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Linha Aérea e outros voos - Ponte Aérea Luanda - Ilha do Sal / 1975
Uma história trágico… cómica não! Patética.
Estes acontecidos passam-se durante a Ponte Aérea que tentou recolher as centenas de milhar de Portugueses e não só, completamente abandonados e sem nenhuma protecção do Estado a que julgavam pertencer. Agora já não eram Portugueses, agora era apátridas, incómodos, descartados.
E não foi Estado nenhum que os salvou. Foram alguns Portugueses, com a incómoda ajuda do Estado Português.
Esta história passa-se com uma pequeníssima parte desses ex-Portugueses, agora duplamente apátridas, terrivelmente abandonados, completamente desprotegidos.
Que naquele dia tiveram sorte. O que restava do Estado Português, alguns Portugueses, apiedaram-se e deram-lhes o conforto possível
Às oito da manhã daquele dia com muito Sol, em Luanda, em 1975, da janela do meu quarto do Hotel Trópico, vi um pequeno ajuntamento a formar-se em frente ao prédio em construção do outro lado da rua.
Eram os cabo-verdianos que iam ser "retornados" no meu voo e que estavam ali temporariamente alojados. Alojados? O prédio de vários andares só tinha de pé a estrutura e as paredes interiores. Nada mais. Nem água nem electricidade nem portas ou janelas.
Luanda vivia os dramáticos dias finais da soberania portuguesa de 500 anos e preparava-se afanosamente para uma sangrenta guerra civil que iria durar décadas.
Os sinais de desorientação, anarquia e decadência eram perceptíveis em todo o lado.
No próprio Hotel as condições ameaçavam degradar-se rapidamente. O Restaurante, no 6º Andar, com os elevadores avariados, proporcionava um excelente exercício físico que depois não era compensado. Quando cheguei a Luanda para fazer este voo, soube que a ementa da última semana tinha mudado. Depois de sete dias seguidos a feijoada, mudaram finalmente. Tive sorte...
A nossa apresentação para o voo Luanda - Ilha do Sal estava prevista para as duas da tarde. E aquela gente que já aguardava o transporte para o Aeroporto desde as 8 da manhã, tinha pernoitado naquele esqueleto de prédio.
Magnifico refúgio, em boa verdade. Ali pelo menos não voavam balas.
Antes das dez da manhã, já com o meu pequeno-almoço tomado no quarto, dava para ver que no meio da rua estavam já os cerca de 400 “retornados”, homens, mulheres e muitas crianças, que iríamos transportar para a Ilha do Sal por volta das 4 da tarde.
O telefone toca e então recebo o primeiro adiamento da partida.
E aquelas famílias na rua à espera dos camiões que nunca mais vinham, ajeitando as bagagens e com um olho nos miúdos que só lhes apetecia era correr de um lado para o outro.
As cabeças num permanente rodopio a ver quem via primeiro um qualquer camião.
Recebi mais um ou dois telefonemas com adiamentos.
Os outros, do outro lado da rua, continuavam à espera debaixo de um Sol abrasador. O transporte sempre quase a chegar e ninguém era informado de nada.
Tiveram que esperar até cerca das 8 da noite. Sem água ou comida.
A tripulação do Boeing B 747 da TAP, eu era o Co-Piloto do voo, saiu do Hotel às 21h30m.
Os “passageiros” daquele voo não comercial, da Ponte Aérea, sob a autoridade do IARN, Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais, embarcaram já perto da meia-noite finalmente libertos daquele drama, finalmente em paz.
E o voo lá saiu, para a Ilha do Sal, nas primeiras horas do novo dia.
A bordo, para dar de comer a toda aquela gente que eu vira de pé, na rua, sem comida nem água, desde pelo menos 16 horas antes, nada havia para lhes dar.
Nada tinha embarcado!
Nada, é mesmo NADA. . .
Os nossos Tripulantes de Cabine, Assistentes e Comissários, sensíveis à situação, fizeram uma espécie de consomé, muito à base de água… para as crianças mais pequenas. Não dava para mais.
E foi assim que toda aquela gente retornou a casa.
Com a muito pouca dignidade que o agora ex-Estado a que ainda pertenciam as tratavam.
Felizmente para tantos, ainda tiveram o auxílio de muito poucos Portugueses.
Mas no meio dos maiores dramas há sempre episódios, embora muito pungentes, que no entanto nos fazem querer sorrir.
De tão absurdos que são.
Os dias de desespero e desnorte que se viviam em Luanda proporcionaram-me um dos mais dramáticos e ao mesmo tempo caricatos episódios a que assisti durante aqueles meses de Ponte Aérea.
Após o desembarque daqueles agora libertos cidadãos, o chefe de escala da TAP na Ilha do Sal, meio a rir meio atrapalhado, veio pedir ao Comandante os seus bons ofícios para um drama difícil de resolver.
Um homem já entrado na idade e provavelmente muito entrado no drama que era viver em Luanda naqueles tempos com a família, pedia desesperadamente que lhe dissessem o que era feito da sua mulher e dos seus filhos.
- Mas ó homem! Você perdeu a sua família... a bordo?! Perguntou-lhe o Comandante.
- Não senhor… dizia o homem muito choroso.
- Atão ?
- Eu trabalho no aeroporto de Luanda e ouvi dizer que todos os cabo-verdianos vinham neste voo.
Nesse dia houve 3 voos de Luanda para o Sal.
- Sim…
- Como vinham todos, a minha mulher e os meus filhos também vinham…
- Sim, e depois ?
- Depois, quando desembarquei, vi que não estavam a bordo…
- Então não embarcaram consigo ?
- Eu sou funcionário do Aeroporto de Luanda, estava a trabalhar no Aeroporto e corri para apanhar este voo.
- E a sua família, você não falou com eles, não os viu?
- Atão não era para virem TODOS os cabo-verdianos ???
- Ó homem de Deus … !!!
E lá regressámos com o avião vazio a Luanda sem saber muito bem como arrumar todas estas complicadas ideias na cabeça.
(Actualizada em 6 de Maio de 2014)
Publicada por
Gabriel Cavaleiro
à(s)
domingo, novembro 06, 2011
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Linha Aérea e outros voos - Como eu conheci o Pato François
Brilhante evento!
Era um dos meus primeiros voos a Nova Iorque, como tripulante da TAP.
A grande cidade que ainda hoje enfeitiça qualquer pessoa.
E então em 1972, eu ainda um muito Moçambicano perfeitamente fascinado com aquela frenética e apaixonante cidade!
Tinha ido a trabalhar como Co-Piloto de B 707 e tive a sorte de me ter calhado no regresso, uns dois dias depois, voltar para casa não como tripulante mas como extra-crew, ou seja sem funções a bordo, como um passageiro qualquer.
E logo num Boeing B 747! Aquele grande avião onde nunca tinha voado. Seria a minha estreia e ainda por cima à boleia.
Foto minha em Lourenço Marques, 1975 |
Naquela altura era comum haver em Nova Iorque mais do que uma tripulação em estadia.
E como o B 747 necessitava de 17 tripulantes para um voo normal, às vezes éramos muitos “TAPs” na cidade.
Foto tirada do FaceBook. Desconheço o autor |
Ia eu no meu primeiro ano de voo.
Muito compenetrado no meu papel de Co-Piloto bem comportado a construir o meu futuro como Comandante que um dia tinha que conseguir ser.
E por ainda ser novo na companhia, era normal não conhecer toda a gente. Mas conhecia histórias de alguns que pela sua maneira de ser se destacavam da média, do comum dos mortais.
Nem todos para cima. Nem todos para baixo.
Chegada a hora do regresso a casa, adeus Nova Iorque, lá nos metemos todos num grande auto-carro, os que iam a trabalhar muito bem fardadinhos e aqueles que iam viver a bordo à custa do suor dos colegas, muito satisfeitos por não ir fazer nada.
Eu ainda tinha nesse dia o aliciante de ir conhecer o B 747.
Foi pois com grande prazer que entrei a bordo. Ainda não conhecia todos os colegas e alguns deles provavelmente não sabiam quem eu era porque eu estava desfardado.
Tínhamo-nos cumprimentado todos à entrada para o Auto-carro, mas com beijinhos e apertos de mão de cerimónia, para quem não se conhecia. Normalmente há sempre acompanhantes, familiares, e eu podia ter sido confundido com um desses “penduras”.
Às tantas do voo, já depois de ter jantado e der ido espreitar aquele enorme cockpit, sentei-me a uma das meses do Upper-deck. Aquela confortável sala de estar, no primeiro andar do avião, logo atrás do cockpit.
Um Upper deck de um B 747, não TAP |
E embrenhei-me na leitura de uma daquelas revistas que só muitos, mas mesmo muitos anos depois o comum dos portugueses teve acesso. E não era a Play Boy…
Sabia mesmo bem estar ali confortavelmente sentado, longe de tudo, muitas vezes sem ninguém por perto, muito sossegado, embalado pelo suave ronronar dos grandes reactores daquele magnífico avião. Era um grande prazer…
- O senhor deseja um Uísque?
