A história dramática de uma fuga
No dia 5 de Março deste do Ano da Graça do Senhor de 2013, o meu Dembo, um cão da raça Leão da Rodésia com quase 5 anos e 40kg de peso, saiu portão fora por volta das 11 da manhã e só voltou 48 horas depois.
Com 4kg a menos...
Entretanto passou duas noites ao relento sob forte temporal. Alerta vermelho no Algarve, com chuva torrencial e vento muito forte.
Sem comer a sua recomendada ração habitual. Sem a sua confortável almofada.
Voltou pelo seu pé porque, entre outras razões, fez um golpe na cauda que lhe cortou uma artéria.
Voltou para pedir socorro, com uma grande hemorragia.
Voltou para nos dar uma grande alegria.
Voltou, também, para nos sacar 125€ que foi o que se pagou na urgência veterinária.
Como prometi, a todos os que se preocuparam com o seu desaparecimento, aqui vos deixo o relato da conversa que tive com ele.
- Meu querido cãozinho… conta aí o que te passou pela cabeça para chateares meio mundo com a tua fuga. Para tua vergonha informo-te que só no facebook de uma Associação de Defesa Animal, em Tavira havia mais de 460 partilhas com a tua foto e a notícia do desaparecimento. Só aí, fora tudo o mais. Até a Ordem dos Médicos Veterinários publicou um anúncio! Conta lá…
Desculpa Pai… Não sei o que me passou pela cabeça... Lembras-te quando o senhor da PT entrou pelo portão para te resolver o problema do Meo e da internet que estão sempre a funcionar menos bem?
- Sim...
Pois a Vagabunda estava naquele terreno baldio em frente, onde costuma estar o pónei do vizinho, o Sininho de seu nome, a pastar. Olhámo-nos e perdi-me logo ali.
Um ligeiro aceno dela e desaparecemos os dois para lá da casota do Chuabo, aquela que deste ao Rox, o maluco do cão do vizinho.
O Rox e a mãe, a Dalila, estavam presos, felizmente... Ele é desvairado como sabes e as gajas pelam-se pelas suas maluquices. E a Vagabunda… tu nem imaginas!
Bem se lamentou o desgraçado do Rox, o arame todo esticado, não o ouviste a uivar?
- Não me lembro nada...
Pois, mas nós só parámos uns metros abaixo na ribanceira a Norte da casa do teu vizinho pescador. Naquele sítio…
Já estás habituado àquele magnífico cheiro que por vezes me orgulho de exibir na minha confortável cama junto à grande televisão onde tu vês a Euronews. Não entendi ainda porque é que corres logo comigo e pedes à Oksana para me lavar a cama. Afinal aquele muito antigo resto de peixes podres e marisco é uma espécie de bálsamo para os meus sentidos.
E foi para esse sítio, onde o vizinho deixa apodrecer o que não vende para a praça nem consome que a Vagabunda e eu nos dirigimos.
Uma delícia! Havia restos de sargos, conquilhas, besugos… eu sei lá! Alguns até já lá estavam há meses e o cheiro era magnífico… Ok, não comentes…
Esfregámo-nos no chão uns largos minutos, o belo pelo dourado da miúda todo enfeitado de espinhas e conquilhas putrefactas. Lindo!
Fizemos amor longamente naquele autêntico cabaz de peixes e mariscos que fizera a delícia dos teus vizinhos nos últimos dois ou três meses. Do que restava, felizmente para nós.
Ainda pensei que te ias chatear e correr comigo, continuo sem perceber porquê, quando voltasse a casa e foi aí que comecei a conceber o meu plano.
Estava feliz, todo lambuzado em peixe deliciosamente podre, aquele fabuloso odor que me cobria todo, a Vagabunda ao meu lado completamente ornamentada que até parecia uma árvore de Natal, espinhas, cabeças de peixe, conquilhas, rabos de douradas, eu sei lá, envolta naquele delicioso perfume de Etar abandonada há anos
-Que nojo, Dembo!
Espera! De repente, no meio daqueles folguedos todos, lembrei-me de te ter ouvir dizer que uma tempestade se avizinhava nesse fim de dia. Até havia um aviso laranja para o Algarve, lembras-te?
-Sim e depois?
