Gloriosos oito meses numa tenda no meio do mato.
Em Moçambique, no início dos anos 60!
Em 1960 eu era um ex-aluno Topógrafo, em Lourenço
Marques.
Tinha passado 8 gloriosos meses seguidos a viver
acampado numa tenda de lona (fornecida pelo Exército) junto às margens do Rio Incomati, a poucos metros
da margem, não muito longe de uma vila chamada Moamba e a uns 80km da Capital.
Muito perto já do Kruger Park.
As 4 tendas individuais que abrigavam os 4
topógrafos (eu era o único aluno) tinham um WC comum. Um resguardo de canas de
bambu atrás do qual havia um balde pendurado numa árvore com um ralo em baixo
actuado por um cordel. Baixava-se o balde enchia-se de água subia-se o balde
puxava-se a guita et voilá… um banho!
As outras necessidades faziam-se onde calhava…
normalmente apontados ao Sol.
O resto dos “edifícios”, com sala de jantar,
escritório e tudo, eram construídos com os materiais que por ali havia, em
estilo arquitectónico palhota.
Nesta foto, a
primeira tenda era a minha.
O edifício seguinte era o escritório e logo depois o Rio Incomati
As noites de trovoada ao longo do rio eram, podem crer, muito mais
excitantes que o Cyberpunk 2077 ou qualquer jogo de consola.
Felizmente não havia TV nem Playstations, nem SMSs, nem tablets ou
computadores, nem telefones. nem mesmo aqueles pretos de manivela, nem electricidade sequer.
Nem micro-ondas. E os frigoríficos eram a petróleo. E a iluminação também. E
vivíamos e comíamos bem e éramos felizes.
Os meus colegas topógrafos diplomados
Os muitos livros que lia eram lidos á luz de petromaxes
Eram candeeiros a petróleo mantido sob pressão
com uma bomba integrada e que davam uma excelente luz emitindo um forte sopro
resultante da combustão. Um mini reactor mas muito luminoso…
A trovoada deslocava-se
ao longo do rio. Por isso sabíamos sempre de antemão quando iríamos ficar à
mercê do Criador.
Horas depois dos
primeiros trovões longínquos, as faíscas acabavam por cair em redor de todo o
acampamento, num frenesim dantesco de luz tão brilhante como o Sol e de sons
tão fortes que metiam medo.
E as tendas ficavam
mesmo por debaixo de imensos, imensos eucaliptos, altíssimos,
como a foto acima mostra.
O Criador só queria
mostrar-se grato por eu amar tanto aquela terra, aquelas gentes. Aquele
fantástico espectáculo era todo para mim, sem ameaças veladas. Era só mesmo
para eu o absorver todo inteiro, mergulhado em pleno na tempestade.
E era o que me
acontecia. No meio daquele espectáculo dantesco eu fundia-me com a obra do
Criador e era trovão, era também uma luz mais brilhante que o Sol.
E sentia uma felicidade imensa...
Os banhos no rio,
desaconselhados pelos meus ajudantes nativos da zona, (havia uns quantos
jacarés no Incomati…pouco dados a intimidades) nunca foram um perigo para mim.
Ia sempre acompanhado pelo nosso cão.
Ele havia de dar sinal.
Nunca deu, nem mesmo nas ilhotas de areia a meio do rio, bastante largo naquele
sítio. E o cão era competente no ofício. Acho que os jacarés também estavam do
meu lado:
- Deixa-o lá tomar banho sossegado, pensariam eles,
tão
merecedores daquelas águas como eu.
Foram mesmo gentis...
As manhãs, muito cedo,
começavam sempre com fantásticos pequenos-almoços: uma perna de cabrito assado
com sumo de laranja e tudo o mais. Assim conseguiamos andar a pé o resto do
dia, que era o nosso verdadeiro ofício. O almoço nunca tinha hora certa.
E os três fins de
semana seguidos que ficava sozinho a “tomar conta” do acampamento, eram
normalmente diabólicas e frenéticas expedições pelas picadas, nos jipes. Às
vezes bem acompanhado. E eu não tinha carta…
Um dia, ao sair de uma
curva muito apertada, o capim mais alto que nós, a velocidade a aproximar-se do
suicídio, vi-me rodeado de uns duzentos pares de cornos de pobres vacas que
pastavam naquele “autódromo”, sem o saberem… Fui recebido por elas como um
campeão de Fórmula 1 no pódio!