À minha frente tinha um Comissário, impecavelmente fardado, com um ar de grande profissional que só podia ser, meio inclinado para mim, a atitude de quem pretende que o voo corra de modo a que o passageiro, com quem certamente me confundia, jamais se esqueça e queira voltar sempre.
Cativou-me tanta simpatia…
Mas eu nunca gostei de Uísque. Nem me apetecia nada.
- Muito obrigado. Agora não, obrigado.
- E um Gin-tonic?
- Também não. Agradeço-lhe muito, mas realmente não me apetece nada.
- E um broche?
- TU SÓ PODES SER O PATO FRANÇOIS!!! Saiu-me, de chofre.
Era, realmente…
O Pato François prepara-se para oscular, graciosamente, o colega Manuel Campos Pinto...
|
Tinha aquele malandro à minha frente! Olha-se para aquela cara e percebe-se logo quem é o fulano...
E o desgraçado mantinha o mesmo sorriso, de quem tinha gozado mais um…
Foi assim que o conheci, aquele grandessíssimo safado de quem já tinha ouvido muitas histórias.
(Actualizada em 21 de Junho de 2015)
Publicada por
Gabriel Cavaleiro
à(s)
quinta-feira, outubro 13, 2011
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Linha Aérea e outros voos – O último voo na PIA
Podia ter acabado mal...
No dia 30 de Agosto de 1976, fiz o último voo de assistência da TAP à PIA (Pakistan International Airlines) ao abrigo do acordo da venda de dois Boeings B 747. A PIA introduziu o B 747 na sua frota de aviões em Maio desse ano, com a colaboração dos Pilotos e Mecânicos de Voo da TAP, comprando os nossos dois mais recentes B 747.
No dia 30 de Agosto de 1976, fiz o último voo de assistência da TAP à PIA (Pakistan International Airlines) ao abrigo do acordo da venda de dois Boeings B 747. A PIA introduziu o B 747 na sua frota de aviões em Maio desse ano, com a colaboração dos Pilotos e Mecânicos de Voo da TAP, comprando os nossos dois mais recentes B 747.
O mais recente tinha sido fabricado na Boeing um ano antes…
Nesse último dia de Agosto de 1976 preparava-me para fazer o último voo desse acordo: Karachi, Islamabad, Karachi. No dia seguinte a última tripulação TAP, a minha, deixava o Paquistão já como simples passageiros num voo que nos levaria a Teerão, Frankfurt e depois, já na TAP, finalmente Lisboa.
Islamabad fica a pouco mais de 1h30m de voo de Karachi. O Aeroporto chama-se, actualmente, Aeroporto Benazir Bhutto. E nessa tarde, do nosso último voo, fomos brindados com uma situação meteorológica peculiar. A pressão atmosférica local era de 888mb (milibares), a mais baixa com que jamais iniciei um voo em toda a minha carreira aeronáutica.
Na China o Nº8 significa sorte. Então 888...
A pressão standard é de 1013mb… Acima deste valor começam as Altas Pressões, os Anticiclones, como o dos Açores. Abaixo de 1013mb começam as Depressões, o “mau tempo” que tantas vezes nos dá um magnífico pôr-do-Sol ou um suave entardecer a olhar para uma chuvinha mansa.
O Aeroporto de Karachi estava pois exactamente no centro de uma grande depressão, até porque o vento era nulo e a temperatura atingia os 36ºC.
Estávamos exactamente no meio do “olho” da grande depressão meteorológica, como se diz na gíria.
Na nossa rota estavam previstos encontros com inúmeros cumulonimbus, aquelas grandes nuvens onde se escondem todas as raivas atmosféricas, todos os grandes geradores de enormes e faiscantes relâmpagos, com aquelas carantonhas medonhas de bochechas cheias para soprar ventos de espantar.
E foi assim que me fiz àquele rectângulo comprido, com ar de pista com umas luzinhas, mas muito cool. Muito cool… estava tudo aos esses! E eu não fumava coisas, não bebia antes dos voos, muito menos shots que ainda não havia, nem nunca me meti em drogas.
Mas deve ficar-se assim…
Escusado será dizer que a aterragem foi, a sério, acreditem, magnifica. Eu e aquele avião tínhamos uma paixão avassaladora um pelo outro. Temos. Temos, porque eu nunca a perdi…
Este foi, tenho a certeza, um dos voos que me elevou a classificação na escolha dos futuros Comandantes da TAP, cujo curso comecei três meses depois.
Já no chão fomos avaliar melhor a situação.
A saber: o nariz do avião, de seu nome técnico, em Inglês, “radome” (radar dome) tinha sido empurrado para cima. Como o avião voava, normalmente, com cerca de 2º de nariz para cima, aqueles criminosos blocos de gelos tinham empurrado violentamente a radome ainda mais para cima como se tivesse rodado num eixo criando uma “fenda” na parte de baixo com 2cm de largura!
Além das grandes mossas, mesmo na ponta do nariz. Quase que lho partiam. Mas não, aguentou-se bem… mas empinou-o, orgulhoso de estar ali, ferido mas inteiro!
Ao longo da fuselagem, a todo o comprimento do avião e englobando as janelas dos passageiros, aquele avião da PIA tinha uma larga risca de tinta verde.
Pois ficou a ver-se um cinzento esverdeado, a cor base do primário aplicado.
O vidro do lugar do Comandante tinha uma grossa camada exterior de vidro laminado feito em centenas de pedacinhos de vidro que iam escorrendo lentamente. Parecia gelo, tão branco era. Tive de subir uma escada para lhe ir tocar e ter a certeza de que não era gelo. Com 35ºC era difícil, mas…
Decidiu-se que não voltávamos para Karachi sem um vidro novo do Comandante, que só foi substituído no dia seguinte, mandado num outro voo.
E foi já para além do nosso contracto de trabalho, que expirara no dia anterior, que regressámos a Karachi, a tempo de ir a correr ao Hotel fazer as malas e voltar apressadamente para o Aeroporto a tempo de apanhar o voo para casa.
E o que é que nos calhou?
O mesmo avião e no mesmo estado!
A PIA não tinha “narizes” de avião para substituir e o avião foi assim despachado para Teerão. Não me lembro, mas o “meu” vidro deve ter sido também substituído.
E nós os três, os que tinham feito o último voo naquele avião, fomos minuciosamente interrogados pelos nossos colegas paquistaneses, incrédulos.
- Atão… vocês entraram como, dentro de um cumulonimbus, com dois écrans de radar e a cores? Estavam ligados? Vocês estavam a olhar para onde?
Difícil explicar. Tínhamos feito o normal, só que a rota estava limpa de ecos e mesmo assim foi o que foi. É estranho, mas foi mesmo assim.
E quem é que os convencia?
Naquele dia tínhamos estragado não só a pintura e outras coisas ao avião, como a boa imagem que a TAP tinha deixado naqueles aviadores.
Mas a vida também tem destas coisas.
Teerão, finalmente. Ainda ali reinava o Resha Palhevi, Sha do Irão.
Aqui havia sempre troca de tripulação e foi pois passado o testemunho ao outro Comandante paquistanês que, à medida que ia sendo informado da situação menos boa do avião, ia mandando olhares menos simpáticos aos três portugueses que, embora calmos e serenos, sentados no upper deck, lá em cima atrás do cockpit, não deixavam de ser, provavelmente, censurados pelos colegas da PIA.
E a decisão, correcta a nosso ver, daquele Comandante que tinha de levar o avião naquele estado para a Europa, foi:
- Não aceito o avião assim! A radome tem de ser substituída!
Quem dava assistência Técnica à PIA em Teerão era a extinta Pan American, um mecânico Americano que já tinha também franzido o sobrolho em conversa connosco.
- Então vocês entraram por um cumulonimbus dentro!? Ok…
Mas havia um problema. A radome da PIA era em tons de verde, como todo o avião. E só havia uma para substituir e era da Iran Air, muito azul…
- Ponha essa! Aceita o Comandante paquistanês.
E nós os três fomos deixados sós, como os meninos mal comportados de que ninguém gosta. Gente que não merece o respeito de ninguém.
- Daqui a umas horas já nos livramos deles. Teriam pensado aqueles nossos colegas, aborrecidos por aquele atraso e pelos estragos e despesa causada no seu belo e novíssimo avião…
Nem meia hora depois aparece o Mecânico da Pan Am, a subir a correr as escadas, os degraus dois a dois, ofegante e furibundo, dedo em riste apontado ao chateado Comandante paquistanês e diz-lhe:
- Você sabe porque é que eles entraram por um cumulonimbus dentro? Sabe?
- Pois eu vou-lhe dizer! O nariz da radome tinha anteriormente uns buracos, provavelmente provocadas por pequenas pedras atiradas durante a rolagem, no chão, empurradas pelos jactos dos reactores dos aviões a rolar á frente. E sabe como é que os seus mecânicos em Karachi resolveram o problema? Sabe? Colaram fita metálica auto-adesiva, de alumínio, mesmo em frente à antena de Radar! De alumínio! E voltaram a pintar por cima, tudo de preto baço! Como é que eles podiam ver ecos de radar para a frente? Como!? Com a fita metálica ali mesmo à frente…Fita metálica!
