o óculo, ao estilo Pietá.








Japão, Osaca: Torre da Paz






Índia, Delhi: A chama do soldado imortal, conhecida como Amar Jawan Jyoti na Porta da Índia












Estados Unidos: Cemitério Nacional de Arlington, onde repousa um Soldado Americano


"KNOWN BUT TO GOD"














E só mais dois exemplos...



Rússia, Moscovo: junto ao Kremlin, no Alexander Garden








Grécia, Atenas: aos pés do Parlamento Grego, na Praça Sintagma












Comparemos...




Portugal, Mosteiro da Batalha





Repito:


Em meu entender o Túmulo dos “nossos” Soldados Desconhecidos não dignifica nada a sua Memória nem nos dignifica a nós próprios como responsáveis pela representação maior dos altos valores que pretendemos glorificar

 



Os "nossos" Soldados Desconhecidos

devem ser tresladados

para um local mais digno!




(Actualizada em 10 de Maio de 2015)








Outras Navegações - Bacalhau com Dóris


Aqui se conta como foi...

 

"A pesca do bacalhau na Terra Nova e Gronelândia"

  ( Com dóris )

 



 
  Lugre "Argus" - Foto Comandante Alan Villiers, em 1950




Fala-se também no minucioso relato que fez disto tudo o Comandante Alan Villiers no seu empolgante livro:

"The Quest of Schooner Argus"

 

 



«Aos dois dias do mês de Julho de 1931...
 

...estando o lugre Santa Joana ancorado na Virgin Rocks, a E do Main Ledg, como não houvesse peixe suficiente para o carregamento do navio, resolveu o Capitão suspender a amarra e seguir viagem para os bancos da Gronelândia.» (ver nota 1)




Lugre-patacho Famalicão  


Era na Terra Nova que desde a era dos Descobrimentos mas principalmente a partir dos finais do séc XIX muitos veleiros portugueses pescavam o bacalhau à linha.

Fraca pesca que com o passar dos anos e muito mercê de grandes arrastões que já nessa altura começaram a dizimar os cardumes, se revelava cada vez mais escassa inviabilizando o retorno do enorme investimento dos armadores.

A penúria ameaçava então toda a indústria que estimava falir em poucos anos.



Pescávamos exclusivamente à linha, por aqui:

 


Imagem do livro do Comandante Alan Villiers



Naquele mês de Julho de 1931 rumaram à Terra Nova quatro lugres bacalhoeiros, 3 deles de Ílhavo pertencentes à Empresa de Pesca de Aveiro e um outro de uma empresa de Pesca de Viana do Castelo.




O "Santa Izabel".  A grafia dependia do pintor.  Ora era com S ora era com Z... 


O Santa Joana comandado pelo Capitão João Ventura da Cruz.

O Santa Mafalda comandado pelo Capitão João Pereira Cajeira.

O Santa Isabel comandado pelo Capitão Manuel dos Santos Labrincha.

E o Santa Luzia comandado pelo Capitão Aquiles Gonçalves Bilelo.





A rotina diária começava por volta das quatro horas da madrugada.

 







«A remos ou à vela, lá vão eles para o lejo, a procura dum bom espalco, onde a trabalhosa e enervante faina da pesca possa ser compensadora.


Mas, como nos dias anteriores, o bacalhau não aparece.

À tardinha, depois de muita procura, todos regressam ao lugre, uns quase vazios e outros com peixe à sarreta.» (ver nota 1)






O Capitão João Ventura da Cruz capitaneando o lugre Santa Joana decide então, com o acordo de toda a “companha” (o conjunto de todos os pescadores e tripulantes) rumar aos mares da Groenlândia onde no ano anterior já o lugre Santa Mafalda tinha tentado em vão chegar, mas sem cartas que o guiassem...

Ouvia-se dizer que naquelas geladas paragens, já antes navegadas por marinheiros portugueses, o bacalhau abundava, ao contrário dos mares da Terra Nova.

Foi um acto arriscado o do Capitão João Ventura da Cruz.

No dia 2 de Julho de 1931 zarpam na tentativa cega de encontrarem o ainda mais gelado destino.




