Brasão de Lourenço Marques |
Como tudo isto começou:
- Em 1961 em Lourenço Marques.
- Depois de uma torrada e um iogurte...
No dia 30 de Janeiro de 1961, morava eu na Pensão Vouga, na Av. Pêro de Alenquer, nº 8 em Lourenço Marques, fiz a minha participação obrigatória para ser inscrito no recenseamento militar desse ano, na Câmara Municipal da Capital de Moçambique.
E a 18 de Agosto desse mesmo ano recenseei-me mesmo. No dia 14 de Setembro fui presente à junta de recenseamento, presidida pelo Ten. Cor. Hintze Ribeiro.
Fiquei apurado para todo o serviço militar, com Cédula de Recenseamento Militar passada e tudo.
Só me via a marchar, esquerdo, direito, esquerda volver e eu sem vontade nenhuma de ser somente um número. E as noites na caserna? Selvagem como sempre fui, como é que ia aguentar? Passei meses de “tormento militar” antes de o ser.
Uma noite, depois de jantar na Pastelaria da Cooperativa dos Criadores de Gado o iogurte e torrada do costume (como é que eu podia ser gordo?) fui a pé até ao jornal Notícias de Lourenço Marques onde li, na vitrina onde o expunham, o jornal do dia.
O jornal estava exposto naquela grande vitrina da esquina da rua
Li-o de uma ponta a outra. Sendo que a outra ponta, onde já não havia mais jornal, um quadradinho no canto inferior direito, fazia saber que a Força Aérea estava a recrutar Pilotos.
Escusado será dizer o que se passou nessa noite.
Contactada a Força Aérea, preenchidos os papéis, deram-me uns folhetos mágicos onde pude ler que ia fazer o curso na “Granja do Marquês”, em Sintra.
- Granja do Marquês! Ganda pinta!
Granja, não sabia bem o que era... Na minha terra, que eu soubesse, só havia machambas.
Mas aquilo soava-me a prados muito verdes, uma grande e centenária mansão , salões enormes, tudo muito limpo, vaquinhas a pastar e aviões pelo meio a elevarem-se graciosamente em direcção ao céu, muito azul.
- Que maravilha! Que maravilha!
- É mesmo isto que eu quero!
Passei nos exames médicos e lá fui, finalmente livre da caserna da tropa, para a Metrópole a requintar na minha imaginação a Granja do Marquês.
Meteram-me num avião DC 6 e no dia seguinte, um dia gelado de Abril, aterro naquele “enorme” Aeroporto em Lisboa.
Aeroporto da Portela anos 60 |
Aterrei cheio de orgulho da minha condição de Piloto Militar que ia ser e chego finalmente à Granja do Marquês, a Base Aérea de Sintra.
As tais vaquinhas deviam estar nos estábulos...
Muito quentinhas, àquela hora da minha chegada tão ansiada.
Não vi nenhuma.
Nem a tal mansão...
Aquilo tinha muito pouco aspecto de ser uma exploração agrícola…
A Base de Sintra, hoje |
Mas para compensar deram-me logo um passaporte.
- Inacreditável!
Acabava de chegar e davam-me logo um passaporte para voar para todo o lado!
Mas que afinal, não era bem isso…
O "passaporte" era como chamavam a um documento oficial com carimbos e tudo em papel amarelado que me habilitava a ser recambiado, por via férrea, em 3ª classe, para a Base Aérea de S. Jacinto. Em Aveiro.
Não faz mal, aceitei ainda e sempre, entusiasmado.
Muitos anos depois vim a constatar que a Força Aérea é, afinal, isto mesmo. Por amor à camisola aceitamos tudo. E das circunstâncias nunca nos queixamos…
E lá nos meteram, alguns dos Alunos Pilotos, num comboio correio, em 3ª classe, em Sta Apolónia, a “voar” toda a noite e a “aterrar” em todas as paragens e apeadeiros que o maquinista conseguia inventar.
Se calhar só não parou onde não teve mesmo vontade.
Chegámos, felizmente, já de manhã a Aveiro.
Estação da CP, de Aveiro |
Digo felizmente porque podíamos não ter chegado todos...
O que se passou naquela viagem, toda a noite, com aqueles quase 70 manfios, tinha dado para chamar a Polícia várias vezes e meter tudo dentro.