E o “rally” era normalmente
feito num jipe fabuloso: o Steyr Puch Aflinger, de origem
Austríaca. Tracção e suspensão imdependente às 4 rodas! Parecia um
Smart armado ao Dakar.
Um sonho de
carro nas picadas
As noitadas de
conversa, nos meus fins de semana de serviço, à fogueira com os Moçambicanos
que nos auxiliavam e que já defendiam veladamente a independência,
compreendiam, por vezes, julgamentos democráticos de acções menos correctas do
pessoal.
Tinha aprendido como
proceder quando ouvi o meu Pai explicar como tinha feito na Guiné, com os
Régulos. No caso dele nas horas de serviço, debaixo de uma grande árvore.
No meu caso acontecia
depois do jantar todos juntos à fogueira, apresenta-se o acusado. Todos falam,
eu só assisto e presido, o mais discretamente possível. Era ali o mais novo
daquela magna assembleia de 30 homens e só tinha a autoridade que todos
achassem que merecia. No fim, o Chefe do pessoal, o respeitado Capataz, apoiado
pela grande maioria, ditava a sentença:
- Culpado!
- E o que é que se lhe faz, perguntava eu.
E o chefe dizia de sua justiça.
- Cumpra-se! aceitava eu, na qualidade de chefe supremo daqueles 30
homens bons.
Estávamos todos sempre de acordo. E a conversa continuava, normalmente sobre a
problemática em que se vivia. A Guerra já se travava em Angola. E no Norte de
Moçambique os guerrilheiros já tomavam posição.
Nunca tive problema
algum com aquela humilde gente.
Nunca achei que me
fosse necessária a Lee-Enfield distribuída. A espingarda do Exército português
da 1ª Grande Guerra... Um venerável canhangulo já com mais de 60 anos.
Durante as deslocações
por lugares completamente virgens, associava sempre esses sítios a trechos de
música.
Houve um lugar mágico,
uma simples volta de picada, um vislumbre de Deus sentado em repouso na mata,
que me acompanhou toda a vida.
Ainda hoje tento
descobrir qual era o Divertimenti de Mozart que ouvi no rádio do jipe, em AM,
alguém sabe o que é AM? na primeira vez que por lá passei. Já os devo ter
ouvido todos.
Mas nenhum é tão
vibrante, tão real, nenhum toca cá dentro como quando ali passava.
Deve ser outro Mozart,
aquele nunca mais tocou assim.
Ou então é mesmo o som daquele espaço etéreo e único. Vá-se lá saber…
O meu trabalho era
subir a uma torre de 18m de altura, desmontável, em módulos,
montada e desmontada mais que uma vez por dia. Depois subia-a para trabalhar
com um Telurómetro.
Uma coisa do tamanho de
um computador de mesa, dos antigos, que era um rádio emissor/receptor e que
simultaneamente media o tempo que as ondas levavam, maravilhadas com a
paisagem, a percorrer o espaço ida e volta entre dois destes aparelhos, um
“Mãe” e outro reflector, permitindo assim determinar com precisão a distância
entre eles.
Estou
quase certo que teria um acerto automático que compensava o atraso das ondas
quando se perdiam em contemplação...
Havia outra equipa que
fazia o mesmo e servia de emissor ou reflector, uns quilómetros distante de
nós. Não havia possibilidade de contacto entre nós. Nem telefones nem
“walky-talkies”. Ou melhor, havia um rádio telefone incorporado mas que só
funcionava se o alinhamento das antenas fosse efectivo.
E para apontar os
aparelhos separados por quilómetros, um ao outro, com muita precisão, num
ângulo de 2 ou 3 graus, era só preciso perguntar a um dos carregadores aonde é
que estava a outra equipa. Este procedimento nunca falhou! Desisti de me armar
em esperto porque eu nunca acertava…
- Não é aí minino, é
ali.
O dedo a apontar uns 20 graus ao lado.
E era mesmo...
Um dia fui-me
aproximando da fronteira com a África do Sul, a subir e descer várias vezes os 18m de altura
da torre, à medida que me aproximava do Kruger Park, quando fui avisado que ia
passar numa aldeia onde não viam um branco há mais de 3 anos.
Normalmente eu era
respeitosamente cumprimentado pelas pessoas que encontrava nos sítios mais
perdidos deste mundo, só pela minha condição de ter nascido com a pele clara.
Não devia ser pelos meus 19 anos.