Regista o comandante no diário de bordo:


“Pelas 18,30 horas, começou-se a virar a amarra e, pelas 19 horas, fizemo-nos de vela ao rumo NE 4N, com vento W e todo o pano largo.” (ver nota 1)



       Mas a Gronelândia não era já ali...
 
Infografia minha sobre o Google Earth  



Navegaram naqueles mares gelados, com toda a incerteza mas com toda a esperança durante longos e penosos dias.


No dia 15 cruzam-se com um vapor inglês cujo comandante mandou parar as máquinas deu-lhes todas as informações e até algumas cartas daquelas paragens, para grande alegria de toda a tripulação que afinal ia no bom caminho.


Mas pouco depois gelaram, literalmente ao avistarem quatro enormes ilhas de gelo, coisa que nunca tinham visto nem tido notícia.

E já no dia seguinte, a meio da manhã avistam terra.



A ilha gelada da Gronelândia...






















“Durante este período, a tripulação admirou-se bastante, não apenas com o facto de ser sempre de dia, chegando mesmo a ver-se Sol à meia-noite, nos fins de Julho...





 













...mas também com os lindíssimos e variados aspectos que lhe oferecia a enorme quantidade de gelo, que, em grandes blocos, se estendia junto à costa”







“Ancorámos na posição Lat. 63.40 N e Long. 53.00 W – Banco Fillas – com 50 braças de arame e 30 de corrente.”
(ver nota 1)

Nota: O Circulo Polar Ártico é o paralelo da latitude 66º 33' 44" Norte





Foto do blogue "Cais do Olhar"  





E por ali se mantiveram naquele “Banco” 21 dias, realizando abundante pescaria.

Foi o primeiro bacalhau pescado por portugueses naqueles mares.

O lugre haveria de escolher outros locais de pesca, outros “Bancos”, acabando por encher completamente os porões de bacalhaus amanhados e salgados a bordo, no início de Setembro de 1931.





Partem da Terra Nova para Ílhavo no dia 7 de Setembro.



“Deus nos leve a salvamento”


escreveria nesse dia no Diário de Navegação o Capitão João Ventura da Cruz do Lugre “Santa Joana”.





Como era a faina da pesca do bacalhau à linha

 


A preparação da campanha começava em Maio, por todo o país com a organização das tripulações e a arregimentação de pescadores ao longo de toda a costa, da Póvoa de Varzim à Fuzeta.

Era preciso verificar o estado dos navios, confirmar contractos de fornecimentos vários e organizar toda a operação de modo a que no dia da bênção da frota, em frente ao Mosteiro dos Jerónimos, com missa solene a que compareciam as mais altas individualidades, fosse só necessário embarcar e partir.

Nos dias anteriores, uma multidão de pescadores de todo o país acompanhados pelas suas famílias, com os trajes típicos de cada região, andava por Lisboa enchendo as ruas da baixa.

Os lugres eram abastecidos de sal (para a salga do bacalhau) combustível (gasóleo e carvão) isco (sardinhas ou lulas, entre outros) e mantimentos, tão variados como:



lugre Argus fundeado em Belém para a cerimónia de Bênção   


Carne salgada em barris, farinha, pés de porco, feijão, azeite, vinagre, água potável, vinho tinto e aguardente.

Não havia água potável para a higiene. Era um bem escasso, por isso banhos com água doce eram raros.

E finalmente, no dia da partida, aqui como exemplo por volta de 1950, com todos os belíssimos lugres e outros tipos de barcos participantes na campanha alinhados em Belém, o Mosteiro dos Jerónimos enchia-se com os tripulantes mulheres e filhos, para a solene Missa da despedida seguida da bênção de toda a frota.




Lá estavam os capitães, pilotos, marinheiros, cozinheiros e pescadores.





Ao muito solene acto que era acompanhado em todo o país, presidiam as mais altas individualidades do Estado e da Igreja Católica, Ministros, Cardeais e Almirantes.






