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Linha Aérea e outros voos - Efeito das “castas” num voo de Boeing B747 da PIA


Aviação moderna num país asiático no Séc XX.
 
 

Tal como contei aqui na história a que chamei “Descolagem de Londres na PIA, no ex-Boeing 747 da TAP”, passada em 1976 durante os voos que alguns tripulantes da TAP fizeram de assistência aos colegas paquistaneses (pela venda de dois desses aviões da TAP às linhas aéreas do Paquistão) as relações entre os tripulantes paquistaneses em voo, pilotos ou não, reflectiam muito o grande desfasamento entre classes que existia naquela sociedade.
 
 

Na TAP por exemplo e suponho que em qualquer outra Companhia de Aviação do Mundo Ocidental, quando um dos pilotos, Comandante ou não, queria beber um café, tocava num botão existente no painel por cima da cabeça. Isso accionava um toque de telefone na galley lá em baixo, junto à primeira Classe. Uma das Assistentes ou um Comissário atendia-o e o diálogo correspondente estabelecia-se, ambos ao telefone. E quando fosse possível o café lá aparecia no cockpit.
 

Na Pia, nem pensar! Para começar havia um único tripulante exclusivamente de serviço aos Senhores Pilotos. E quando uma dessas Excelências se desse ao incómodo de tocar naquele botão era só para fazer o diligente tripulante subir rapidamente as escadas, entrar no cockpit e perguntar em que podia ser útil. Por norma o pedido era breve, lacónico, sem que o intocável Senhor se dignasse voltar-se sequer:
 

- Café!
 

Sem mais nenhuma palavra…
 

Como justificação diziam-me que no Paquistão havia 70 milhões de habitantes e um emprego daqueles era uma bênção do céu.
 

Outro exemplo. Na minha primeira chegada a Carachi para iniciar o meu contrato preparava-me para agarrar na minha pasta para desembarcar, isto ainda dentro do cockpit.
 

- Não faz isso! Não faz inflação!
 

Acontece que havia um carregador só para levar todas as malas dos Senhores Pilotos.
 

E uma última… À chegada às nossas escalas, Londres, Teerão, etc., havia um táxi para os Senhores pilotos e o resto ia num qualquer autocarro, evidentemente para hotéis de estrelas de diferentes cintilações.
 

Mas em ambiente técnico, no cockpit do avião mais evoluído que existia nesse tempo, as “castas” não podiam reflectir-se na natural diversificação de competências entre os seus tripulantes. Um Comandante não podia, não estava certificado para tal, executar as funções do Mecânico de Voo. Nem sequer sentar-se no local de trabalho do Co-piloto. 

Alguns estavam certificados mas por serem instrutores de voo.
 

Qualquer dos dois pilotos a bordo podia executar sozinho, e ainda hoje isso é naturalmente assim, as funções do outro, ambas as funções simultaneamente, mas só em emergência.
 

Na PIA, naquele tempo, 1976, não era bem assim. Ou pelo menos nem sempre era assim.
 

Para um piloto treinado na boa escola TAP, muitas aulas teóricas seguidas de 40 horas de “voo” em simulador em Seattle, USA, sede da Boeing, mais os voos de instrução sem passageiros, todo o entrosamento entre as diversas competências em voo estava bem construído e sempre sujeito a afinações.
 

E quem errasse, fosse em que procedimento fosse, tal como hoje, seria imediatamente chamado á atenção por um dos outros membros da tripulação no cockpit. Chamar à atenção não é apontar dedos em riste. É só chamar á atenção. E assim os voos se fazem com toda a segurança.
 

No primeiro voo que fiz na PIA a dar a minha fraca assistência (porque, na verdade eu, Co-Piloto na altura, auxiliava mais o meu Comandante TAP do que qualquer outro membro da PIA) estava no cockpit a assistir à aproximação a Teerão. Daí a dois meses estaria eu a voar como Co-Piloto da PIA integrado numa tripulação TAP, a fazer os voos deles. Interessava-me saber como era aterrar nos sítios em que viria a ser eu o executante.
 

No cockpit, na aproximação a Teerão, Maio de 1976, além da tripulação paquistanesa, estava o nosso Mecânico de Voo a auxiliar o colega paquistanês nos complicados procedimentos do vasto painel de instrumentos que ele tinha de gerir.
 