Este voo para Islamabad foi feito no B 747 da PIA, matriculado AP-AYV ex-TAP CS-TJC. Diário de Navegação Nºs 9545/006 e 007.
No dia 30 de Agosto de 1976, fiz o último voo de assistência da TAP à PIA (Pakistan International Airlines) ao abrigo do acordo da venda de dois Boeings B 747. A PIA introduziu o B 747 na sua frota de aviões em Maio desse ano, com a colaboração dos Pilotos e Mecânicos de Voo da TAP, comprando os nossos dois mais recentes B 747.
O mais recente tinha sido fabricado na Boeing um ano
antes…
No dia 30 de Agosto de 1976, fiz o último voo de assistência da TAP à PIA (Pakistan International Airlines) ao abrigo do acordo da venda de dois Boeings B 747. A PIA introduziu o B 747 na sua frota de aviões em Maio desse ano, com a colaboração dos Pilotos e Mecânicos de Voo da TAP, comprando os nossos dois mais recentes B 747.
O mais recente tinha sido fabricado na Boeing um ano antes…
Nesse último dia de Agosto de 1976 preparava-me para fazer o último voo desse acordo: Karachi, Islamabad, Karachi. No dia seguinte a última tripulação TAP, a minha, deixava o Paquistão já como simples passageiros num voo que nos levaria a Teerão, Frankfurt e depois, já na TAP, finalmente Lisboa.
Islamabad fica a pouco mais de 1h30m de voo de Karachi. O Aeroporto chama-se, actualmente, Aeroporto Benazir Bhutto. E nessa tarde, do nosso último voo, fomos brindados com uma situação meteorológica peculiar. A pressão atmosférica local era de 888mb (milibares), a mais baixa com que jamais iniciei um voo em toda a minha carreira aeronáutica.
Na China o Nº8 significa sorte. Então 888...
A pressão standard é de 1013mb… Acima deste valor começam as Altas Pressões, os Anticiclones, como o dos Açores. Abaixo de 1013mb começam as Depressões, o “mau tempo” que tantas vezes nos dá um magnífico pôr-do-Sol ou um suave entardecer a olhar para uma chuvinha mansa.
O Aeroporto de Karachi estava pois exactamente no centro de uma grande depressão, até porque o vento era nulo e a temperatura atingia os 36ºC.
Estávamos exactamente no meio do “olho” da grande depressão meteorológica, como se diz na gíria.
Na nossa rota estavam previstos encontros com inúmeros cumulonimbus, aquelas grandes nuvens onde se escondem todas as raivas atmosféricas, todos os grandes geradores de enormes e faiscantes relâmpagos, com aquelas carantonhas medonhas de bochechas cheias para soprar ventos de espantar.
A beleza assustadora de um Cumulonimbus. A parte superior tem o nome técnico de "bigorna", significativo... |
Foi assim que descolámos, executando eu, como Co-Piloto, as funções de pilot not flying, para no regresso ser eu a fazer então a última aterragem, já em Karachi.
Felizmente os nossos dois écrans de radar permitiam-nos seguir sem problemas a rota planeada. E foi o que nos preparámos para fazer. Com cuidados redobrados, dada a situação meteorológica.
A turbulência começou ainda durante a subida, por volta dos 12.000 pés, 4km de altitude.
E foi aumentando, significativamente, à medida que o grande avião dava tudo para chegar à altitude desejada.
Olhos pregados no radar, os écrans cheios de enormes pontos de luz esverdeada com grandes manchas vermelhas no centro - uma zona a evitar passar a todo o custo! - que nos sinalizavam o miolo dos muitos e problemáticos cumulonimbus que sabíamos de antemão ir enfrentar. E eles lá estavam, realmente.
Mas o nosso caminho, em frente, continuava, felizmente, livre deles.
No entanto, a subida fazia-se à custa de cada vez mais turbulência, o piloto automático a esfalfar-se para manter a rota e a velocidade e a pedir, aos berros, às manetes da potência dos reactores que fossem mais diligentes:
- Vocês não vêem que a velocidade está a cair?! Metam mais motor!
- E agora foi demais!
- Reduz, reduz! Olha-me essa turbulência!
O monólogo do piloto automático enchia-nos o cockpit de stress.
Na cabina iam todos sentados, passageiros, Assistentes e Comissários. E de cintos apertados. Aquilo abanava bem...
Entretanto aproximávamo-nos rapidamente dos 18.000’, 6km de altitude.
Que é, nem mais, nem menos, a altitude mais crítica dentro de um Cumulonimbus, onde todos os demónios da baixa e negra meteorologia se envolvem numa luta fratricida.
Onde todos eles actuam com todas as suas demoníacas capacidades e atacam em simultâneo, cegamente, todos como um só, numa raiva extrema, na maior violência que se possa imaginar, sem a mínima complacência! Quanto pior, melhor…
Afinal, o Castelo da Má, como um dia lhe chamou a minha neta Beatriz ao ver um, por cima da Serra da Arrábida.
E foi exactamente ao passar pelos 18.000’ que aquilo aconteceu.
BANG!
Chocámos contra uma vasta massa de matracas mecânicas que em fúria atacavam a frente do avião, apanhado de surpresa.
O grande B 747 gemia, apavorado mas soberano e sofria na pele toda aquela loucura dos elementos revoltos, procurando desesperadamente manter-se no ar tentando evitar os golpes mais dolorosos.
Sem se perceber se era por nos estarmos a meter no meio daquela insanidade ou se era um deliberado ataque suicida contra inocentes que inadvertidamente tivessem beliscado tão sensíveis demónios, o que estava realmente a acontecer, o que eu realmente via, confesso que com muito receio, eram grandes blocos de gelo, do tamanho de meloas ovaladas, a chocarem connosco a 600 quilómetros por hora, umas atrás das outras, continuamente, dando a sensação que havia sempre mais projécteis atrás dos muitos que simultaneamente nos atingiam.
Um perfeito pesadelo mesmo para aviadores de barba rija!
No meio de um enorme barulho de muitas pedras contra tão pouca lata.
A minha reacção instintiva foi baixar a cadeira de modo a evitar um provável impacto contra a minha cabeça, de um em milhares, daqueles veloses e cegos pedregulhos de gelo compacto.
Ao fim de algum tempo, que nos pareceu demasiado castigo, ou por se terem acabado os projécteis ou mais provavelmente por termos saído do centro do cumulonimbus, voltámos a conseguir pensar e falar, três esfrangalhados argonautas.
Mas a situação no cockpit já não era a normal. Aquele cobarde ataque, com blocos de gelo em contínuo arremesso, deixou danos no nosso avião.
Com uma ressalva.
Os reactores.
Aqueles magníficos quatro bravos motores, nem pestanejaram. Nem por um momento quiseram olhar sequer para os pedregulhos de gelo. Devem-nos ter engolido, desfeito, retribuindo a raiva e restabelecendo a identidade de quem é soberano e sabe lidar contra elementos em fúria. Todos nós, humanos e todo o avião, éramos uma única força a lutar contra o mal.
Vencemos, mas tivemos que lamber as feridas.
Uma delas, grave, atingiu os dois vidros da frente do cockpit. O vidro do Comandante ficou com o aspecto de uma chapa de plástico, pintada de branco. Completamente opaco… o Comandante nunca mais viu nada para a frente. E cabia-lhe a ele aterrar, de noite, em Islamabad. Na altura uma pista mal apetrechada em equipamento para voos nocturnos.
O vidro da frente do meu lado, o da direita, felizmente de fabricante diferente, soubemos depois, ficou sem toda a camada protectora exterior, cerca de 8mm de espessura a menos, provocando uma visão ondulada da realidade à minha frente. Nada do que eu via tinha linhas rectas… Mas ainda via o suficiente.
Para que se perceba melhor a escala do incidente, a espessura daqueles vidros é de 7,5cm. E pesam 90kg cada um.
Foi este o dano mais imediato e preocupante de que nos apercebemos.
Para além disso, o diálogo entre nós tornou-se difícil. O grande barulho aerodinâmico que agora ouvíamos, obrigava-nos a falar muito alto para nos entendermos. O que significava danos, que desconhecíamos, na aerodinâmica do avião, na zona do cockpit. Algo estava a obrigar a normal passagem do ar pela fuselagem a seguir caminhos tortuosos.
Restava-nos avaliar a situação agora criada, nomeadamente os possíveis estragos físicos e psicológicos na grande cabina dos passageiros e afinar a estratégia da aterragem nocturna naquela pista, com o Comandante agora “cego” e o Co-Piloto meio zarolho.
Passageiros na cabina, Assistentes e Comissários estavam todos bem.
Se soubessem que tínhamos um vidro a menos…
O Comandante, que era Instrutor de voo na TAP, decidiu que, não estando legalmente certificado para aterrar sentado no lugar do Co-Piloto num voo com passageiros, quem teria de fazer a aterragem em Islamabad era eu.
