Outras histórias - A trivela de Quaresma

NOTA:

Esta "História" é 100% cópia de um brilhante texto de
Marta Leite Ferreira no "O Observador" de 26 de Junho de 2018.

Todas as imagens são também do jornal.














Marta Leite Ferreira



A TRIVELA DE QUARESMA




A trivela com que Quaresma garantiu a presença de Portugal nos oitavos é mais uma jóia da seleção. Rege-se por leis da física estudadas há cinco séculos, mas só compreendidas há dez anos.

Ao longo dos últimos quase cinco séculos da história da ciência, houve pelo menos três génios que tentaram explicar aquilo que Ricardo Quaresma fez segunda-feira à noite contra o Irão e que valeu à seleção portuguesa a qualificação para os oitavos de final do Mundial. Quem viu o jogo não esquece o momento: Quaresma acertou de  com a parte de fora do pé direito na bola, que “até parecia teleguiada”, viajando 22 metros em 1,1 segundos até ir parar ainda a rodopiar ao fundo das redes da baliza iraniana.





A corrida para a bola


Em pouco mais de um segundo, o atacante português cumpriu duas das condições essenciais para tornar um golo indefensável: chutou a bola para o canto mais afastado do guarda-redes, que não teve tempo suficiente para reagir ao remate, e ainda por cima deu-lhe uma direção que era impossível de prever pelo guardião do Irão. Para explicar cientificamente a famosa trivela de Quaresma, que ele anda a aprimorar desde aquele Beira-Mar-FC Porto de 2004, é preciso andar para trás e revisitar as teorias de Galileu Galileu, Isaac Newton e Albert Einstein. Sim, esses mesmos.

Conta Vincenzo Viviani, biógrafo e pupilo de Galileu Galilei, que num dia algures entre 1589 e 1592 o físico italiano subiu ao cimo da Torre de Pisa com duas esferas na mão e atirou-as das alturas para provar que, apesar de terem massas diferentes, elas chegavam ao mesmo tempo ao chão. Desde então que na física se conhecem as leis do movimento, as mesmas que explicam pelo menos parte das trivelas de Quaresma: a NASA, agência espacial norte-americana, diz que o efeito que o jogador português provoca na bola “é causado por forças aerodinâmicas“.



O remate, com a parte de fora do pé direito



“Tudo o que é necessário para criar a sustentação da bola é criar um fluxo de ar: assim como o aerofólio de uma asa  [aquela parte final das asas dos aviões ou o que alguns carros transformados têm na parte traseira] cria um fluxo, o mesmo acontece com uma bola que gira. Os detalhes sobre como é que a força é gerada é bastante complexa, mas depende do tamanho da bola, de quão rápida ela gira, da velocidade do pontapé e da densidade do ar”, resume a NASA. Pois, não é fácil.
As características desse fluxo de ar que permite à bola viajar de um ponto ao outro numa trajetória curva dependem da natureza do pontapé, como concretiza Kenneth S. Mendelson, físico da Universidade de Marquette (Estados Unidos): “O movimento giratório de uma bola de futebol é determinado pela forma como ela é chutada. Se a bola for chutada diretamente em linha com o seu centro de massa não girará, mas um chuto fora do centro de massa fará com que ela gire. Quanto mais forte for o pontapé e quanto mais longe for dado do centro de massa da bola, mais depressa ela vai girar“, explica.
É por isso que nesta fotografia (fantástica, diga-se) partilhada pela Federação Portuguesa de Futebol, o pé de Ricardo Quaresma parece tão desviado daquele que seria o percurso mais normal de um pontapé: o que o internacional do Besiktas faz é desviar/entortar (ou chamemos-lhe o que quisermos ao olhar para a imagem) o pé de modo a passar de raspão na Telstar, fazendo com que gire mais rápido e de forma completamente imprevisível.