Se nós esperássemos pela chuva torrencial que tu previas, podíamos voltar a nossas casas já despojados daquelas lentejoulas que tão bem nos ficavam, as espinhas, as conquilhas e todo o resto do tesouro que aquele desperdício com meses de existência constituía.
- Acredito...
E assim nos perdemos... Corrida para aqui, corrida para ali, não demos pelo passar das horas, sempre à espera da tempestade que nos redimisse e permitisse um regresso a casa despreocupado: a chuva lavar-nos-ia e o forte vento havia de nos secar o pêlo. Quem eu!? No peixe podre!? Nem pó! Limpinho, como vês, Pai…
E a Vagabunda voltaria a fazer andar a cabeça à roda ao Rox quando passássemos por ele.
Ela a meu lado e o gajo preso no arame... Yesse!
Mas faltavam umas horas para a tempestade…
E a inebriante sensação de liberdade, ainda para cima ao lado daquela beleza bem cheirosa, toldaram-me o juízo. Comecei aí a deixar de pensar em voltar a casa.
Eu até já nem pensava em nada.
-Como é teu costume, aliás…
Não digas isso Pai… Sem dar por ela afastámo-nos dali em correrias tresloucadas, afugentando tudo à nossa frente. Gatos, galinhas, patos, eu sei lá.
-Os gatos e as galinhas do vizinho, Dembo!?
Desculpa Pai, sabes bem que a esses eu vejo como irmãos. A Dalila e o Rox dão-se bem com eles todos e não era eu que ia estragar a coisa. Confesso que ás vezes me apetece chatear o parvo do gato mas a Dalila olha para mim com aquela cara e eu faço de contas que me estou a confessar e pronto.
- E depois?
Depois, depois, olha, nem sei…
Só me lembro que quando começou a chover, a chover, a chover, as espinhas a escorrerem por nós abaixo (as conquilhas já tinham ficado lá para trás com as correrias) a Vagabunda toda molhada, eu encharcado até aos ossos, as nossas caras a espelharem aquela felicidade toda, veio-me à memória por uns instantes a minha bela cama tão perto da lareira, as guerras do costume na Euronews e tu e a Mãe ali ao pé de mim…
Mas não. Naquele momento não trocava nada pela minha liberdade ao lado da Vagabunda! Nada!
Essa noite de tempestade passámo-la nem sei bem onde, algures abrigados num curral ao pé de cabras e um grande bode e outros bichos que me pareceram medonhos mas se calhar era do medo. Do desconhecido.
E lembrei-me de me teres contado a história do bode que o Chuabo desgraçou um dia e até a GNR andou à procura dele… mas não, estava muito frio e eu e a Vagabunda, enroscados um no outro, adormecemos cheios de fome mas muito felizes.
Infalível!... Sonhei com o teu bode, salvo seja, o do Chuabo, que no sonho me confundiu com ele e para se vingar atirou-se à Vagabunda.
Eu, no sonho, não conseguia mexer-me e a desgraçada mal se aguentava com o peso daquela besta em cima, a tentar a todo o custo escapar-lhe.
Já me estava a vê-la parir um enorme Leão da Rodésia com cornos retorcidos a olhar para mim e a querer marrar com grande raiva. Livra! Entrei em pânico!
Acordei e ali estava ele, aquele bode! Mesmo ao meu lado, a tentar espetar-me um corno nas costas, aos berros, enlouquecido, através da vedação do curral, completamente fora de si. A tentar, a tentar!
Acordei logo a Vagabunda e fugimos dali a bom fugir, numa aberta.
- Não és nada parecido com o Chuabo, Dembo…
Não, não sou, Pai. Mas não faz mal.
O melhor é continuar a minha história…
Já se tinham passado 24 horas de completa liberdade sempre na companhia da minha amada Vagabunda.
A fome era muita. Mas outros valores cantaram mais alto e passámos boa parte do resto do segundo dia a fugir à muita chuva, a correr mundo e a fazer muito amor também
Passámos outra noite acoitados numa casa abandonada, para esquecer os sustos da noite anterior. Foi uma boa escolha porque o cansaço acumulado e a fome por resolver estavam á espera de uma noite repousante.
Nada que se comparasse com as minhas noites calmas na tua sala.
