Elegâncias que a Guerra tem...
Uma belíssima ilustração do meu Amigo António Six.
O mesmo avião desta história. Um T6 Harvard.
A deslumbrante paisagem a Norte de Vila Cabral (Lichinga, hoje) servia muitas vezes para suavizar o espírito de quem tinha nas mãos um avião de combate municiado e pronto para a luta.
O grande ronronar do motor do T- 6 ajudava também ao sentimento de segurança que se sentia dada a grande fiabilidade daqueles aviões, muito bem tratados pela nossa Manutenção.
Mas o meu objectivo, naquele dia, não era filosofar ou apreciar a paisagem, por muito bela que fosse. As metralhadoras debaixo das asas iam carregadas de balas com um destino definido. Procurar e eliminar inimigos em aldeolas que serviam de refúgio ao terrorismo, naquele ano de 1968.
O destino não ficava longe do destacamento de onde descolara, a grande pista civil do Aeroporto de Vila Cabral.
E contrariamente ao costume ia sozinho. Estes voos de reconhecimento faziam-se sempre em parelha com outro avião. Mas como a zona que era preciso observar ficava a uns escassos 10 minutos de voo, achou-se por bem que eu fosse sem companhia.
Na base da serra mais próxima estava o alvo da minha missão. Foi para ali que me dirigi.
Desci para a altitude de reconhecimento visual do terreno e comecei à procura de sinais de vida, em zona de guerra. Neste local, tudo o que tivesse vida era fruto do terrorismo ou apoio ao mesmo, estando portanto legitimada qualquer acção bélica da minha parte.
Era a minha missão e eu estava na zona que me fora destinada.
No chão só a mata era visível, exuberante de vida. Podia ver a floresta, as grandes formações rochosas e os riachos a correr entre enormes árvores que faziam muitas zonas de sombra que podiam ocultar palhotas bem dissimuladas.
Era preciso ver muito bem. E tentar esquecer a paisagem.
Afinal não estava a fazer turismo e a zona era de guerra. Eu podia inclusive servir de alvo a um qualquer terrorista bem camuflado.
Numa volta para a esquerda a grande aldeia apareceu-me de súbito!
Como era possível tão grande aglomerado de palhotas, umas dez ou mais, sem grandes preocupações de camuflagem evidente, ali mesmo debaixo de mim!
E tão perto da nossa base.
Subi um pouco para avaliar melhor e o que vi fez-me perceber que aquela era uma aldeia com vida actual, ou seja habitada permanentemente, de onde as pessoas tinham saído, provavelmente à pressa, não há muito tempo.
Foto de Nuara
Quando bombardeava aldeias em zonas de guerra tinha sempre o mesmo sentimento: com o barulho que estes aviões fazem, a gente desta aldeia deve tê-la abandonado há pelo menos 15 minutos.
As bombas caíam a grande maioria das vezes exactamente sobre a palhota a eliminar. A técnica era apurada e os alvos eram abatidos com grande eficácia. Tanta que várias vezes ao sair do passe de tiro a explosão era enorme. Demasiada mesmo para tão pouca carga de explosivo que se descarregara.
Aquela palhota era, afinal, um paiol! E os gritos de regozijo, pela rádio, podiam ouvir-se por todo o Norte de Moçambique.
Mas naquele dia eu não estava armado com bombas. Tinha dois ninhos de metralhadoras de cada lado das asas. O meu alvo não podiam ser as palhotas. De nada servia. As metralhadoras tinham outros destinatários.
Mais uma volta de reconhecimento, agora em voo bastante baixo.
Mas o que é isto!? Até galinhas a correrem espavoridas no meio da aldeia, caminhos perfeitamente varridos e limpos, cada uma para seu lado!
Alguém sabia de existência deste objectivo. Daí a razão de eu estar ali.
Bem, vou reportar e nada posso agora fazer. Não tenho armamento adequado para o necessário.
E foi então que o vi.
Um homem alto, esguio, asseadamente vestido. De calças compridas e camisa dentro das calças. Cinto, sapatos e tudo. Uma elegância!
Todo vestido de branco!
Num instante até pareceu que as metralhadoras se viraram por si só, para este legítimo alvo a abater e começaram a disparar mesmo ao lado do homem que fugia entre as palhotas.