Como, por exemplo, o equilíbrio do avião, no consumo correcto do combustível armazenado em vários tanques. Sempre eram 150 toneladas a consumir com regras bastante restritas…
 

E não era essa a única função dele. Era também a sua correcta integração num cockpit moderno, com a nova filosofia de Recursos Humanos que revolucionara a aviação uns anos antes, a “Nova Tecnologia”.
 

Que obrigava a um desempenho conjunto e simultâneo entre os três tripulantes, baseado na leitura/resposta de checklists escritos, publicados e certificados pela Autoridade Aeronáutica de cada País.
 

Antes, nas emergências, fazia-se tudo de cor e em voz bem alta para todos ouvirem. Com o stress de cada um na execução do que tinha de fazer, nem sempre se ouvia bem o que os outros diziam, ou se ele falhava nalguma coisa.
 

Era um grande stress a juntar ao que já tínhamos com a emergência declarada.
 

E foi com este espírito que o nosso competente Técnico de Voo (anteriormente chamado Mecânico) ao observar que o Comandante não tinha acertado no instrumento devido a altitude a que estava autorizado a descer pelo controle de Teerão, avisou o colega da falha que o Co-piloto também não referiu.
 

O procedimento correcto iria fazer com que o avião, com o piloto automático ligado, ao chegar àquela altitude, a mantivesse e controlasse a potência dos reactores para manter também a velocidade.
 

E como a altitude seleccionada no instrumento á frente do Comandante, selecção feita anteriormente, era menor do que a que estavam agora reautorizados, era bem de ver que o piloto automático iria colocar o avião em situação pelo menos ilegal e muito provavelmente em rota de colisão com outro avião, ao continuar a descer para a altitude realmente seleccionada no momento.
 

E eu assisti a este diálogo:
 

- Então? Disse o nosso TV (Técnico de Voo) TAP.
 

- Então o quê?
 

- O Comandante não pôs a altitude no instrumento. Reparaste?
 

- Eu vi.
 

- E então?
 

- Então o quê? Repetiu ele e o nosso TV sem perceber.
 

- Tu não lhe dizes nada!?
 

- Quem?! EU?!!!...
 

Faltavam poucos pés (nos aviões a altitude mede-se em pés, 33cm cada pé) para o piloto automático ultrapassar a altitude legal para que o avião estava autorizado e lá ia ele de olhos fechados, a gemer, dentes a ranger, a mergulhar para o desconhecido, em termos de segurança, por ali abaixo, pode ser que não seja nada… seja o que Deus quiser, ia ele a pensar.
 

Não me cabia a mim intervir no trabalho do competente TV TAP que sabia o que se passava e actuava na perspectiva de quem ensina alguém.
 

Ele já estava senhor da situação.
 

E que senhor! Aqueles “velhos” TVs eram o máximo em competência e não só.
 

Alguns até podiam ser nossos pais. Tinham a autoridade da competência, do muito saber e o nosso respeito.
 

Voltemos à história.
 

Perante a incapacidade dos outros dois tripulantes da PIA em emendarem o esquecimento do Chefe, natural, dadas as circunstâncias, o meu camarada TV TAP agarra no grosso checklist e bate com ele no ombro do Comandante.
 

O TV paquistanês assiste, horrorizado.
 

O Comandante vira-se muito admirado para trás e o nosso TV diz-lhe:
 

- Altitude!
 

E aí ele percebeu.
 

E sem nenhum conflito “intertribal” ficámos a voar na altitude e velocidades certas.
 

Não sei quando é que as “Novas Tecnologias” foram realmente implementadas na PIA.
 

Mas não foi no nosso tempo, isso sei eu…
 

Era assim que se voava em algumas companhias de aviação.
 


(Actualizada em 6 de Maio de 2014)




Linha Aérea e outros voos - Viagem à Pérsia no B 747 da TAP/PIA




Em 1976, após a descolonização e com o êxodo de quase um milhão de portugueses de Angola e Moçambique, a TAP ficou com uma frota desajustada para o tráfego que conseguia captar.
E assim teve de alienar os dois Boeing B-747 mais modernos da nossa frota.








