A minha Força Aérea - Falha de motor à descolagem. F86



Uma emergência e três sobreviventes.
Eu, o avião e a Escola de Carvide.
Mas levei uma "porrada".
E um abraço também...








Corria o ano de 1965 (65/66) quando a Força Aérea, condicionada pela impossibilidade de colocar os F86, que a NATO nos tinha entregado, no Ultramar, resolveu tentar a compra de excedentes destes aviões, agora de origem Canadiana, na Alemanha.

Posto isto, Portugal enviou para uma base Alemã a nata dos Pilotos que voavam e Mecânicos de avião que  mantinham os F86 em Monte Real, para uma avaliação daqueles aparelhos montados no Canadá.


A Base, claro, continuou a funcionar como se nada fosse.

Mais ou menos…

Dos pilotos que ficaram, os "mais competentes e habilitados", como eu, tinham umas 100 horas de voo, no máximo!…




Eu e o meu F-86

Competente... habilitado...


A maior parte dos mecânicos tinham também acabado a sua formação.

O comandante da Esquadra passou a ser o mais antigo dos que não foram.

E tudo corria de feição.

Mais ou menos…

Os voos de experiência, programados ou não, continuaram a ser feitos pelos mais experientes dos Top Gun de Monte Real, aqueles com 100 horas de voo!

A troca de um depósito de óleo do reactor, por exemplo, implicava uma subida aos 40.000’, num voo de teste.

Fui escalado para test pilot duma ocorrência destas.

Na placa, lá estava o meu F86 reparado e preparado pelos mais experientes dos mecânicos, aqueles que não foram para a Alemanha.



               Nos bons velhos tempos em que havia verba para tanto F-86 F. Na B.A. 5, Monte Real



Subi a escada de acesso ao meu avião, com ele totalmente reabastecido, incluindo 200 galões americanos de JP4 em cada drop tank.

  • Drop tanks são os tanques fixados debaixo das asas.
  • JP4 é o combustível (querosene) para os reactores.
  • Os dois tanques levam 1.512 Litros ao todo, aproximadamente.

Por acaso… num voo de teste só se deviam abastecer os drop tanks com 50 galões em cada um, para verificar se o sistema de combustível funcionava e nunca com mais.

Ninguém estava avisado e Deus Nosso Senhor arriscou uma lição a todos. Ele sabe o que faz…

Este Top Gun Test Pilot, lá põe o motor a trabalhar, faz todas as verificações, obtém autorização para se dirigir para a pista e arranca.

Muito feliz, como sempre, naquelas máquinas fabulosas.

Antes de entrar na pista há um último teste obrigatório: o sistema de emergência, alternativo, de controlo de combustível. Funciona? Funcionou a 100%.

- Posso descolar?

- Autorizado!


Aqui vou eu. Manete a fundo, as costas empurradas contra o assento, vamos embora!

A meio da descolagem reparei que a potência do reactor não estava no máximo. Andava pelos 93% e a diminuir.




Cockpit de um F-86














Manete forçada toda à frente. Se calhar não estava.

O avião não acelerou coisa nenhuma…

Não vai? Já está toda à frente!

E o avião vai para o ar e a pista está quase a acabar e a potência já está 10% abaixo do recomendado e a velocidade não aumenta muito e não posso recolher os flaps…


- Falha de motor à descolagem!
- Estou com uma falha de motor à descolagem!
- Sistema de emergência de controlo de combustível:

- ligar, já!

- ON!


O problema é que a manete estava toda à frente para tentar os 100% de potência mas as rotações do motor iam pelos 91%, sempre a descer.

O desgraçado do avião deu pois um estrondo e um salto em frente. E aí percebi que o sistema de emergência queria 100% de potência, que era a posição da manete. Mas o motor estava a 90% e num instante ficou com a potência máxima com todo aquele súbito excesso de combustível que o sistema avaliou ser necessário!

A velocidade andava pelo mínimo sustentável mas eu reduzi a manete porque não queria usar toda a potência com aquele sofrível sistema alternativo de controlo de combustível.