Como o Almirante Henrique Tenreiro delegado do governo do Grémio de Armadores de Pesca do Bacalhau, muito estimado por toda a classe piscatória e considerado um génio de organização que muito contribuiu para a elevada eficiência e segurança da nossa pesca nos mares gelados da Terra Nova e Gronelândia.

O Comandante Tavares de Almeida, da Marinha, capitão do porto do estreito de Davis (entre a Gronelândia e o Canadá) e nos Bancos (de pesca) da Terra Nova para os navios portugueses.

E o Capitão do navio Hospital e de assistência Gil Eanes, com todos os oficiais, médicos, enfermeiros e demais tripulação.



 Foto do blogue "Cais do Olhar"

 
Após a Missa Solene, seguia-se a bênção da frota dada pelo Arcebispo de Mitilene D. Manuel Trindade Salgueiro, filho de um pescador de Ílhavo que morreu afogado.

A azáfama no Tejo, findas as cerimónias era muita com muitas viagens de ida e volta aos barcos para levar tripulações e recolher familiares.

Aquela extraordinária esquadra compreendia cerca de 3.000 pescadores que pescariam cada um no seu personalizado dóri.

 

Sempre eram 32 veleiros e outros 13 pequenos navios a motor...


Terminadas as cerimónias, feitas as despedidas muito emotivas, partiam para a Terra Nova com escala intermédia nos Açores

Seriam 6 meses em campanha de uma vida duríssima. 




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“The Quest of the Schooner Argus”

 


Em 1950 o Embaixador português em Washington, Pedro Teutónio Pereira, convidou o Comandante Alan John Villiers para acompanhar a nossa frota de pesca do bacalhau à Terra Nova/Groenlândia.









Alan Villiers, nascido em Melburn em 1903, era oficial de marinha australiano, praticante de vela desportiva e repórter do National Geographic Magazine desde 1928.

Reputado repórter e autor de excelentes livros sobre assuntos náuticos, o comandante Villiers era um grande admirador dos capitães e pescadores portugueses da pesca de bacalhau á linha com dóris, um só homem por barco, isolado nos mares gelados da Gronelândia.





Não lhe foi difícil aceitar o convite do nosso Embaixador e em 1950 Villers, depois de ter participado em todo o processo dos preparativos da campanha, assistiu também à bênção da frota e a bordo do Argus seguiu para os bancos da Terra Nova com a tripulação e os pescadores.







Em boa hora porque todo o relato dessa campanha foi  excelentemente documentado por si num filme que fez mas principalmente pelas inúmeras fotografias que tirou e pelo muito bem escrito livro que publicou, which remains one of the most important sources of first hand information about a once thriving industry. National Maritime Museum – Cornwall.


Publicou também um artigo e realizou um documentário para a National Geographic Magazine. 


O livro foi publicado em 1951 em Nova Iorque (Editora Scribner, 1951) e em Londres, com grande sucesso, traduzido depois em 16 línguas, dando enorme visibilidade aos nossos marinheiros e pescadores.


Foi notícia na BBC e nos principais jornais ingleses, na National Geographic Magazine e no New York Times.






Um sucesso para a Diplomacia do Estado Novo que começava a ter problemas com a recusa em negociar a independência das colónias como outros Impérios Colonias estavam já a fazer...




A minha Capanha do Argus





A versão portuguesa, “A Campanha do Argus” foi também publicada em 1951 poucos meses depois das edições americana e inglesa.

O SNI (órgão de propaganda do Estado Novo) atribuiu-lhe o Prémio Camões para autores estrangeiros sobre temas portugueses.



54 anos depois o livro foi reeditado sob o patrocínio do Museu Marítimo e do Município de Ílhavo.


Vai já na 3ª edição, pela Editora Cavalo de Ferro.

De empolgante leitura é um documento histórico mas também uma homenagem à verdadeira epopeia que foi a nossa pesca do bacalhau à linha.





Para que não se esqueça, como a tanta coisa tem acontecido...



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Depois da emotiva cerimónia da bênção da frota bacalhoeira, todos de olhos postos na foz do Tejo, a baia de Cascais já ao longe, aqueles magníficos lugres afastavam-se à bolina  na convicção da protecção Divina na campanha que iniciavam.