Para grande tristeza de toda a gente na TAP, os nossos dois melhores aviões foram vendidos à PIA, Pakistan International Airlines.







Do negócio fazia parte a assistência aos Pilotos e Mecânicos paquistaneses.
Eram os primeiros Jumbos que eles voavam.

Eu participei, voluntariamente, mas pago, como co-piloto, do primeiro grupo a voar com eles. O meu Comandante era o Com.te Ribeiro, um gentlemen. Chefe da frota do B-747 da TAP.



















O Comandante Ribeiro (de camisa grenat) com um Mecânico de Voo, em Rawalpindi, Paquistão




O nosso Mecânico de Voo, como se chamava na altura a classe, era o meu muito estimado amigo Pires Fernandes, que já nos deixou. Foi de paixão o relacionamento com aquele bom e sabedor homem, fundador da maior empresa portuguesa de metalo-mecânica.
























O saudoso Pires Fernandes prova a
água de um bebedouro público em Teerão




O nosso contracto teve início em Maio de 1976, mas o 1º voo, Londres – Karachi, era só no dia 8 desse mês.

- 8 de Maio…?!

- Mas eu sou piloto da PIA desde o dia 1, pensei eu...

O Com.te Ribeiro, contactado por mim, disse-me que nada havia no contrato que me proibisse estar em Londres no dia 1 de Maio. Mas eles podiam não aceitar, dado que o 1º voo seria só daí a 8 dias e com ele a chefiar.


- Posso ir já?

- Por mim… disse ele.


E fui.


No Aeroporto de Londres, Heathrow, fui à procura das operações da PIA e apresentei-me. Grande surpresa!


- Já!?


- Por contracto, estou ao serviço da PIA desde hoje… disse-lhes, calmamente.


Depois de vários telefonemas perguntaram-me o que é que eu queria fazer.


- Mandem-me para um Hotel, até ver.


- Quer dinheiro?


- Eu tenho. De momento não preciso.



Não tinha nem um tusto...


- Ok, tome lá um voucher para 3 dias de Hotel enquanto resolvemos o problema.


Três dias depois, que passei magnificamente instalado num luxuoso hotel de 5 estrelas virado para Hyde Park, com Rols à porta e muitos Árabes a entrar e a sair, fui contactado por um Com.te da Pia que me deu as ajudas de custo dos 3 dias anteriores e um voucher para mais 2 dias de hotel.


Esta cena durou os 8 dias, até à descolagem para Frankfurt/Teerão, escalas intermédias para Karachi.





O ex-B 747 da TAP à saída de Londres, agora com o visual da PIA e a carrinha da Pan American, Companhia de Aviação que já não existe



As ajudas de custo eram de 1,5 US$, por hora, de calço a calço. Eu explico: desde que o avião em que eu fosse parasse na Aerogare de destino, até que o avião em que eu partisse saísse da Aerogare para a descolagem. Cheguei a Londres dia 1 à tarde e saí para Frankfurt dia 8, também à tarde.
Os meus 3 filhos foram assim vestidos na Mother Care. Devem ter sido dos miúdos mais bem vestidos em Lisboa nessa altura...

Fui o único a ter uns dias de férias pagas, em Londres. Ou em qualquer outro lugar. Eles acordaram num instante e não deixaram sair antecipadamente mais ninguém de Lisboa para lado nenhum, até ao fim de Agosto…


O meu trabalho, a bordo, era dar as cartas de Navegação Jeppesen ao meu Com.te e arrumá-las depois no fim do voo. E conversar, pouco, com o meu colega asiático e muito com o pessoal de cabina. Cansativo…


Em Frankfurt as estadias eram no hotel Intercontinental, à beira do rio Main.



      Em Frankfurt, na janela do meu quarto de Hotel


Normalmente de um ou dois dias.


Em Teerão, onde fiquei uma semana na primeira vez, do hotel só me lembro que tinha quartos grandes, com tapetes que convidavam a andar descalço. E eu andava. Afinal estava na Pérsia! Autênticos tapetes persas que até parecia que massajavam os pés...