Mas há outra coisa a fazer.

 

Obrigatória!

Por checklist!


 

- Ejectar ambos os drop tanks!


400 galões de querosene à vida mas que iriam tornar muito mais leve o avião! E provavelmente fariam a diferença entre a vida e o acidente, já iminente.
 


Num relâmpago veio-me à memória aquele colega que anos antes, também numa emergência e para evitar que o avião caísse sobre a Vila de Carvide, que fica paredes meias com a Base Aérea, a Norte, exactamente onde eu estava, se ejectou... tarde de mais.








Veio a cair, para-quedas meio aberto, sobre uma grande cruz de ferro de uma das campas do cemitério de Carvide, onde morreu, obviamente.






Foi nesse momento, Bang do motor acabado de ouvir, manete a reduzir, velocidade no limite, flaps de fora, dedo no botão de ejecção dos tanques, que eu vi a Escola Primária de Carvide


Tive a certeza de que os 400 galões de querosene iam entrar pela Escola dentro!


- Tens de te aguentar e sair daqui!


Volta muito suave pela esquerda, emergência declarada, a velocidade baixa mas a manter-se bem.


 

- Vou fazer um circuito largo e aterrar assim mesmo!

 

- Esquece a ejecção dos tanques!…










Manobra executada com toda a delicadeza que sabia ser capaz, desde que a velocidade não caísse para além dos limites inferiores.
 

Pista em frente!

- Autorizado a aterrar…

Aterrei como mandam os livros e fui, aliviado e confortado com a Escola de Carvide intacta, para o estacionamento, onde me esperava o Comandante da Esquadra.

Capitão Pinho Freire, anos depois o General do 25 de Novembro que comandou a Força Aérea do seu quarto de prisão em Monsanto, através do telefone que aqueles estúpidos lhe deixaram no quarto…

Ainda junto ao meu avião, eu acabado de descer, perguntou-me o que tinha sucedido.

Contei-lhe todos os pormenores, sem falar na Escola, evidentemente.

- Ó Cavaleiro, porque é que não ejectou os drop tanks? Perguntou-me

Aí… tive de lhe contar a razão… Ainda estava a ver a Escola...


- Vou-lhe dar uma porrada por não ter executado os procedimentos obrigatórios e dou-lhe um abraço porque eu teria feito o mesmo!


É por estas e por outras que tal que a Força Aérea é algo a que nunca se deixa de pertencer… 







(As "porradas" por estes erros técnicos ou outros eram sempre em dinheiro que se tinha de depositar num mealheiro que era aberto no fim do mês para os memoráveis jantares da Esquadra 51!)






(Actualizada em 16 de Julho de 2018)









4 comentários:

  1. Esta história fez-me recuar no tempo, corria o ano de 1981 nas Lajes (Açores) e emergência também com um FIAT à descolagem...que não chegou a descolar porque o Orpheus deu um estoiro quando a manete de potência avançou!

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  2. Foi também uma história que correu bem...

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  3. Uma história com final feliz. Obrigado Comandante Cvaleiro, com esta história fez-me recordar a BA5, os F86 e os Fiats G91. Também passei por esta base (Monte Real) por duas vezes: em finais de 1969 (três meses) em estágio de OPC e depois lá colocado desde Janeiro de 70 até Julho, data em que fui mobilizado para Moçambique e para o AB6 de Nova Freixo.

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  4. Comandante Cavaleiro, nem imagina o prazer que tenho ao lêr estas fantásticas histórias. Vivi no Casal dos Claros mesmo no enfiamento sul da pista de Monte Real e são simplesmente fantásticas e únicas as recordações dos vôos dos F-86. Tinha 13 anos quando o F-86 fez o seu último vôo e a desilusão e o desgosto foram tremendas. Fazia parte da minha vida ver aquelas fantásticas máquinas e os seus vôos rascantes a alta velocidade...era simplesmente uma delícia vê-los e ouvi-los, fenomenal mesmo. Obrigado pelas suas histórias. Rui Gomes.

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