Decisão difícil. Com a independência do Ultramar, os voos dos B 747 diminuíram imenso com a falta de tráfego. Os voos passaram a ter quase sempre 2 Comandantes e um só Co-Piloto a quem de vez em quando era dada a facilidade de fazer uma aterragem, para não perder a mão. Nós, Co-Pilotos, não tínhamos o treino normal naquele avião. Foi uma das razões porque me ofereci para voar na PIA. Uma oportunidade de fazer pelo menos uma aterragem por dia e não por mês, como tinha feito, em média, no último ano.
Coube-me pois, por força da situação, aterrar em Islamabad como se estivesse sozinho no avião. Imagino o que foi para o Comandante. Ele nada via. E eu via tudo aos esses. A pista, na altura, não tinha nenhuma outra ajuda electrónica ou visual que não fosse exclusivamente as luzes da pista. Nem Papis, nem Vasis, nem sequer, ao menos, Luzes de Aproximação. Nem mesmo um ILS.
Papis e Vasis são equipamentos colocados ao lado das pistas, com luzes de grande intensidade, encarnadas e brancas, que facilmente nos dizem, por observação das cores, se vamos na altitude correcta, a cada momento da aproximação à pista.
As Luzes de Aproximação facilitam a visualização da geometria do espaço, da pista em relação ao terreno, permitindo um alinhamento com a pista desde uma grande distância.
Especialmente de noite, ou com mau tempo, quando a pista, sem elas, parece uma pequena ilha em forma de rectângulo alongado.
ILS é um sistema electrónico de guiamento para a aterragem, que já na altura permitia até fazer aterragens com o Piloto Automático ligado.
Tudo facilidades que eu não iria ter naquela noite, quando todas as minhas capacidades iriam ser postas à prova.
Felizmente os nossos dois écrans de radar permitiam-nos seguir sem problemas a rota planeada. E foi o que nos preparámos para fazer. Com cuidados redobrados, dada a situação meteorológica.
A turbulência começou ainda durante a subida, por volta dos 12.000 pés, 4km de altitude.
E foi aumentando, significativamente, à medida que o grande avião dava tudo para chegar à altitude desejada.
Olhos pregados no radar, os écrans cheios de enormes pontos de luz esverdeada com grandes manchas vermelhas no centro - uma zona a evitar passar a todo o custo! - que nos sinalizavam o miolo dos muitos e problemáticos cumulonimbus que sabíamos de antemão ir enfrentar. E eles lá estavam, realmente.
Mas o nosso caminho, em frente, continuava, felizmente, livre deles.
No entanto, a subida fazia-se à custa de cada vez mais turbulência, o piloto automático a esfalfar-se para manter a rota e a velocidade e a pedir, aos berros, às manetes da potência dos reactores que fossem mais diligentes:
- Vocês não vêem que a velocidade está a cair?! Metam mais motor!
- E agora foi demais!
- Reduz, reduz! Olha-me essa turbulência!
O monólogo do piloto automático enchia-nos o cockpit de stress.
Na cabina iam todos sentados, passageiros, Assistentes e Comissários. E de cintos apertados. Aquilo abanava bem...
Entretanto aproximávamo-nos rapidamente dos 18.000’, 6km de altitude.
Que é, nem mais, nem menos, a altitude mais crítica dentro de um Cumulonimbus, onde todos os demónios da baixa e negra meteorologia se envolvem numa luta fratricida.
Onde todos eles actuam com todas as suas demoníacas capacidades e atacam em simultâneo, cegamente, todos como um só, numa raiva extrema, na maior violência que se possa imaginar, sem a mínima complacência! Quanto pior, melhor…
Afinal, o Castelo da Má, como um dia lhe chamou a minha neta Beatriz ao ver um, por cima da Serra da Arrábida.
E foi exactamente ao passar pelos 18.000’ que aquilo aconteceu.
BANG!
Chocámos contra uma vasta massa de matracas mecânicas que em fúria atacavam a frente do avião, apanhado de surpresa.
O grande B 747 gemia, apavorado mas soberano e sofria na pele toda aquela loucura dos elementos revoltos, procurando desesperadamente manter-se no ar tentando evitar os golpes mais dolorosos.
Sem se perceber se era por nos estarmos a meter no meio daquela insanidade ou se era um deliberado ataque suicida contra inocentes que inadvertidamente tivessem beliscado tão sensíveis demónios, o que estava realmente a acontecer, o que eu realmente via, confesso que com muito receio, eram grandes blocos de gelo, do tamanho de meloas ovaladas, a chocarem connosco a 600 quilómetros por hora, umas atrás das outras, continuamente, dando a sensação que havia sempre mais projécteis atrás dos muitos que simultaneamente nos atingiam.
Um perfeito pesadelo mesmo para aviadores de barba rija!
No meio de um enorme barulho de muitas pedras contra tão pouca lata.
A minha reacção instintiva foi baixar a cadeira de modo a evitar um provável impacto contra a minha cabeça, de um em milhares, daqueles veloses e cegos pedregulhos de gelo compacto.
Ao fim de algum tempo, que nos pareceu demasiado castigo, ou por se terem acabado os projécteis ou mais provavelmente por termos saído do centro do cumulonimbus, voltámos a conseguir pensar e falar, três esfrangalhados argonautas.
Mas a situação no cockpit já não era a normal. Aquele cobarde ataque, com blocos de gelo em contínuo arremesso, deixou danos no nosso avião.
Com uma ressalva.
Os reactores.
Aqueles magníficos quatro bravos motores, nem pestanejaram. Nem por um momento quiseram olhar sequer para os pedregulhos de gelo. Devem-nos ter engolido, desfeito, retribuindo a raiva e restabelecendo a identidade de quem é soberano e sabe lidar contra elementos em fúria. Todos nós, humanos e todo o avião, éramos uma única força a lutar contra o mal.
Vencemos, mas tivemos que lamber as feridas.
Uma delas, grave, atingiu os dois vidros da frente do cockpit. O vidro do Comandante ficou com o aspecto de uma chapa de plástico, pintada de branco. Completamente opaco… o Comandante nunca mais viu nada para a frente. E cabia-lhe a ele aterrar, de noite, em Islamabad. Na altura uma pista mal apetrechada em equipamento para voos nocturnos.
O vidro da frente do meu lado, o da direita, felizmente de fabricante diferente, soubemos depois, ficou sem toda a camada protectora exterior, cerca de 8mm de espessura a menos, provocando uma visão ondulada da realidade à minha frente. Nada do que eu via tinha linhas rectas… Mas ainda via o suficiente.
Para que se perceba melhor a escala do incidente, a espessura daqueles vidros é de 7,5cm. E pesam 90kg cada um.
Foi este o dano mais imediato e preocupante de que nos apercebemos.
Para além disso, o diálogo entre nós tornou-se difícil. O grande barulho aerodinâmico que agora ouvíamos, obrigava-nos a falar muito alto para nos entendermos. O que significava danos, que desconhecíamos, na aerodinâmica do avião, na zona do cockpit. Algo estava a obrigar a normal passagem do ar pela fuselagem a seguir caminhos tortuosos.
Restava-nos avaliar a situação agora criada, nomeadamente os possíveis estragos físicos e psicológicos na grande cabina dos passageiros e afinar a estratégia da aterragem nocturna naquela pista, com o Comandante agora “cego” e o Co-Piloto meio zarolho.
Passageiros na cabina, Assistentes e Comissários estavam todos bem.
Se soubessem que tínhamos um vidro a menos…
O Comandante, que era Instrutor de voo na TAP, decidiu que, não estando legalmente certificado para aterrar sentado no lugar do Co-Piloto num voo com passageiros, quem teria de fazer a aterragem em Islamabad era eu.
Decisão difícil. Com a independência do Ultramar, os voos dos B 747 diminuíram imenso com a falta de tráfego. Os voos passaram a ter quase sempre 2 Comandantes e um só Co-Piloto a quem de vez em quando era dada a facilidade de fazer uma aterragem, para não perder a mão. Nós, Co-Pilotos, não tínhamos o treino normal naquele avião. Foi uma das razões porque me ofereci para voar na PIA. Uma oportunidade de fazer pelo menos uma aterragem por dia e não por mês, como tinha feito, em média, no último ano.
Coube-me pois, por força da situação, aterrar em Islamabad como se estivesse sozinho no avião. Imagino o que foi para o Comandante. Ele nada via. E eu via tudo aos esses. A pista, na altura, não tinha nenhuma outra ajuda electrónica ou visual que não fosse exclusivamente as luzes da pista. Nem Papis, nem Vasis, nem sequer, ao menos, Luzes de Aproximação. Nem mesmo um ILS.
Papis e Vasis são equipamentos colocados ao lado das pistas, com luzes de grande intensidade, encarnadas e brancas, que facilmente nos dizem, por observação das cores, se vamos na altitude correcta, a cada momento da aproximação à pista.
As Luzes de Aproximação facilitam a visualização da geometria do espaço, da pista em relação ao terreno, permitindo um alinhamento com a pista desde uma grande distância.
Especialmente de noite, ou com mau tempo, quando a pista, sem elas, parece uma pequena ilha em forma de rectângulo alongado.
ILS é um sistema electrónico de guiamento para a aterragem, que já na altura permitia até fazer aterragens com o Piloto Automático ligado.