Às vezes nem por isso… especialmente quando te dá para ouvir aqueles concertos malucos no Mezzo e a minha boa almofada encostada ao Home Cinema e o sono a tentar vencer o Brad Mehldau, o Mendelsohn ou outros que tal, a 70/90 dB’s! Poramordedeus!
Foi um penoso acordar, confesso-te…
Tinha os músculos retesados e as paredes do estomago coladas. E tremia muito.
Forças, nenhumas.
Vontade de comer, toda do Mundo!
- Mãezinha! Paizinho!...
- É muito bem feito, para teres juízo! E a Vagabunda?
Não sei como é que ela ainda se mantinha de pé. Pior ainda! Estava fresca que nem uma alface, não é como vocês dizem?
- Tenho uma fome que nem vejo, Vagabunda… Tenho de ir comer a casa. Estamos mesmo aqui à porta…
- Tás-te a passar ó quê, Dembo... Agora que não chove, vamos até à 125… Anda lá, mor…
- Vagabunda! Não aguento mais com a fome. Não vês que já perdi muito peso? Vai para 48 horas que não comemos. Temos de comer qualquer coisa. Já mal me tenho nas canetas e nem quero fazer amor, esquece, tenho de comer. Vou mesmo comer!
- Só pensas nisso, Dembo. Agora que estávamos bem... Agora que éramos felizes!
- Desculpa lá miúda mas não aguento mais!
- Rox, queres ir comigo até á 125 enquanto o Dembo come? Bora ir… anda lá…
- Eu mato este gajo!
E num assomo de fúria virei-me de repente para a impedir de ir ter com ele e foi aí que aquele arame espetado me fez o golpe fundo na artéria mesmo no fim da cauda.
Dei um urro de dor que deu para vocês ouvirem
A Mãe ouviu-me e abriu logo o portão a chamar por mim.
- Dembo! Dembo!
Já não quis saber de mais nada. Estava a salvo!
Entrei pelo portão dentro que nem um tiro, o sangue a jorrar para todos os lados, até aos braços da Mãezinha. Finalmente!
- Finalmente… até à próxima! Palpita-me, Dembo…
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Como nota de rodapé esclareço que o Chuabo era o meu amado Leão da Rodésia de 10 anos que nos deixou em 2008, ano em que nasceu o Dembo.
A Dalila é uma cadela do meu vizinho do outro lado da estrada, pescador de Olhão, arraçada de São Bernardo e Leão da Rodésia. Enorme!
O Rox, filho da Dalila, apareceu depois e dizem que o Pai é o Dembo. Ama-nos e passa muito tempo em nossa casa, especialmente no verão quando chega a banhar-se vezes sem conta na piscina… Gostamos muito dele cá em casa. Vem visitar-nos muitas vezes e pedir biscoitos que lhe damos para grande satisfação mútua…
O Sininho é um pónei lindíssimo e divertido com uma longa crina castanho dourada.
Costumo encher-lhe o balde da água com uma mangueira de rega, de longe, no verão. E eu sei que ele me agradece…
Têm ainda um canito branco de que não sei o nome. Além dos gatos e dos patos.
Tiveram também uns cisnes mas o Chuabo e a esposa Macua deram cabo deles. Morreram ao meu portão e eu tive que lhes dar outros, pequeninos. O bode, não paguei porque não soube do dono, a GNR não disse quem era.
Vivem todos felizes em perfeita harmonia.
(O Chuabo também me ofereceu várias sapatilhas, algumas á estreia, infelizmente todas desirmanadas. E três chupetas que tirou da boca sempre do mesmo bebé. Eram muito amigos, os dois. A Avó é que não gostou… Ele e a Macua tiveram 9 meninas. Dei-as todas…)
O Dembo respeita muito a Dalila. E não tem outro remédio senão respeitar o resto da matilha porque a Dalila não é para brincadeiras e faz ela muito bem…
A todos os que se preocuparam com a aventura do Dembo, dedico esta história.
A Vagabunda é isso mesmo. Uma ilustre e bela desconhecida a quem a Mãe Filomena deu o nome.
Deve existir por aí…
Para mal dos meus pecados.
(Actualizada em 17 de Novembro de 2021)
GANDADEMBO.MERECE OS PAIS QUE TEM E A MADRINHA AMERICANA.LUV U
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