Nem teve tempo para reagir.
Como nos filmes, as balas levantavam tracinhos de poeira á distancia que eu queria do homem, sem o atingir, por agora…
E aquele inimigo, todo de branco vestido, perfeitamente á mercê do meu olhar, com os segundos de vida em contagem decrescente, corria descontrolado entre as palhotas, sem se afastar da aldeia.
E os tracinhos de pó faziam carreirinhos ao lado dele, sempre que corria.
Ora de um lado ora de outro, por toda a aldeia.
Aquele jogo de guerra era alimentado por uma enorme adrenalina que servia a raiva de tanta coisa passada.
Aquele homem tinha, não sei porquê, de pagar por tudo o que eu já passara. Por tanto que camaradas meus tinham passado. Mas antes disso havia umas contas a ajustar…
Não sei quanto tempo ali estive. Mas parece-me, hoje, que foi menos do que leva isto a ler.
O que sei é que às tantas, no meu espírito, uma dúvida se instalou.
Não és capaz, pois não…?
Mas o dever de cumprir era muito forte. Eu era um militar e o facto de estar sozinho não me livrava de deixar de executar a missão que me fora indicada.
Este drama instalou-se entre dois passes de tiro.
Os tracinhos de pó adiavam a decisão e ao mesmo tempo afinavam a pontaria.
As balas caminhavam propositadamente mesmo ao lado dele sem o molestar.
Muito lentamente...
No meu espírito tudo se passava muito lentamente. Não podia errar. Não era ainda a hora. Não queria abater ainda aquele homem.
E os montinhos de pó elevavam-se do chão vagarosamente, descontentes.
O Tempo caminhava agora desgostoso...
Aquele tracejado das balas tornara-se afinal um diálogo. Pesado.
Entre a consciência e o dever.
Cada bala que batia no chão era o dever a chamar-me.
Nos intervalos das balas a minha consciência punha-me a mão no ombro e pedia-me que parasse.
E mostrava-me depois o pó e o que poderia significar.
Num último passe, o homem perfeitamente apavorado, abriga-se debaixo de uma palhota e abraça-a, braços esticados, todo encostado a ela de costas para mim.
Um verdadeiro Cristo já crucificado mas todo vestido de branco.
As metralhadoras engoliram em seco...
E foi a última vez que te vi...
Gostava de te ver numa próxima visita a Moçambique, com os teus 70 e tal anos, rodeado de netos a contares-me o que te passou pela cabeça para não teres fugido da aldeia como todos os outros, quando me ouviste descolar, afinal era tão perto…
E andares assim vestido de branco, ali?
Francamente…
Gostava que me contasses o que sentiste ao ver o avião desistir e fazer um pacto com todos os homens que sofrem numa guerra.
No relatório da missão, que tinha de fazer, mencionei a aldeia e tudo o que me pareceu de relevo para uma futura operação, conjunta ou não entre a Força Aérea e Exército.
O homem de branco não estava na aldeia.
Vestido assim...
(Actualizada em 24 de Outubro de 2016)
E andares assim vestido de branco, ali?
Francamente…
Gostava que me contasses o que sentiste ao ver o avião desistir e fazer um pacto com todos os homens que sofrem numa guerra.
No relatório da missão, que tinha de fazer, mencionei a aldeia e tudo o que me pareceu de relevo para uma futura operação, conjunta ou não entre a Força Aérea e Exército.
O homem de branco não estava na aldeia.
Vestido assim...
Ou era um Anjo, quem sabe...
Que quis avaliar até onde a sanha, a maldade, a crueza da guerra desumaniza um homem.
Solitário, indefeso, exposto como eu estava ali.
Perante Ele…
(Actualizada em 24 de Outubro de 2016)
Vim aqui parar por acaso, estou a ler tudo e a adorar. Escreve muito bem. Fico com saudades de pessoas genuínas e do tempo em que o mais importante eram as pessoas.
ResponderEliminarFelicidades para si!
LP
Vim aqui parar por acaso, estou a ler tudo e a adorar. Escreve muito bem. Fico com saudades de pessoas genuínas e do tempo em que o mais importante eram as pessoas.
ResponderEliminarFelicidades para si!
LP