Entre outras coisas realojámos alguns passageiros que não tiveram outra coisa a fazer senão mudar de carruagem para o maralhal poder estar todo junto e assim dar largas, afinal, àquela grande libertação da idade da inocência que tudo aquilo realmente representava.
Deixávamos para trás, definitivamente, em especial aqueles que tinham embarcado no Ultramar e não sabiam quando poderiam voltar a casa, a autoridade e protecção do Pai, os carinhos da Mãe, a boa comida, as miúdas, os grandes amigos de toda a vida.
O nosso mundo nunca mais ia ser o mesmo. Tínhamos consciência de estar a viver dentro da mudança.
Nunca conseguiríamos imaginar quanto a nossa vida ia mudar.
A Ria de Aveiro
Meteram-nos em lanchas da Marinha e chegámos finalmente à muito simpática Base Aérea de S. Jacinto, numa língua de areia à entrada da Ria, frente a Aveiro, com o Atlântico do outro lado.
Logo da Base Aérea Nº 7 em S. Jacinto, Aveiro |
Afinal… o imaginário do quartel da tropa terrestre não era assim tão diferente da “fotografia” exposta. Só tinha a mais haver mar a quase toda a volta, uma praia imensa de água abaixo de gelada, aviões que eu já conhecia do Aeroclube e uma enorme alegria em ir fazer o que se gostava.
E já se começavam a fazer grandes amizades que só ainda não acabaram porque ainda estamos (alguns, já muito poucos...) vivos. Mais de 50 anos depois.
Vista geral da Base nos dias de hoje |
Aqui começámos aquilo que nos levaria a ser um dos Cursos mais badalados da Força Aérea: embora fossemos os “Ícaros”, ficámos mais conhecidos como sendo os ” VCCs”, que queria dizer, e todo o Estado Maior sabia isso, “Velhos Como o c…”
Exactamente isso!
O nosso Logo |
E porquê? Na Força Aérea os cursos demoravam cerca de um ano.
Fomos brevetados ao fim de mais de dois anos, daí o nome, bem aplicado, como se vê.
Fruto das contingências do momento: a grande aglomeração de Alunos Pilotos na Base Aérea de Sintra, passo seguinte na nossa instrução com vista à guerra no Ultramar.
Isto fez com que só tivéssemos lugar em Sintra uns 8 meses depois do final do nosso curso em S. Jacinto.
Fomos o curso da Força Aérea com mais Pilotos na TAP. Quase todos chegámos a cargos superiores, como Chefes de Divisão, Chefes de Frota, Instrutores de Voo e Simulador, Verificadores, etc.
Uns quantos andaram por guerras alheias, como a do Biafra. Sim, do Biafra, onde ainda hoje são considerados heróis.
Outros optaram por fazer carreira noutras paragens, como a DETA em Moçambique, a Singapura Air Lines, DHL, Air Macau, etc, etc, com grande destaque. Também chegaram a Instrutores e Verificadores, do outro lado do Mundo, nessas mesmas companhias e até ao serviço da Boeing
Nenhum VCC desertou.
Dois foram feitos prisioneiros. Um na Nigéria, na guerra do Biafra, 4 anos e meio. Jantou em minha casa em Lisboa no dia da sua libertação.
O outro foi barbaramente assassinado à catanada numa tentativa de fuga, em Angola, após uma aterragem de emergência no mato.
Lamentamos e choramos todos os nossos mortos no Ultramar. E não só.
A velhice não significa, obrigatoriamente, saber. Neste caso, os VCCs demonstraram que foram “Velhos” antes do tempo e por isso se mantiveram sábios no que sabiam fazer, mas jovens…
Alguns VCCs (os que ainda se conseguem mexer...) juntam-se todos os anos num almoço de confraternização. Alguns bem acompanhados… das respectivas VCCs
Um abraço a todos os VCCs.
- Estamos todos VCCs...
___________________________________________________
(Actualizada em 15 de Julho de 2018)
Tive prazer em ler-te.
ResponderEliminarUm abraço
Amadeu Serdoura (VCC)
Estivemos na mesma guerra, na mesma altura. Sarg. MMA - Alouette III. Nampula, Nacala, Mueda, Vila Cabral, Marrupa, etc. UM ABRAÇO
ResponderEliminar