Tudo facilidades que eu não iria ter naquela noite, quando todas as minhas capacidades iriam ser postas à prova.
Aeroporto Benazir Bhutto, em Islamabad. À direita vê-se uma auto-estrada. A pista está ao centro. Imagem actual |
E foi assim que me fiz àquele rectângulo comprido, com ar de pista com umas luzinhas, mas muito cool. Muito cool… estava tudo aos esses! E eu não fumava coisas, não bebia antes dos voos, muito menos shots que ainda não havia, nem nunca me meti em drogas.
Mas deve ficar-se assim…
Escusado será dizer que a aterragem foi, a sério, acreditem, magnifica. Eu e aquele avião tínhamos uma paixão avassaladora um pelo outro. Temos. Temos, porque eu nunca a perdi…
Este foi, tenho a certeza, um dos voos que me elevou a classificação na escolha dos futuros Comandantes da TAP, cujo curso comecei três meses depois.
Já no chão fomos avaliar melhor a situação.
A saber: o nariz do avião, de seu nome técnico, em Inglês, “radome” (radar dome) tinha sido empurrado para cima. Como o avião voava, normalmente, com cerca de 2º de nariz para cima, aqueles criminosos blocos de gelos tinham empurrado violentamente a radome ainda mais para cima como se tivesse rodado num eixo criando uma “fenda” na parte de baixo com 2cm de largura!
Slide tirado por mim no dia 31 Ago 1976 |
Além das grandes mossas, mesmo na ponta do nariz. Quase que lho partiam. Mas não, aguentou-se bem… mas empinou-o, orgulhoso de estar ali, ferido mas inteiro!
Ao longo da fuselagem, a todo o comprimento do avião e englobando as janelas dos passageiros, aquele avião da PIA tinha uma larga risca de tinta verde.
Pois ficou a ver-se um cinzento esverdeado, a cor base do primário aplicado.
O vidro do lugar do Comandante tinha uma grossa camada exterior de vidro laminado feito em centenas de pedacinhos de vidro que iam escorrendo lentamente. Parecia gelo, tão branco era. Tive de subir uma escada para lhe ir tocar e ter a certeza de que não era gelo. Com 35ºC era difícil, mas…
Decidiu-se que não voltávamos para Karachi sem um vidro novo do Comandante, que só foi substituído no dia seguinte, mandado num outro voo.
E foi já para além do nosso contracto de trabalho, que expirara no dia anterior, que regressámos a Karachi, a tempo de ir a correr ao Hotel fazer as malas e voltar apressadamente para o Aeroporto a tempo de apanhar o voo para casa.
E o que é que nos calhou?
O mesmo avião e no mesmo estado!
A PIA não tinha “narizes” de avião para substituir e o avião foi assim despachado para Teerão. Não me lembro, mas o “meu” vidro deve ter sido também substituído.
E nós os três, os que tinham feito o último voo naquele avião, fomos minuciosamente interrogados pelos nossos colegas paquistaneses, incrédulos.
- Atão… vocês entraram como, dentro de um cumulonimbus, com dois écrans de radar e a cores? Estavam ligados? Vocês estavam a olhar para onde?
Difícil explicar. Tínhamos feito o normal, só que a rota estava limpa de ecos e mesmo assim foi o que foi. É estranho, mas foi mesmo assim.
E quem é que os convencia?
Naquele dia tínhamos estragado não só a pintura e outras coisas ao avião, como a boa imagem que a TAP tinha deixado naqueles aviadores.
Mas a vida também tem destas coisas.
Teerão, finalmente. Ainda ali reinava o Resha Palhevi, Sha do Irão.
Aqui havia sempre troca de tripulação e foi pois passado o testemunho ao outro Comandante paquistanês que, à medida que ia sendo informado da situação menos boa do avião, ia mandando olhares menos simpáticos aos três portugueses que, embora calmos e serenos, sentados no upper deck, lá em cima atrás do cockpit, não deixavam de ser, provavelmente, censurados pelos colegas da PIA.
E a decisão, correcta a nosso ver, daquele Comandante que tinha de levar o avião naquele estado para a Europa, foi:
- Não aceito o avião assim! A radome tem de ser substituída!
Quem dava assistência Técnica à PIA em Teerão era a extinta Pan American, um mecânico Americano que já tinha também franzido o sobrolho em conversa connosco.
- Então vocês entraram por um cumulonimbus dentro!? Ok…
Mas havia um problema. A radome da PIA era em tons de verde, como todo o avião. E só havia uma para substituir e era da Iran Air, muito azul…
- Ponha essa! Aceita o Comandante paquistanês.
E nós os três fomos deixados sós, como os meninos mal comportados de que ninguém gosta. Gente que não merece o respeito de ninguém.
- Daqui a umas horas já nos livramos deles. Teriam pensado aqueles nossos colegas, aborrecidos por aquele atraso e pelos estragos e despesa causada no seu belo e novíssimo avião…
Nem meia hora depois aparece o Mecânico da Pan Am, a subir a correr as escadas, os degraus dois a dois, ofegante e furibundo, dedo em riste apontado ao chateado Comandante paquistanês e diz-lhe:
- Você sabe porque é que eles entraram por um cumulonimbus dentro? Sabe?
- Pois eu vou-lhe dizer! O nariz da radome tinha anteriormente uns buracos, provavelmente provocadas por pequenas pedras atiradas durante a rolagem, no chão, empurradas pelos jactos dos reactores dos aviões a rolar á frente. E sabe como é que os seus mecânicos em Karachi resolveram o problema? Sabe? Colaram fita metálica auto-adesiva, de alumínio, mesmo em frente à antena de Radar! De alumínio! E voltaram a pintar por cima, tudo de preto baço! Como é que eles podiam ver ecos de radar para a frente? Como!? Com a fita metálica ali mesmo à frente…Fita metálica!
Ampliação do slide que está mais acima, onde se vêm perfeitamente as fitas de alumínio, ainda agarradas à antena do radar, o circulo desenhado à volta das fitas. |
E voltou, já mais calmo, para a placa onde acabavam a
montagem daquele nariz de palhaço.
Azul, num avião verde.
No avião que, depois de aquele dia, nunca mais vi.
Durante muito tempo, os meus olhos, quando eu voava para um
qualquer Aeroporto, procuravam com ansiedade um B 747 em tons de verde…
B 747, o melhor avião que voei.
B 747, o melhor avião que voei.
_________________________________________________________
Este voo para Islamabad foi feito no B 747 da PIA, matriculado AP-AYV ex-TAP CS-TJC. Diário de Navegação Nºs 9545/006 e 007.
(Actualizada em 6 de Maio de 2014)
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Gabriel Cavaleiro
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segunda-feira, outubro 10, 2011
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Linha Aérea e outros voos - Descolagem de Londres na PIA, no ex-B 747 da TAP
Deus é Grande. Neste caso chamemos-lhe… Alá.
Em 1976, um ano após a descolonização e a Ponte Aérea, a frota da TAP continuava a ter 4 Boeings B747. Ultrapassavam em muito a nossa capacidade de os utilizar rentavelmente. Tanto avião para tão poucos passageiros… Não conseguíamos tráfego para tantos lugares oferecidos. A solução passou pela venda de dois aviões.
E foi assim que de Maio desse ano e até ao fim de Agosto, várias tripulações TAP deram assistência técnica em voo aos Pilotos e Mecânicos de Voo da Pakistan International Airlines, PIA, os felizardos que nos compraram os 2 mais modernos aviões da nossa frota de B 747. Eu fiz o último de todos esses voos e com uma história rocambolesca, que conto noutra história aqui.
É claro que os Pilotos paquistaneses a voar esses aviões eram os mais antigos e mais experientes.
Mas nem sempre humildes, no sentido de aceitarem alguns simples conselhos que os experientes Pilotos e Mecânicos de Voo da nossa companhia lhes davam. Com aquele espírito que nos caracteriza de tudo dar quando se trata de transmitir conhecimento.
Hoje a classe de Mecânicos de Voo, depois chamados Técnicos de voo ou simplesmente TVs, desapareceu com a informatização dos cockpits.
Grandes senhores, estes profissionais com quem eu privei nessa altura!
Os paquistaneses tinham feito o curso na Boeing e agora, a voar já largados e com passageiros pagantes, precisavam da nossa experiência para tornar mais eficiente e segura a complicada tarefa de executar os muitos procedimento que o avião exigia. Especialmente quando uma revolucionária tecnologia tinha sido implementada há pouco na Aviação Comercial. De seu nome a “Nova Tecnologia”.
Consistia na execução de todo e qualquer procedimento, normal ou de emergência, seguindo um checklist que era lido pelo Piloto que de momento não estava aos comandos e executado por ambos.
Contrariamente ao que antes se fazia e que levava a alguns acidentes: todos os procedimentos tinham de ser executados de cor, em voz alta, volta e meia aos berros, no meio do stress de uma emergência, com alguns itens vitais a ficarem, às vezes, para trás por esquecimento no meio de todo aquele nervosismo…
Era muita novidade junta e o nosso papel ali era orientá-los, ajudá-los.