 Lugre Rio Lima, construido em madeira por J. Pereira Maiato, Viana do Castelo






Aqueles belos navios brancos navegavam sempre carregados.


No regresso com toneladas de bacalhau.

Mas na ida... carregados de muita esperança.

Comum a todos.


Que a campanha tivesse êxito e o mar fosse clemente.




A primeira paragem era normalmente 4 dias depois em Ponta Delgada, onde se afinavam os últimos procedimentos e se embarcavam muito experientes pescadores açorianos, profundos conhecedores dos locais de pesca.

Seguiam-se 10 dias à bolina até à Terra Nova onde teriam de aportar, em St John, S. João da Terra Nova, no caso de não ter sido possível abastecerem-se de isco em Portugal.








E a campanha começava imediatamente.







Como era a faina da pesca do bacalhau à linha com dóris.



Um homem um dori.





Todo o bacalhau era pescado à linha.

Nós não tínhamos redes nem barcos de arrasto.

Cada pescador tinha uma enorme linha de pesca, o trol, á qual eram presas outras menores com os anzóis iscados.

A palavra "trol" assim como as "chulipas" dos caminhos de ferro são aportuguesamento de palavras inglesas:

- Chulipas são os "slippers" onde assentam as linhas.
- Trol são linhas de pesca, os "trawl".

Essas linhas iscadas eram atiradas á água por cada pescador, único tripulante do seu pequeno dóri.

No meio de bancos de gelo, verdadeiros icebergues, temperaturas negativas, nevoeiro ou ventos por vezes fortes, baleias brincalhonas grandes navios de pesca de arrasto que apareciam subitamente do nada, e todos eles sem nenhum equipamento de salvação, rádio ou roupa adequada.

Por vezes mais de 14 horas seguidas.


E com 3 minutos de vida se caíssem àquele mar gelado…


Um dia normal de trabalho começava às 4 da manhã e terminava normalmente 18 horas depois.

Porque a bordo do navio mãe havia trabalho distribuído para todos,  tripulantes e pescadores após a faina de pesca diária.


Não era nada fácil…


O dóri era um pequeno barco de fundo chato feito de pranchas sobrepostas, pregadas, 3 no fundo e 4 de cada lado, pintado de cor de laranja claro para contrastar com “as ilhas de gelo” e serem mais facilmente vistos no nevoeiro.






Cada dóri era identificado por um grande número pintado a preto na proa, para além do nome do lugre a que pertencia, escrito nas alhetas pois havia tantos dóris nº 25 quantos lugres por ali estivessem.

Nenhum dóri ostentava o nº 13…















Os grandes lugres bacalhoeiros
podiam levar até 60 dóris.






A sua forma era a ideal para carregar peixe. O desenho permitia serem empilhados, encaixando-os uns nos outros para ocuparem menos espaço. Eram baratos e fáceis de manobrar, a remos ou à vela.



 Na foto um pescador entre dois molhes de dóris empilhados, no lugre Creoula


Em cada lugre o número identificativo dos dóris eram sorteados entre os pescadores que se encarregavam exclusivamente do seu dóri até ao fim da campanha.



O interior do dóri, bancos, apoios para os remos e mastro, etc., era todos os dias equipado pelos pescadores uma vez que para serem empilhados tinham de estar completamente vazios de tudo.

O estrafego normal do dóri (equipamento) era, um barril de madeira cortado ao meio que levava umas 10 linhas com 55 braças cada, o trol (do inglês “trawl”). E cada linha destas levava 500 pedaços de linha mais fina, os estralhos, com anzóis iscados na ponta. Os anzóis eram iscados e bobinados dentro do balde antes de serem arriados para a água. (ver nota 2)



Do estrafego normal fazia também parte um mastro ligeiro, linhas preparadas com anzóis, baldes com isco, velas oleadas (para impermeabilizá-las) de cores fortes para se verem no nevoeiro, chumbadas, zagaias, remos, âncoras, linhas de sisal, facas e uma pedra de amolar. Um apito ou buzina para soprar em caso de nevoeiro em forma de cone (ou mesmo um búzio). Cada dóri tinha o seu sinal distinto, tal como a escuna. O truque para se ser encontrado em nevoeiro cerrado era manter-se num sítio a mandar sinais ao lugre e reconhecer o sinal de resposta. (ver nota 2)