Naquela manhã, para
grande surpresa minha, o único adulto que vi nem se dignou olhar para mim.
Pudera! Um ancião muito digno, uma presença majestosa com a sua barba e
cabelos brancos, acocorado em meditação debaixo do telheiro da sua casa, uma
palhota muito limpa o olhar em frente perdido em profunda comunhão com o Tempo.
Eu simplesmente não era.
Não pertencia àquela Eternidade.
Que era a sua
morada...
Quem se atrapalhou fui eu, com a sensação de que, por respeito, eu é que
devia saudar tão digna pessoa, mas nada fiz.
Erro meu...
Percebi, mas fiquei sem
saber como agir.
Por toda a pequena
aldeia de palhotas muitos miúdos de 3 ou 4 anos, brincavam como qualquer
criança. Alguns lindos de morrer. Um deles, se calhar o mais mal comportado,
chamou mais a minha atenção. Chamei-o, estávamos relativamente perto do
Patriarca.
Dei-lhe uma moeda de 20
escudos, uma fortuna naquele tempo e lugar e disse-lhe:
- Olha, isto é para
comprares uma capulana. Toma.
Capulana é um pano,
normalmente muito bonito, que serve de vestimenta.
O miúdo devia ter
percebido que aquilo era certamente algo de muito especial e por isso se
dirigiu, sem ninguém o interpelar, ao ancião. E em silêncio, aproximou-se,
lentamente.
A cerca de um metro
dele ajoelhou, braço todo esticado para lhe chegar, mas com muito respeito,
olhos fixos no Patriarca. A moeda na sua mão muito pequena foi depositada com
cuidado na mão do ancião que não fez o mínimo esforço para a receber.
E num Português
correctíssimo, fixando o miúdo, disse-lhe, acto contínuo, sem me olhar:
- Diz ao branco que eu
vou comprar-te uma capulana.
(Todos os dias são bons
para recebermos uma grande lição de dignidade.
Todos os dias são bons para vermos a Humanidade a funcionar em pleno.)
Local da travessia em
batelão
A assistência médica também
era exemplar, embora funcionasse à Africana. Eu explico. Um dia, com uma
moléstia que me incomodava, a precisar da ajuda de um médico, desabafei com o
meu colaborador chefe quando atravessávamos o Rio Incomati num batelão com o Jipe
e muitos outros passageiros.
- Mas vai ali um médico Indiano,
disse-me ele.
E à falta
de marquesa, foi mesmo de pé, a meio do rio, batelão a avançar esforçadamente,
que eu despi o que foi preciso para ser observado.
O pior
foi a cura...
Tinha de andar 10km de
bicicleta para cada lado e atravessar o rio de batelão para levar as 3 ou 4
injecções. Mas se calhar o exercício também fazia parte da cura…
Esquecia-me de dizer que o
cão que tínhamos era uma necessidade que, no início da campanha, não
conseguíamos preencher, por falta de material. Um dia, no fim de semana que me
calhava sempre ao fim do mês, já explico porquê, fui com um colega, topógrafo diplomado,
à Pastelaria Princesa, na Av. 24 de Julho.
Parado o
Volkswagen Carocha à porta da Pastelaria, abri a porta para sair e entra de
súbito, com uma pressa desmedida, um cão vindo nunca soubemos de onde, que se
anichou muito quietinho no banco lá atrás a lingua de fora, respirar apressado
e a olhar para nós, a querer dizer:
- Vamos embora! Vamos
embora!
Obediente,
fechei imediatamente a porta e o meu colega arrancou de imediato: já tínhamos
um cão, que nos adoptou. Ficámos todos felizes: nós porque ele nos adoptara, o
dono do cão que certamente se queria ver livre dele e o cão que estava
evidentemente farto do dono.
E nós ganhámos um amigo que
se atirava ao nosso peito, aos “gritos” de felicidade, sempre que, ao fim do
dia, regressávamos ao acampamento.
O nosso fiel
companheiro detestava andar nos batelões e refugiava-se normalmente em cima do
bidon da gasolina...
Quando decidimos, de
início, as escalas de fim de semana no acampamento, ofereci-me para só ir a
Lourenço Marques no fim de cada mês. Podia assim gozar de 3 fins de semana
seguidos armado em explorador Africano a treinar para o Raly Dakar (nunca
ninguém deu por ela, ter carta não é sinónimo de guiar bem…)
E quando no fim do mês
ia à cidade recarregava não só a bolsa e o espírito mas também uma pequena mala com
os livros que iria ler durante o mês seguinte.