Aeroporto de Teerão com o conhecido Monumento ao fundo e as montanhas cobertas de neve, em Maio





O Xá Mohammad Reza Pahlavi ainda reinou mais 3 anos, até 1979. Pude pois visitar alguns locais emblemáticos da cidade como o Palácio de Golestan, as Jóias da Coroa e as Mesquitas azuis (pela cor dos azulejos).




  Uma das belíssimas Mesquitas Azuis




Pormenor da Mesquita   





O pequeno Palácio de Golestan era usado pelo Xá Reza Pahlevi nas recepções oficias a Reis, Presidentes e Embaixadores. Na sala do trono, do enorme, enorme, trono cravejado de diamantes, as paredes são todas cobertas com vidrinhos pequenos, como as bolas das discotecas. Imagine-se a luz reflectida naquela sala de grandes candelabros em cristal!


Palácio de Golestan, Teerão, Sala do Trono


O Trono



Ao longo dos corredores do Palácio estão expostas todas as ofertas feitas pelos Reis, Presidentes e Embaixadores, de tudo o Mundo.
Ali vi o que o Reino de Portugal ofereceu à Pérsia.

Quanto ao Museu com as jóias da coroa, moderníssimo, incluíam o vestido que a Farah Diba usou na boda. Todo ele, incluindo a cauda, 12 metros de cauda, era também cravejado de diamantes…


Em Londres tinha visto uma pequena imitação destas Jóias da Coroa… na London Tower.


Um grande problema em Teerão era atravessar as ruas.


A rua do Hotel tinha 6 faixas de rodagem, num só sentido, pejada de carros em grande velocidade. O Hotel ficava mesmo a meio de um grande quarteirão, o que obrigava a um razoável desvio para ir até aos semáforos.


Nós, os tripulantes portugueses da PIA, não conseguíamos atravessar aquilo, ali. Como? Eram 6 faixas e muito trânsito…


Mas os e principalmente as, iranianas, não tinham o mínimo problema. Com ou sem crianças pela mão, em amena cavaqueira, ainda sem as burkas, saiam do passeio quando queriam e era só passearem-se no meio das setas a falar umas com as outras, até ao fim do combate, no meio dos Índios, que era o que nos parecia aquela travessia. Nunca consegui atravessar aquela rua, ali. Nunca!


A bordo daqueles aviões que eu conhecia tão bem e já não pertenciam à TAP, a vida, para nós tripulantes portugueses, era muito agradável.


Principalmente para mim, o mais novo e o mais “desempregado”. As minhas funções naquele primeiro mês eram principalmente de public-relations.


Mas na verdade eram mais de “farniente” do que de outra coisa.


O Paquistão, em 1976 tinha mais ou menos 70 milhões de habitantes.


E a PIA só tinha alguns milhares de empregados.


Ser empregado da PIA era melhor do que sair o Euromilhões, que só sai uma vez, quando sai. Aquele emprego podia ser para a vida. Bem pago, viagens de borla a todo o Mundo. Estadias em Hoteis, etc.


Mas herdaram da Índia, de quem se tinham separado uns 30 anos antes, a ideia das castas. A bordo, ao Comandante mal se dirigia a palavra, tão lá em cima ele vivia! E no B747 era mesmo verdade. Para se ir ao cockpit tinha de subir umas escadas.


O avião até tinha um sistema de comunicações internas bem concebido. Na TAP, um tripulante, no Cockpit, quando queria alimentar-se ou beber um café, usava o telefone interno, ligava à galley da frente e pedia, se faz favor, à colega ou ao colega que o atendia, o que queria, caso fosse viável naquele momento.


Mas na PIA isso não era assim. Pelo menos para o Comandante Chefe da PIA , que era o Comandante aprendiz daquele meu primeiro voo.



Tripulação da PIA



O senhor Comandante, quando queria alguma coisa, carregava no botão de chamada do telefone, continuava a conversa que estivesse a ter sem agarrar no telefone e esperava que o Comissário, que estava encarregado só do Cockpit, sem mais outra função, lhe aparecesse lá em cima, muito prontamente. E aí sim. O Comandante, sem se virar para trás, dizia:

- Café!


-Yes Captain!