Levavam também uma caixa de couro ou madeira pintada de cores berrantes com bússola, uma garrafa de água, nepas sobresselentes, um pedaço de carne seca ou chouriço, pão duro, azeitonas e por vezes tabaco, tudo embrulhado em papel de jornal. (ver nota 2)





Como vestimenta usavam roupa interior de lã, pesada, de cores vivas, por baixo da rabana (capa oleada com mangas) botas de cabedal com solas de mais de 2cm de altura em madeira, para evitar o contacto com a água gelada que sempre havia no fundo do dóri.




Era assim um dia de pesca:



Os da «companha» são acordados por uma voz rouca e forte que, da boca do rancho (o rancho era o local onde estavam os 73 beliches onde dormiam os pescadores), exclama:


- “Seja Louvado e adorado Nosso Senhor Jesus Cristo; são quatro horas, vamos arriar”


Ainda estremunhados, os pescadores saltam dos beliches e enfiam a roupa de oleado e as botas de água.

Engolido à pressa o café, sobem, a correr, para o convés.
(ver nota 1)


Estava na hora de “iscar”.


«Começavam a cortar o isco.
Iscar os anzóis era feito antes da alvorada à luz de velas ou candeeiros a óleo. No Inverno era feito no porão do peixe. No Verão, o corte do isco era também feito no topo da cabina e os homens cortavam o isco nos seus lados». (ver nota 2)


O isco para um mês de faina era trazido de Portugal, normalmente sardinhas. Para a restante campanha o isco era comprado já na Terra Nova.




“Vamos arriar com Deus”



Depois de tudo pronto e com o pescador já a bordo, “os dóris, munidos do estrafego da agulha de marear e da isca são imediatamente arriados pelos teques e afastam-se do navio” rapidamente para não colidirem com o lugre. (ver nota 1).


Meia hora era o tempo normal de arriar todos os 60 dóris.


Nenhum pescador levava bóia, colete de salvação ou qualquer espécie de equipamento salva-vidas!
















E começava assim a solitária pesca.
Só terminava quando o dóri estivesse completamente cheio.




























As vezes a meter água com peso a mais de tanto bacalhau capturado.









Nos grandes lugres, 60 pescadores cada um no seu dóri a remos ou à vela afastavam-se do navio mãe e iniciavam a faina, completamente isolados, entregues a si mesmos, sabendo que só voltariam ao lugre quando o dóri estivesse cheio.

Alguns afastavam-se uma milha ou mais do lugre naquele mar gelado, no meio do nevoeiro, chuva forte ou aguaceiros de neve gelada, com temperaturas muito baixas e por vezes para lá do Circulo Polar Árctico!




O Capitão do lugre sabe que aqueles homens correm grande perigo, se algum deles cair ao mar gelado tem 3 minutos de vida e por isso se mantêm atento ao horizonte, observando as condições meteorológicas e faz soar o sino caso o tempo esteja para mudar.


Mas os pescadores também sabem quando uma tempestade se aproxima. Bastava amanharem o que pescavam. Descobriram que o bacalhau, previdente, engolia pedras para ganhar peso e se manter no fundo à espera que as tempestades passassem…







A cauda de uma baleia podia atingi-los, coisa rara mas que aconteceu mais de uma vez. E as redes dos grandes arrastões de uma outra pesca já mais evoluída também podia colhê-los num dia de mar esquivo com mau tempo.

As bússolas podiam enganá-los em dias de campo magnético alterado, sabemos hoje, pelas erupções solares.














As linhas com os anzóis iscados eram deitadas ao mar e enquanto os pescadores esperavam que as capturas se dessem iam pescando à linha que o mar ali tinha muito peixe e quanto mais depressa enchessem o dóri mais cedo regressavam ao lugre. Além disso avaliavam melhor se havia ou não peixe para poderem e quando, recolher a linha ou mudar de local se não houvesse resultados.