E foi assim que numa bela manhã de Maio de 1976, logo num dos primeiros voos, ainda na Placa do Aeroporto de Londres, o nosso Comandante TAP quis explicar ao camarada paquistanês como devia utilizar correctamente o novo sistema electrónico de navegação que equipava aqueles magníficos aviões: o INS, Inertial Navigation System. Equipamento que eles nunca tinham utilizado.
O INS funcionava à base de acelerómetros. Na partida de um Aeroporto só tínhamos de lhe colocar as coordenadas do sítio exacto onde estávamos para ele conseguir navegar sem mais ajudas electrónicas externas. E tinha uma grande precisão. Ao fim de dez horas de voo o erro de posição era mínimo. Um equipamento que dispensava qualquer ajuda ou contacto via rádio ou por satélite. 100% autónomo, o que era uma enorme mais-valia.
Muito basicamente, para que tudo corresse bem, o que havia a fazer era introduzir no painel do instrumento, além das coordenadas da posição actual, as primeiras 9 coordenadas dos pontos que se iriam sobrevoar e que constavam do plano de voo entregue e aceite pelas autoridades aeroportuárias.
Nada mais simples e óbvio. O piloto automático encarregava-se de nos levar ao longo desses pontos introduzidos e assim sucessivamente ao longo do voo, por mais longo que fosse.
O que o nosso jovem Comandante TAP tentou explicar ao senhor Comandante paquistanês foi que numa descolagem, em que se sobrevoam várias posições espaçadas poucas milhas umas das outras, em curtos minutos, não era boa política colocar no INS todas essas primeiras posições porque rapidamente se esgotava a capacidade do aparelho: tendo só 9 posições de armazenamento de coordenadas, obrigava a estar permanentemente a “abastecê-lo” de novos pontos de modo a permitir que o piloto automático prosseguisse o seu voo ao longo do sinuoso caminho que é, normalmente, preciso percorrer depois de uma descolagem.
E com o muito trabalho que se tem, em voo, na saída de um grande Aeroporto, o correcto é colocar o primeiro ponto, no INS, numa posição do mapa já um pouco afastado do aeroporto, quando as distâncias entre os vários pontos a sobrevoar a seguir, já sejam de molde a manter o “abastecimento” do INS sem grande stress. Uma questão de bom senso e até de segurança.
Mas naquele dia o homem não estava para aturar aquele jovem Comandante português e com a experiência que tinha disse que sabia muito bem o que devia fazer.
A primeira classe do B747 era magnífica e foi para aí que o nosso Comandante e o seu Co-piloto TAP, este que escreve estas linhas, se dirigiram rapidamente, uma vez que os colegas aos comandos sabiam tão bem o que fazer…
O nosso Mecânico de Voo ficou no cockpit a ajudar o colega da PIA que manifestou o interesse nisso.
E lá foram aquelas centenas de pessoas para o ar em direcção a Frankfurt, Teerão e finalmente, Carachi.
Breves minutos após a descolagem, escassos minutos, muito poucos, num momento do voo em volta acentuada pela esquerda, o nosso Mecânico de Voo desce apressadamente as escadas do upper-deck do B747, que desembocam à entrada da 1ª classe e num riso perdido, entre palavras, gargalhadas e lágrimas soltas lá conseguiu explicar que o Comandante paquistanês estava em pânico com o avião a voltar inexplicavelmente para a esquerda, sendo que a rota era em frente e ele não percebia porquê nem sabia o que fazer…
O riso era justificado porque o nosso competente Mecânico sabia perfeitamente o que se estava a passar. O Comandante paquistanês é que não…Quando o INS esgotava as 9 posições que o avião já tinha sobrevoado, indicava ao piloto automático que devia ir agora para a posição Nº1 que entretanto já tinha sido preenchida com as coordenadas da posição geográfica logo a seguir e assim sucessivamente até ao destino.
Nesta primeira descolagem dos experientes Pilotos da PIA, aquelas almas colocaram todos os pontos da saída de Londres no INS, a começar pelo ponto onde, no fim da pista, teriam de voltar à esquerda para o 2º ponto e assim sucessivamente. Eram 9 pontos que cobriam umas míseras 10 milhas no mapa. Voadas num ápice.
Com a sobrecarga de trabalho normal da descolagem, ninguém se lembrou de “abastecer” o INS de novos pontos para a frente em substituição dos já utilizados tão repentinamente e entretanto o avião estava a voltar, naturalmente, para voar da posição Nº 9, entretanto alcançada, para a posição Nº 1, praticamente o final da pista de onde se descolara breves minutos antes. Era para aí que o avião se dirigia, obediente e previsivelmente, sem nenhuma falha… e sem que aquelas almas conseguissem atinar porquê! Mas a rota era em frente…
É o que acontece quando se sabe tudo…
Esclarecido o Comandante paquistanês, lá prosseguiu o voo sem mais problemas de maior, com o Controlador de Tráfego Aéreo, em terra, sem perceber muito bem o que tinha sido aquilo.
(Actualizada em 1 de Maio de 2014)
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Gabriel Cavaleiro
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segunda-feira, outubro 03, 2011
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Linha Aérea e outros voos - A minha largada em B 747 pelo Comandante Maya
1974. 25 de Abril. Foi a
altura escolhida pelo destino para eu estar a meio das teóricas do curso de
Boeing B 747, na TAP.
Logo a seguir fiz o Simulador, em Seattle. 9 fusos horários para trás. E como havia que poupar (porque é que me há-de calhar sempre a mim…) o Simulador começava sempre entre a meia-noite e as 4 da manhã, de Seattle. Só acertei as agulhas em pleno Atlântico, no voo de regresso.
B 747 |
Logo a seguir fiz o Simulador, em Seattle. 9 fusos horários para trás. E como havia que poupar (porque é que me há-de calhar sempre a mim…) o Simulador começava sempre entre a meia-noite e as 4 da manhã, de Seattle. Só acertei as agulhas em pleno Atlântico, no voo de regresso.
O Simulador em que fiz o curso do B 747 |
Seguem-se os voos base
(onde tive a sorte de fazer o 1º borrego automático da TAP, CS-TJC) e
imediatamente os voos de linha. E foi logo no voo de largada que me havia de
calhar pela primeira vez, na TAP, o Comandante Maya!
Comandantes Maya, Mano e Marcelino. Tive a honra de ter sido Co-Piloto dos Capts Maya e Marcelino, no B 747 |
É preciso ter azar…
A minha pequenez cabia num
dedal mas eu tinha de ser largado dentro do tempo regulamentar, custasse o que
custasse.
Não correu mal… Mal foi
haver quem massacrasse o “velho” Maya com a política. Quem estivesse
constantemente a atirar-lhe à cara coisas que não tinham cabimento nenhum, não
só por ser no local de trabalho, em voo, mas principalmente porque se misturava
a ditadura que havia fanecido com atitudes que os mais velhos tinham
forçosamente que tomar para poder sobreviver, naqueles conturbados tempos e sem
que se lhes conhecesse qualquer acto que tivesse prejudicado alguém por motivos
políticos ou a coberto daquela mesquinha política.
Fez-me pena ver e ouvir um
homem que eu respeitava, que era uma lenda, com peso técnico mas de carácter
também, em desespero dizer que já não podia mais e tinha de tomar um comprimido
para acalmar! Num voo Lisboa, Luanda, Joanesburgo, Luanda, Lisboa…
E foi precisamente na
aterragem em Lisboa, que me calhou fazer, num estado semelhante ao de um cantor
de Festival da Canção frente ao Pavaroti, que eu vi a minha vida a andar para
trás…
O senhor Comandante Maya
resolveu fazer uma das dele e brifou toda a gente para o que se ia seguir.
- Tu continuas a aproximação
e aterras normalmente e não ligues aos avisos. Tu fazes isto, tu fazes aquilo
e eu tomo notas, a ver se a gente percebe como isto funciona.
E vai daí toda a gente se
entreteve a dar-me cabo da vida, sem me ligarem nenhuma: ora falhava isto ora
aquilo, soltavam-se bandeiras de cores variadas, apitava tudo quanto era
corneta, guizos e sininhos, eu sei lá!... e a pista mesmo ali, caraças!
Mas a aterragem foi boa e
eu fui largado!
E vi-me livre do “Fantasma”
que era para mim o Comandante Maya que passou então a ser um Senhor, desligado
das brumas da lenda que era até aí e que passei a ver com outros olhos, ainda
com mais respeito e admiração.
Tive a sorte de ter um
colega de curso, na TAP, em 1969, chamado Pedro e mais tarde um Co-Piloto, de
seu nome Henrique, hoje Comandante de barba rija, que fez o mais espantoso e
crítico borrego que já fiz, depois de estarem as rodas no chão, em Bogotá, num
A310 das Aerolíneas Argentinas, de que éramos, os três, tripulantes em 1994.
As minhas lides de Linha
Aérea estão, bem, cheias de Mayas.
Um abraço a todos os Mayas.
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Gabriel Cavaleiro
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segunda-feira, outubro 03, 2011
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Comandante Maya,
Seatle
Linha Aérea e outros voos - Efeito das “castas” num voo de Boeing B747 da PIA
Aviação moderna num país asiático no Séc XX.