Era assim…


E como connosco não era assim, mas ”faxavor” para aqui, “faxavor” para ali, muito obrigado, desculpe, etc., etc., nem a Farah Diba, nem o Xá Reza Pahlevi nem o Musharraf (que seria ainda uma criança na altura) eram melhores servidos a bordo do que nós. Algumavez!?


Nas estadias na Europa, quando o grande avião parava na placa, havia normalmente um Autocarro ao fundo das escadas a recolher rapidamente os maltrapilhos tripulantes de cabina (isto passa-se em 1976, ainda o Ossama Bin Laden era menor) que eram internados numa Pensão ou Hotel de 2 ou 3 estrelas.


Para a casta superior, os senhores Comandantes e Co-pilotos, havia táxis.


Rumo a Hotéis de 4 e 5 estrelas.


À chegada a Karachi, no primeiro voo, quando me preparava para levar do cockpit o meu saco de cabina, fui avisado que não devia fazer inflação, ou seja, os sacos eram sempre carregados por um serviçal cujo único ofício era carregar os pertencem dos senhores pilotos, não fossem eles cansarem-se… ou não houvessem 70 milhões de paquistaneses à espera desse emprego.





Aeroporto de Carachi em 1976


Passei os meses de Maio e Agosto de 1976 ao serviço da PIA, em voos na Europa e de e para Karachi.
No mês de Maio fui assistente. No mês de Agosto a coisa mudou de figura. Trabalhei sempre como Co-piloto oficial, em todos os voos, até ao último dia.

Voo que correu mal, muito mal.


Mas a mim correu bem, muito bem, muito bem mesmo. 


Vejam a história aqui.


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Nota:

Os B 747 da TAP que foram vendidos à PIA:







(Actualizada em 02 de Março de 2019)















Pedaços de Vida – O meu vulcão




Há 62 anos que choro a minha incapacidade para lidar com vulcões...

Em 1949 tinha 8 anos quando perguntei ao meu Pai o que era um Vulcão.

"Como é que eu hei-de explicar isto ao miúdo", terá pensado.

Se fosse hoje eu teria ido à net e via logo o que era:


Podia não saber como funcionavam, mas pelas imagens tinha logo uma ideia bastante aproximada. E poderia ter corrigido os erros que ainda hoje lamento ter cometido…

Mas em 1949 em Pebane, na Zambézia, Moçambique, no meio do mato, não havia assim tantos recursos técnicos…

Nesse tempo não havia as coisas rotineiras de hoje.

Não havia Magalhães, aqueles pequenos PCs.

Nem Internet.

Nem TV. Juro que é verdade!

Nem telemóveis.

Nem FM, sequer!

Nem iPhones iPodes iPades, acreditem!...

Como é que era possível?!

O meu pai andava sempre de uma terra para a outra. Tinha sempre o mesmo emprego mas mandavam-no constantemente mudar de sítio.

Era Administrador de Circunscrição. O Boss lá da terra. Chefe civil, administrativo, policial e tudo o mais. Havia também padres, professores primários, cantineiros (donos de mercearias) e outras profissões menores. Mas o mau pai é que era o Chefe daquilo tudo!

O meu pai era constantemente transferido. Não dava para andar com Enciclopédias atrás, claro…
 

Não fora isso e eu teria ficado a saber, exactamente, o que era um vulcão.
 

Ia à Wikipédia e:
 

«Vulcão é uma estrutura geológica criada quando o magma, gases e partículas quentes (como cinzas) escapam para a superfície terrestre. Eles ejectam altas quantidades de poeira, gases e aerossóis na atmosfera, podendo causar resfriamento climático temporário».






Ou, mais abreviadamente, que é o que nos interessa para esta história, ia à Suapesquisa.com:
 

«Vulcão é uma abertura na crosta terrestre, de formato montanhoso, por onde saem magma, cinzas, gases e poeira».






Magma…? Que raio…
Crostas? OK, tinha muitas. Andava sempre a esfolar-me!
Gases?! O vulcão também faz isso?...


Mas o meu Pai, para eu não continuar por ali fora com mais perguntas, disse-me:

- "Vulcão? Olha, um Vulcão é um buraco com fogo de onde saem muitas pedras".

Muito mais simples, tão a ver?!