Esta solitária e muito perigosa actividade nos dóris naquele gelado mar feita por aqueles homens equipados apenas com roupas interiores de lã e uma vestimenta em oleado a cobri-los, podia durar muitas horas.







As mudança súbitas de tempo, comuns naquelas paragens, com imprevisíveis ventos fortes e ondas alterosas faziam com que por vezes se tentassem agrupar vários dóris em ajuda mútua ou não sendo possível os pescadores, para evitarem naufragar, deitavam rapidamente ao mar quase todo o peixe já apanhado, deixando somente algum para fazer de lastro e agachavam-se no fundo do dóri até o tempo acalmar.



                Mas quando havia bom tempo...







«Às 6 da tarde tinha sido já um dia de 14 horas de trabalho. Os dóris ficavam na pesca até estarem cheios ou se acabarem as provisões.

No Verão havia sempre luz para uma terceira saída.




  Pescador no seu dóri. Foto de Anton Dohrn




No Inverno, uma lanterna de querosene era levada no dóri. Seriam 9 da noite quando regressavam do terceiro lanço». (ver nota 2).






Os dóris quando vinham descarregar (normalmente por duas ou três vezes por dia de faina) ou quando eram todos chamados, aproximavam-se do lugre por ordem de chegada.

O capitão olhava então para o carregamento do dóri mais perto do navio, avaliava por alto o peso do bacalhau que o pescador capturara e registava-o num pequeno livro de capa negra.



Esta avaliação fazia-se por estimativa descontando uma percentagem ao peso avaliado a olho,
para compensar a perca de cerca de 1/3 de peso do bacalhau depois de seco, por desidratação.



Só depois deste registo rápido é que era fornecido ao pescador um grande garfo de peixe para ele começar a “garfar” os bacalhaus, um a um, para dentro do lugre, bem acima do dóri, por vezes a adornar a um e outro lado ao vento gelado.








O peixe era atirado para dentro dos quetes, uns cetos grandes feitos de ferro e rede de arame que deslizavam em calhas.




















Uma vez vazio, o dóri ia para a poupa para ser içado.

O pescador desmontava então a palamenta e o pequeno dóri voltava a ser empilhado em montes de 6.

Todos os pescadores obedeciam à mesma rotina e isso podia significar uma colheita de mais de 200 quintais de bacalhau, cerca de 40 toneladas por dia bom.

A seguir o pescador comia uma refeição ligeira e voltava ao trabalho de escalar e salgar o peixe, numa actividade começada ás 4h da manhã, tendo estado a pescar nas condições que só minimamente se imaginam nas últimas 14 horas ou mais.














«O peixe depois de garfado para dentro dos quetes no convés era cortado, escalado, limpado e lavado em baldes com água do mar.

Os homens que limpavam as entranhas, metiam-nas dentro de baldes cheios de água de onde retiravam depois os fígados que flutuavam. Estes eram metidos em barris, por vezes uma dúzia deles por viagem e vendidos a companhias que extraiam o óleo do fígado do bacalhau».
(ver nota 2)


Nesta imagem podem ver-se os dóri empilhados
uns em cima dos outros, em montes de 6.






Além da carcaça eram aproveitados o fígado e as línguas, estas dos peixes maiores. Tudo o resto era devolvido ao mar.

Os bacalhaus já preparados eram então colocados em carros para os transportar até ás escotilhas sobre os porões para onde eram atirados deslizando em mangas de lona até aos salgadores que os esperavam lá em baixo.

Os lugres maiores levavam uma provisão de sal de 500 toneladas para a conservação do peixe, já que não havia camaras frigoríficas.





«Os homens no porão armavam então calhas de madeira por onde o peixe limpo deslizava. O peixe era salgado e cuidadosamente arranjado em quetes, rabos com cabeças». (ver nota 2)







Quase todos os melhores pescadores eram Algarvios. Os da Fuzeta eram os mais experientes já que usavam material semelhante aos dóris na Ria Formosa.