Tal como contei aqui na história a que chamei “Descolagem de Londres na PIA, no ex-Boeing 747 da TAP”, passada em 1976 durante os voos que alguns tripulantes da TAP fizeram de assistência aos colegas paquistaneses (pela venda de dois desses aviões da TAP às linhas aéreas do Paquistão) as relações entre os tripulantes paquistaneses em voo, pilotos ou não, reflectiam muito o grande desfasamento entre classes que existia naquela sociedade.
Na TAP por exemplo e suponho que em qualquer outra Companhia de Aviação do Mundo Ocidental, quando um dos pilotos, Comandante ou não, queria beber um café, tocava num botão existente no painel por cima da cabeça. Isso accionava um toque de telefone na galley lá em baixo, junto à primeira Classe. Uma das Assistentes ou um Comissário atendia-o e o diálogo correspondente estabelecia-se, ambos ao telefone. E quando fosse possível o café lá aparecia no cockpit.
Na Pia, nem pensar! Para começar havia um único tripulante exclusivamente de serviço aos Senhores Pilotos. E quando uma dessas Excelências se desse ao incómodo de tocar naquele botão era só para fazer o diligente tripulante subir rapidamente as escadas, entrar no cockpit e perguntar em que podia ser útil. Por norma o pedido era breve, lacónico, sem que o intocável Senhor se dignasse voltar-se sequer:
- Café!
Sem mais nenhuma palavra…
Como justificação diziam-me que no Paquistão havia 70 milhões de habitantes e um emprego daqueles era uma bênção do céu.
Outro exemplo. Na minha primeira chegada a Carachi para iniciar o meu contrato preparava-me para agarrar na minha pasta para desembarcar, isto ainda dentro do cockpit.
- Não faz isso! Não faz inflação!
Acontece que havia um carregador só para levar todas as malas dos Senhores Pilotos.
E uma última… À chegada às nossas escalas, Londres, Teerão, etc., havia um táxi para os Senhores pilotos e o resto ia num qualquer autocarro, evidentemente para hotéis de estrelas de diferentes cintilações.
Mas em ambiente técnico, no cockpit do avião mais evoluído que existia nesse tempo, as “castas” não podiam reflectir-se na natural diversificação de competências entre os seus tripulantes. Um Comandante não podia, não estava certificado para tal, executar as funções do Mecânico de Voo. Nem sequer sentar-se no local de trabalho do Co-piloto.
Alguns estavam certificados mas por serem instrutores de voo.
Qualquer dos dois pilotos a bordo podia executar sozinho, e ainda hoje isso é naturalmente assim, as funções do outro, ambas as funções simultaneamente, mas só em emergência.
Na PIA, naquele tempo, 1976, não era bem assim. Ou pelo menos nem sempre era assim.
Para um piloto treinado na boa escola TAP, muitas aulas teóricas seguidas de 40 horas de “voo” em simulador em Seattle, USA, sede da Boeing, mais os voos de instrução sem passageiros, todo o entrosamento entre as diversas competências em voo estava bem construído e sempre sujeito a afinações.
E quem errasse, fosse em que procedimento fosse, tal como hoje, seria imediatamente chamado á atenção por um dos outros membros da tripulação no cockpit. Chamar à atenção não é apontar dedos em riste. É só chamar á atenção. E assim os voos se fazem com toda a segurança.
No primeiro voo que fiz na PIA a dar a minha fraca assistência (porque, na verdade eu, Co-Piloto na altura, auxiliava mais o meu Comandante TAP do que qualquer outro membro da PIA) estava no cockpit a assistir à aproximação a Teerão. Daí a dois meses estaria eu a voar como Co-Piloto da PIA integrado numa tripulação TAP, a fazer os voos deles. Interessava-me saber como era aterrar nos sítios em que viria a ser eu o executante.
No cockpit, na aproximação a Teerão, Maio de 1976, além da tripulação paquistanesa, estava o nosso Mecânico de Voo a auxiliar o colega paquistanês nos complicados procedimentos do vasto painel de instrumentos que ele tinha de gerir.
Como, por exemplo, o equilíbrio do avião, no consumo correcto do combustível armazenado em vários tanques. Sempre eram 150 toneladas a consumir com regras bastante restritas…
E não era essa a única função dele. Era também a sua correcta integração num cockpit moderno, com a nova filosofia de Recursos Humanos que revolucionara a aviação uns anos antes, a “Nova Tecnologia”.
Que obrigava a um desempenho conjunto e simultâneo entre os três tripulantes, baseado na leitura/resposta de checklists escritos, publicados e certificados pela Autoridade Aeronáutica de cada País.
Antes, nas emergências, fazia-se tudo de cor e em voz bem alta para todos ouvirem. Com o stress de cada um na execução do que tinha de fazer, nem sempre se ouvia bem o que os outros diziam, ou se ele falhava nalguma coisa.
Era um grande stress a juntar ao que já tínhamos com a emergência declarada.
E foi com este espírito que o nosso competente Técnico de Voo (anteriormente chamado Mecânico) ao observar que o Comandante não tinha acertado no instrumento devido a altitude a que estava autorizado a descer pelo controle de Teerão, avisou o colega da falha que o Co-piloto também não referiu.
O procedimento correcto iria fazer com que o avião, com o piloto automático ligado, ao chegar àquela altitude, a mantivesse e controlasse a potência dos reactores para manter também a velocidade.
E como a altitude seleccionada no instrumento á frente do Comandante, selecção feita anteriormente, era menor do que a que estavam agora reautorizados, era bem de ver que o piloto automático iria colocar o avião em situação pelo menos ilegal e muito provavelmente em rota de colisão com outro avião, ao continuar a descer para a altitude realmente seleccionada no momento.
E eu assisti a este diálogo:
- Então? Disse o nosso TV (Técnico de Voo) TAP.
- Então o quê?
- O Comandante não pôs a altitude no instrumento. Reparaste?
- Eu vi.
- E então?
- Então o quê? Repetiu ele e o nosso TV sem perceber.
- Tu não lhe dizes nada!?
- Quem?! EU?!!!...
Faltavam poucos pés (nos aviões a altitude mede-se em pés, 33cm cada pé) para o piloto automático ultrapassar a altitude legal para que o avião estava autorizado e lá ia ele de olhos fechados, a gemer, dentes a ranger, a mergulhar para o desconhecido, em termos de segurança, por ali abaixo, pode ser que não seja nada… seja o que Deus quiser, ia ele a pensar.
Não me cabia a mim intervir no trabalho do competente TV TAP que sabia o que se passava e actuava na perspectiva de quem ensina alguém.
Ele já estava senhor da situação.
E que senhor! Aqueles “velhos” TVs eram o máximo em competência e não só.
Alguns até podiam ser nossos pais. Tinham a autoridade da competência, do muito saber e o nosso respeito.
Voltemos à história.
Perante a incapacidade dos outros dois tripulantes da PIA em emendarem o esquecimento do Chefe, natural, dadas as circunstâncias, o meu camarada TV TAP agarra no grosso checklist e bate com ele no ombro do Comandante.
O TV paquistanês assiste, horrorizado.
O Comandante vira-se muito admirado para trás e o nosso TV diz-lhe:
- Altitude!
E aí ele percebeu.
E sem nenhum conflito “intertribal” ficámos a voar na altitude e velocidades certas.
Não sei quando é que as “Novas Tecnologias” foram realmente implementadas na PIA.
Mas não foi no nosso tempo, isso sei eu…
Era assim que se voava em algumas companhias de aviação.
(Actualizada em 6 de Maio de 2014)
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Gabriel Cavaleiro
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sexta-feira, setembro 30, 2011
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Linha Aérea e outros voos - Viagem à Pérsia no B 747 da TAP/PIA
Em 1976, após a descolonização e com o êxodo de quase um milhão de portugueses de Angola e Moçambique, a TAP ficou com uma frota desajustada para o tráfego que conseguia captar.
E assim teve de alienar os dois Boeing B-747 mais modernos da nossa frota.
Para grande tristeza de toda a gente na TAP, os nossos dois melhores aviões foram vendidos à PIA, Pakistan International Airlines.
Do negócio fazia parte a assistência aos Pilotos e Mecânicos paquistaneses.
Eram os primeiros Jumbos que eles voavam.
Eu participei, voluntariamente, mas pago, como co-piloto, do primeiro grupo a voar com eles. O meu Comandante era o Com.te Ribeiro, um gentlemen. Chefe da frota do B-747 da TAP.
Eram os primeiros Jumbos que eles voavam.
Eu participei, voluntariamente, mas pago, como co-piloto, do primeiro grupo a voar com eles. O meu Comandante era o Com.te Ribeiro, um gentlemen. Chefe da frota do B-747 da TAP.
O Comandante Ribeiro (de camisa grenat) com um Mecânico de Voo, em Rawalpindi, Paquistão
O nosso Mecânico de Voo, como se chamava na altura a classe, era o meu muito estimado amigo Pires Fernandes, que já nos deixou. Foi de paixão o relacionamento com aquele bom e sabedor homem, fundador da maior empresa portuguesa de metalo-mecânica.