A baixa de
Lourenço Marquesa em 1961
Foto tirada por mim a partir de um avião do Aero Clube
E para começar este meu
primeiro trabalho na vida, tive de recorrer a uma linha de mini-crédito, já que
tinha comunicado ao meu Pai que não ia estudar mais e portanto deixava de
querer receber a mesada. Mas precisava de comprar artigos de higiene para o mês
todo e não tinha dinheiro nem para comprar um sabonete Life Boy, quanto mais o
resto!
Para quem não sabe o
Life Boy, sabonete inglês, tinha um delicioso perfume se assim se pode dizer, a
creolina, muito próprio evidentemente para homens de barba rija! (Ainda hoje
gosto dele, embora não seja fácil encontrá-lo).
Na rua em que morava
havia uma drogaria onde nunca tinha entrado. Entrei naquele dia, véspera da
partida, confiante e expliquei ao senhor a minha situação. Precisava de tudo
para a minha higiene pessoal durante um mês mas que só podia pagar-lhe umas 4
semanas depois… E, sem mais, saí dali com o necessário.
Nunca lhe fiquei a
dever nem sequer uma ensaboadela, claro.
Terminámos a nossa
campanha 8 meses depois.
Regressados à cidade, à
civilização, era tempo de, com todos os dados que tínhamos coligido com os
Telurómetros, introduzir aqueles infindáveis números (basicamente eram os
milissegundos das ondas hertzianas) nas máquinas de calcular.
Funcionavam sem LCD's
nem pilhas mas com X maniveladas, rápidas, para a frente e Y para trás um
número Z de vezes, sempre para trás e para a frente muito depressa e eu ali
naquilo na cidade sentado a uma secretária o dia todo, mas o que é isto!?
E os milissegundos a
transformarem-se em anos-luz…
Até eu dar em maluco,
esquizofrénico, tarado mesmo.
Era de loucos!
Durante os 30 dias que
aguentei – eram trabalhos forçados previstos para 4 meses no tempo das chuvas –
nunca entrei a horas nem saí a horas. Tinha sempre uma desculpa. E acabei por
pedir a demissão. Obrigado pelo meu Pai que não me deixou ir simplesmente
embora como eu queria… Porta fora. Chissa! Grande alívio!
Ganhei o dinheiro
suficiente para viver até entrar na Força Aérea e para comprar também uma
Lambreta, sempre sem carta.
E fui preso, é claro,
pouco tempo depois, a um Domingo à noite depois de voltar de um fim de semana
na Praia do Bilene, onde dormi na areia.
Fui julgado no dia
seguinte, em chinelos e calções de praia e condenado a 30 dias de cadeia.
Já não ouvi o Juiz
dizer o resto, que era coisa para ser remível a uns quantos escudos por dia…
Tal foi o susto!
Era uma coisa assim…
Tinha passado as
últimas horas numa cela com mais dois companheiros de uma noite: um marinheiro
sueco com a cabeça aberta, a sangrar, numa rixa na Rua do Pecado (conhecida
pelos bares que hoje se chamam de alterne, onde os Sul Africanos do Apartheid -
"separação" em africânder - iam confraternizar pacificamente com as
jovens negras locais) e um português de gema que se tinha feito passar por
polícia, também numa rixa algures.
O pobre homem passava o
dia a dizer que matava quem o prendeu mas quando o via através das grades
aliciava-o com a grande amizade que lhe tinha…
O pequeno almoço “foi
servido” numa malga de alumínio com três pães e três canecas de lata com uma
espécie de café que o guarda depositou, enjoado, no meio da cela, no chão.
O sueco nem olhou… o
português de gema declarou-se em greve de fome e eu comi o que me apeteceu, sem
problemas.
Acabei por vender a
motocicleta a um Polícia. Foi justo…
E depois de uns meses
de praia, na Costa do Sol, a minha vida tomou o rumo definitivo: alistei-me na
Força Aérea.
Mas isso é outra
história que só acabaria uns 35 anos depois…
(Todas as fotos a preto e branco foram tiradas por mim)
(Actualizada em 28 de Janeiro de 2022)
África do outro tempo...no seu melhor. Isto tem um sabor a nostalgia que nem lhe digo nada!
ResponderEliminarIsto foram os mais fantásticos 8 meses seguidos da minha vida...
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