Elementos importantes da tripulação eram o cozinheiro chefe e os seus dois assistentes.

Dormiam numa pequena cabina porque estavam sempre a ser acordados para gerir a cozinha. Havia um só fogão, a carvão, para 70 homens. Ali se cozinhava tudo além de várias fornadas de muito bom pão, todos os dias.


«Os pescadores do bacalhau sofreram com a vida que era dura, mas muito ainda está por escrever sobre essa pesca de um dóri/um homem, eram assim os pescadores bacalhoeiros de outros tempos, por isso digo que foram tempos que o tempo não apaga!» Comentário de Jaime Pião no Blogue “Caxinas… de “Lugar” a Freguesia”


Era uma vida muito dura que só tinha descanso se a meteorologia se complicasse tornando as coisas ainda piores.

E aí sim podiam descansar em St John, S. João da Terra Nova onde se podiam ver milhares de portugueses em passeio pelas ruas da terra ou na Casa dos Pescadores Portugueses onde confraternizavam, comiam e assistiam a espectáculos.


Quase como a actual Ferry Street em Newark…


E por ali se mantinham até a tempestade passar.



O "Creoula", na foto abaixo, efectuou 37 campanhas atá 1973 e chegou a pescar 600 quintais de bacalhau num só dia, o que corresponde a cerca de 36 toneladas, uma média de 660 kg por cada pescador.





Mas a faina na Terra Nova/Groenlândia só acabava com os porões dos lugres cheios.

Eram 6 ou 7 meses de grades tormentos e muitos perigos.

E só depois disso podiam regressar a Portugal.


"Houve um ano – lembra António São Marcos, agora comandante do ‘Santa Maria Manuela’ – que os comandantes dos navios foram condecorados com o Grau de Cavaleiro e alguns dos primeiras linhas com o Grau de Oficial da Ordem do Mérito Industrial", tal era a sua importância para o regime.

Primeiras linhas eram os pescadores que mais peixes capturavam.



José Santos Leites, natural de Caxinas, Vila do Conde, quando ia para o mar, nunca dizia adeus...

Sabia que podia não voltar.

Podia morrer afogado, não encontrar o navio e perder-se no meio da neblina.

Ceder ao sono e ao cansaço na proa do dóri e deixar-se cair, mas dizia ‘até logo’ de todas as vezes que se despedia à porta de casa e embarcava no ‘Creoula’ a caminho dos bancos da Terra Nova e da Gronelândia, para mais seis meses de campanha na pesca do bacalhau.



“Levantai-vos rapaziada, filhos da Virgem Maria.

Vai um homem para o leme e dois para a vigia”.



Era o último verso dos Louvados, que todos os dias os pescadores repetiam antes da descida dos botes para mais uma jornada de pesca à linha.



Diz o ditado:

‘Se queres aprender a orar, entra no mar’





...e era à fé que os pescadores se agarravam.







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Também naveguei, nesta história...


Colhi elementos para a compor a partir de várias fontes, todas de água muito fria e salgada...


Alguns textos são transcritos ou adaptados de:


nota 1 - A pesca do Bacalhau nos mares da Gronelândia

Pelo Dr. Amadeu Eurípedes Cachim:



nota 2 – Blogue “Caxinas… de “Lugar” a Freguesia”




nota 3 - Texto sobre o comandante Villiers e o seu livro recolhido e adaptado do Prefácio da 3ª Edição portuguesa pelo Dr. Álvaro Garrido, Historiador, da Universidade de Coimbra e Consultor do Museu Marítimo de Ílhavo.