Os pais sabem sempre até onde devem ir nestas explicações complicadas. Especialmente quando não percebem bem do assunto. Que não era, de todo, o caso do meu pai.

Olhou-me nos olhos e viu logo que podia continuar descansado o seu trabalho. Aquilo tinha encerrado a questão. Simples, conciso, completo.

Ou melhor: se é tão simples vamos lá a ver se funciona…


Vai daí, resolvi logo fazer, eu, um Vulcão...


Afinal, um simples buraco, fundo, cheio de pedras e palhas…e uns fósforos ...e já está.

É canja! Que era muito boa a da minha Mãe.

E pequenos ramos de uma goiabeira, que por ali havia muitas com goiabas muito boas.

Também havia muitas papaeiras mas a lenha devia arder muito devagar e se calhar as pedras não conseguiam sair do vulcão e lá se ia o efeito.

É que um vulcão tem as suas manias, como se sabe.

Ná…

Tudo previsto…

A trabalheira que me deu fazer o buraco!!!

E depois calcular-lhe a profundidade, de modo a que as pedras saíssem na vertical, num belo efeito misto de explosões, fumo e fogo, com algumas parecenças com fogo de artifício, coisa que eu nem sabia que existia. Mas que, no íntimo, já sabia como era e o efeito que fazia.

Eu era mesmo muito precoce.

Tudo deve ter começado mal aqui: o meu pai disse-me que era um buraco, etc, etc, e a Wikipédia diz que é uma estrutura geológica, que não deve ser bem a mesma coisa que um buraco, acho eu...

E o Suapesquisa.com diz que é uma coisa na crosta terrestre, de formato montanhoso.

Tudo muito científico! Crosta terrestre... de formato montanhoso.

Buraco, crosta terrestre, formato montanhoso... OK!

E o que é que eu, amador, uma criança, não esqueçamos, fui fazer? Um buraco! Um simples buraco… Nada mais que um buraco.

Não havia nenhuma estrutura geológica, nem crosta terrestre nem nada montanhoso. Um buraco…um simples buraco no meio de um terreiro, longe de tudo, não fossem as pedras dar cabo de uma série de coisas.

E vamos lá a ver se isto funciona. O meu pai disse-me que era assim, portanto…

A palha e os tronquinhos da minha amada goiabeira lá no fundo a taparem as pedras até a uma altura certa, o espaço livre, depois, até ao topo, para as pedras poderem ir na estilha, na vertical, quando saíssem por ali fora.

Tudo pronto, tudo calculado, tudo perfeito!

Vamos a isto!

Mas foi preciso coragem, podem crer…muita coragem. Sempre era um vulcão, não é?

Fósforo aceso... atirei-o, meio agachado, para dentro do vulcão, com muito cuidado, não fosse aquela coisa começar logo a trabalhar, Baaang! como um vulcão deveria fazer …e fugi!

Não estava á espera, mas tive de tentar mais que uma vez. O fósforo apagava-se na queda sobre os troncos da goiabeira. E não pegava fogo às palhas e o vulcão, assim apagado, não podia funcionar, claro.
 

Se calhar o buraco era demasiado fundo.
 

Mas era preciso espaço para o calor que as chamas haviam de dar e que fizessem as pedras subir com muita força…
 

Mas às tantas, Olha! Olha! Fumo dentro do vulcão!

Está a sair fumo! Fujam! Fujam!

 

E fugi de novo.
 

Por causa da saraivada de pedras que aí vinha.


Atão… não é que as… pedr...as ficaram …lá no fundo?


Nem se mexeram...

É que nem se mexeram!


Enquanto as palhas ardiam... E os troncos da goiabeira a crepitar... a crepitar...


...E a minha cara! Haviam de ter visto... 


O meu vulcão só tinha “gases e partículas quentes (como cinzas)” a escaparem-se.
As pedras, todas negras, malcheirosas, coitadas, recusaram-se a sair e aquilo não funcionou de todo!






Durante muito tempo não percebi o que aconteceu...

É que não percebi mesmo!

E foi aí que comecei a desconfiar de que aquela história do Pai Natal, se calhar... também não funcionava lá muito bem…







(Actualizada em 16 de Novembro de 2021)