O saudoso Pires Fernandes prova a
água de um bebedouro público em Teerão
O nosso contracto teve início em Maio de 1976, mas o 1º voo, Londres – Karachi, era só no dia 8 desse mês.
- 8 de Maio…?!
- Mas eu sou piloto da PIA desde o dia 1, pensei eu...
O Com.te Ribeiro, contactado por mim, disse-me que nada havia no contrato que me proibisse estar em Londres no dia 1 de Maio. Mas eles podiam não aceitar, dado que o 1º voo seria só daí a 8 dias e com ele a chefiar.
- Posso ir já?
- Por mim… disse ele.
E fui.
No Aeroporto de Londres, Heathrow, fui à procura das operações da PIA e apresentei-me. Grande surpresa!
- Já!?
- Por contracto, estou ao serviço da PIA desde hoje… disse-lhes, calmamente.
Depois de vários telefonemas perguntaram-me o que é que eu queria fazer.
- Mandem-me para um Hotel, até ver.
- Quer dinheiro?
- Eu tenho. De momento não preciso.
Não tinha nem um tusto...
- Ok, tome lá um voucher para 3 dias de Hotel enquanto resolvemos o problema.
Três dias depois, que passei magnificamente instalado num luxuoso hotel de 5 estrelas virado para Hyde Park, com Rols à porta e muitos Árabes a entrar e a sair, fui contactado por um Com.te da Pia que me deu as ajudas de custo dos 3 dias anteriores e um voucher para mais 2 dias de hotel.
Esta cena durou os 8 dias, até à descolagem para Frankfurt/Teerão, escalas intermédias para Karachi.
O ex-B 747 da TAP à saída de Londres, agora com o visual da PIA e a carrinha da Pan American, Companhia de Aviação que já não existe
As ajudas de custo eram de 1,5 US$, por hora, de calço a calço. Eu explico: desde que o avião em que eu fosse parasse na Aerogare de destino, até que o avião em que eu partisse saísse da Aerogare para a descolagem. Cheguei a Londres dia 1 à tarde e saí para Frankfurt dia 8, também à tarde.
Os meus 3 filhos foram assim vestidos na Mother Care. Devem ter sido dos miúdos mais bem vestidos em Lisboa nessa altura...
Fui o único a ter uns dias de férias pagas, em Londres. Ou em qualquer outro lugar. Eles acordaram num instante e não deixaram sair antecipadamente mais ninguém de Lisboa para lado nenhum, até ao fim de Agosto…
O meu trabalho, a bordo, era dar as cartas de Navegação Jeppesen ao meu Com.te e arrumá-las depois no fim do voo. E conversar, pouco, com o meu colega asiático e muito com o pessoal de cabina. Cansativo…
Em Frankfurt as estadias eram no hotel Intercontinental, à beira do rio Main.
Em Frankfurt, na janela do meu quarto de Hotel
Normalmente de um ou dois dias.
Em Teerão, onde fiquei uma semana na primeira vez, do hotel só me lembro que tinha quartos grandes, com tapetes que convidavam a andar descalço. E eu andava. Afinal estava na Pérsia! Autênticos tapetes persas que até parecia que massajavam os pés...
Aeroporto de Teerão com o conhecido Monumento ao fundo e as montanhas cobertas de neve, em Maio
O Xá Mohammad Reza Pahlavi ainda reinou mais 3 anos, até 1979. Pude pois visitar alguns locais emblemáticos da cidade como o Palácio de Golestan, as Jóias da Coroa e as Mesquitas azuis (pela cor dos azulejos).
Uma das belíssimas Mesquitas Azuis
Pormenor da Mesquita
O pequeno Palácio de Golestan era usado pelo Xá Reza Pahlevi nas recepções oficias a Reis, Presidentes e Embaixadores. Na sala do trono, do enorme, enorme, trono cravejado de diamantes, as paredes são todas cobertas com vidrinhos pequenos, como as bolas das discotecas. Imagine-se a luz reflectida naquela sala de grandes candelabros em cristal!
Palácio de Golestan, Teerão, Sala do Trono
O Trono
Ao longo dos corredores do Palácio estão expostas todas as ofertas feitas pelos Reis, Presidentes e Embaixadores, de tudo o Mundo.
Ali vi o que o Reino de Portugal ofereceu à Pérsia.
Quanto ao Museu com as jóias da coroa, moderníssimo, incluíam o vestido que a Farah Diba usou na boda. Todo ele, incluindo a cauda, 12 metros de cauda, era também cravejado de diamantes…
Em Londres tinha visto uma pequena imitação destas Jóias da Coroa… na London Tower.
Um grande problema em Teerão era atravessar as ruas.
A rua do Hotel tinha 6 faixas de rodagem, num só sentido, pejada de carros em grande velocidade. O Hotel ficava mesmo a meio de um grande quarteirão, o que obrigava a um razoável desvio para ir até aos semáforos.
Nós, os tripulantes portugueses da PIA, não conseguíamos atravessar aquilo, ali. Como? Eram 6 faixas e muito trânsito…
Mas os e principalmente as, iranianas, não tinham o mínimo problema. Com ou sem crianças pela mão, em amena cavaqueira, ainda sem as burkas, saiam do passeio quando queriam e era só passearem-se no meio das setas a falar umas com as outras, até ao fim do combate, no meio dos Índios, que era o que nos parecia aquela travessia. Nunca consegui atravessar aquela rua, ali. Nunca!
A bordo daqueles aviões que eu conhecia tão bem e já não pertenciam à TAP, a vida, para nós tripulantes portugueses, era muito agradável.
Principalmente para mim, o mais novo e o mais “desempregado”. As minhas funções naquele primeiro mês eram principalmente de public-relations.
Mas na verdade eram mais de “farniente” do que de outra coisa.
O Paquistão, em 1976 tinha mais ou menos 70 milhões de habitantes.
E a PIA só tinha alguns milhares de empregados.
Ser empregado da PIA era melhor do que sair o Euromilhões, que só sai uma vez, quando sai. Aquele emprego podia ser para a vida. Bem pago, viagens de borla a todo o Mundo. Estadias em Hoteis, etc.
Mas herdaram da Índia, de quem se tinham separado uns 30 anos antes, a ideia das castas. A bordo, ao Comandante mal se dirigia a palavra, tão lá em cima ele vivia! E no B747 era mesmo verdade. Para se ir ao cockpit tinha de subir umas escadas.
O avião até tinha um sistema de comunicações internas bem concebido. Na TAP, um tripulante, no Cockpit, quando queria alimentar-se ou beber um café, usava o telefone interno, ligava à galley da frente e pedia, se faz favor, à colega ou ao colega que o atendia, o que queria, caso fosse viável naquele momento.
Mas na PIA isso não era assim. Pelo menos para o Comandante Chefe da PIA , que era o Comandante aprendiz daquele meu primeiro voo.
Tripulação da PIA
O senhor Comandante, quando queria alguma coisa, carregava no botão de chamada do telefone, continuava a conversa que estivesse a ter sem agarrar no telefone e esperava que o Comissário, que estava encarregado só do Cockpit, sem mais outra função, lhe aparecesse lá em cima, muito prontamente. E aí sim. O Comandante, sem se virar para trás, dizia:
- Café!
-Yes Captain!
Era assim…
E como connosco não era assim, mas ”faxavor” para aqui, “faxavor” para ali, muito obrigado, desculpe, etc., etc., nem a Farah Diba, nem o Xá Reza Pahlevi nem o Musharraf (que seria ainda uma criança na altura) eram melhores servidos a bordo do que nós. Algumavez!?
Nas estadias na Europa, quando o grande avião parava na placa, havia normalmente um Autocarro ao fundo das escadas a recolher rapidamente os maltrapilhos tripulantes de cabina (isto passa-se em 1976, ainda o Ossama Bin Laden era menor) que eram internados numa Pensão ou Hotel de 2 ou 3 estrelas.
Para a casta superior, os senhores Comandantes e Co-pilotos, havia táxis.
Rumo a Hotéis de 4 e 5 estrelas.
À chegada a Karachi, no primeiro voo, quando me preparava para levar do cockpit o meu saco de cabina, fui avisado que não devia fazer inflação, ou seja, os sacos eram sempre carregados por um serviçal cujo único ofício era carregar os pertencem dos senhores pilotos, não fossem eles cansarem-se… ou não houvessem 70 milhões de paquistaneses à espera desse emprego.
Aeroporto de Carachi em 1976 |
Passei os meses de Maio e Agosto de 1976 ao serviço da PIA, em voos na Europa e de e para Karachi.
No mês de Maio fui assistente. No mês de Agosto a coisa mudou de figura. Trabalhei sempre como Co-piloto oficial, em todos os voos, até ao último dia.
Voo que correu mal, muito mal.
Mas a mim correu bem, muito bem, muito bem mesmo.
Vejam a história aqui.
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Nota:
Os B 747 da TAP que foram vendidos à PIA:
(Actualizada em 02 de Março de 2019)
Publicada por
Gabriel Cavaleiro
à(s)
sexta-feira, setembro 30, 2011
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comentários
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Etiquetas:
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