Vídeos que acho que são a não perder:


The White Ships – The Portuguese 1966 Cod Fishing Fleet / Grand Banks / Santa Maria Manuela



The Lonely Dorymen– Portugal’s Men of the Sea
“Os solitários homens dos Dóris”
"The Lonely Dorymen", documentário da National Geographic, realizado em 1967 por George Sluizer, a bordo do imponente lugre-motor de 4 mastros "José Alberto", da praça da Figueira da Foz, um navio originalmente construído na Dinamarca com casco de ferro. Com legendas em português. Pag YouTube de António Fangueiro


The White Fleet” - Portuguese Fishermen on the Grand Banks of Newfoundland
Three from Newfoundland -1 ª Parte
Filme da TV Canadiana sobre a pesca à linha


Como era um Dóri bacalhoeiro português
Pag YouTube de António Fangueiro


"Pode um navio contar a história da pesca do bacalhau?"
A história do mais famoso bacalhoeiro cruza-se com a história do país.
Anibal Paião sócio da Pascoal fala sobre os lugres que aquela firma comprou e restaurou.
Vídeo do Jornal “Publico” com belíssimas imagens da White Fleet



"A Frota Branca em St. John’s, Terranova"
Vídeo com marca de água.
Curto filme do National Film Board of Canada narrado em francês, com legendas em português por António Fangueiro que o colocou no YouTube sobre a frota bacalhoeira Portuguesa em 1967, atracada no porto de St. John´s da Terranova. Acompanhado por uma excelente peça musical, este registo a cores num dia cinzento de chuva, mostra os pescadores Portugueses em grande número pelo cais e nas suas tarefas rotineiras a bordo dos navios atracados lado a lado, navios como o “Luiza Ribau”, o “Pádua” o “São Jorge” ou mesmo o “Gil Eannes”.
Pag YouTube de António Fangueiro


The Wonderful World of Albert Kahn – The End of a World
Um documentário da BBC.
Em 1922, um cinegrafista Francês, Lucien Le Saint, segue para a Terra Nova a bordo de um lugre bacalhoeiro do seu país para registar a pesca do bacalhau. Lá, entre os seus conterrâneos, dois homens por dóri, surgem grupos de Portugueses, tipicamente um homem por dóri.
Pag YouTube de António Fangueiro



Outros documentos onde também pesquei:


http://boasnoticias.pt/noticias_Empresa-de-pesca-salva-lugres-bacalhoeiros_1503.html

http://www.santamariamanuela.pt/pt

http://www.revistademarinha.com/

Confraria Marítima

http://alernavios.blogspot.pt/2012/05/ilda.html

http://alernavios.blogspot.pt/2012/05/ilda.html

http://blogdobarco.blogspot.pt/2006/06/o-lugre-bacalhoeiro-antes-e-depois-da.html

http://naviosavista.blogspot.pt/2011/02/recordando-perda-do-lugre-bacalhoeiro.html

http://sailing-ships.oktett.net/barque.html

http://www.blogmercante.com/2012/10/a-tradicao-marinheira-portuguesa-a-pesca-do-bacalhau/

http://lmc-creoula.blogspot.pt/search/label/Parceria%20Geral%20de%20Pescarias

http://lmc-creoula.blogspot.pt/2010/08/vida-ardua-no-bacalhoeiro-creoula.html

http://lmc-creoula.blogspot.pt/2010/08/creoula-visto-do-argus.html

http://marintimidades.blogspot.pt/2010/08/creoula-1973-atraves-da-objectiva-de.html

http://caxinas-a-freguesia.blogs.sapo.pt/32070.html

http://caxinas-a-freguesia.blogs.sapo.pt/337822.html

http://restosdecoleccao.blogspot.pt/2010/06/pesca-do-bacalhau_08.html

http://caxinas-a-freguesia.blogs.sapo.pt/tag/bacalhoeiros+portugueses


E também aqui:

A pesca do Bacalhau nos mares da Groenlândia 
Pelo Dr. Amadeu Eurípedes Cachim


http://caxinas-a-freguesia.blogs.sapo.pt/tag/argus

http://www.cmjornal.xl.pt/


Documentação/História do bacalhau e outras histórias
Fernando Marques (Médico Veterinário)


Documento PDF
do Dr. Álvaro Garrido Faculdade de Economia UCoimbra e Director do Museu Marítimo de Ílhavo, sobre Alan Villiers e o seu livro “The Quest of the Schooner Argus”.


Grand Banks Portuguese Dory
National Maritime Museum, Falmouth, Cornwall





Origem de algumas fotos:

Anton Dohrn
Fotografias




(Actualizada em 29 Abril de 2020)