É aqui que entram as contribuições de Isaac Newton. Um dia, o astrónomo britânico assistia a uma partida de ténis quando reparou quese o tenista acertasse na bola com um movimento da raquete executado de baixo para cima, ela acabaria por começar a girar e a subir para depois cair bruscamente no campo do adversário; enquanto que se ele acertasse na bola no movimento contrário, de cima para baixo, ela começava a girar no sentido contrário e levantaria em vez de cair repentinamente. Hoje em dia, esses movimentos já têm nomes no ténis: o primeiro chama-se topspin, enquanto o segundo é conhecido como backspin.



A bola já gira a grande velocidade segundo as leis da física


Para a física o nome é outro: efeito Magnus. E acontece quando arotação de um corpo altera a trajetória que ele vai percorrendo ao longo de um líquido ou de um gás, como o ar: “Dando à bola um giro, um jogador de futebol pode fazer com que o caminho desta pelo ar se curve ou dobre. A curvatura é causada por uma força, chamada de efeito Magnus, provocada pelo movimento do ar sobre a bola giratória”, resume Kenneth S. Mendelson.
Isso acontece porque, quando o ar passa por uma bola, ou se move através do ar, uma fina camada de ar adere à superfície da bola: é a camada limite. Essa camada limite deixa de conseguir manter-se agarrada à superfície da bola quando o ar passa para a parte detrás dela, altura em que se transforma numa série de remoinhos: “O resultado é que a bola exerce uma força no ar fazendo com que ela se mova na direção daquela forma que vemos. Segundo a Terceira Lei de Newton, há força de reação do ar na bola que faz com que o caminho da bola se curve”, diz o físico norte-americano.

Essa explicação foi retomada  no livro “Como Vejo O Mundo” de Albert Einstein ao falar do Princípio de Bernoulli, que diz que “se a velocidade de uma partícula de um fluido aumenta enquanto ela se escoa ao longo de uma linha de corrente, a pressão do fluido deve diminuir e vice-versa”. Vamos trocar isto por miúdos: quando Ricardo Quaresma fez com que a bola seguisse uma trajetória curva, o futebolista também fez com que ela começasse a girar no sentido dos ponteiros do relógio e arrastasse o ar à sua volta. Na parte de baixo da bola, o ar desloca-se no mesmo sentido da corrente criada pelo movimento da bola para a frente, enquanto na parte de cima, as duas correntes têm sentidos contrários à bola. À conta disso, o ar por baixo da bola movimenta-se com maior rapidez e a pressão é menor; e o ar de cima desloca-se mais lentamente e a pressão é maior. Essa diferença força a bola a seguir uma trajetória curva: “Há, portanto, um desequilíbrio nas forças e a bola desvia-se para lhes obedecer“, concretiza a revista Physics World num artigo publicado há 10 anos.



E a bola a entrar onde devia, no canto mais afastado do guarda-redes iraniano




Isso também é contado num estudo do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), que explica tudo por partes. “À medida que a bola se move no ar, o ar enrola-se em volta da bola. Na parte de trás da bola, as correntes de ar que se separaram ao encontrar a bola voltam a unir-se. No entanto, como a bola se move significativamente mais rápido que o ar, há uma lacuna entre o lado de trás da bola e o local onde as correntes de ar se reúnem. A bola é como uma rocha num rio que flui rápido: a água divide-se em redor da rocha e depois agita-se para a envolver, causando turbulência. Essa área é chamada ‘esteira da bola’ e aponta para longe da direção em que a bola vai voar”, começa por ler-se. Explicada a forma como a bola atravessa o ar, o MIT avança depois como se forma a rotação dela: “Se olharmos para a parte de trás de uma bola em rotação, podemos ver uma direção que é útil para descobrir como a bola se vai curvar. O ar vai agarrar-se na superfície da bola a girar como se fosse feito de xarope. Isso significa que o ar vai fluir ao redor da bola na mesma direção em que ela vai girando. Assim, o ar ao longo do lado esquerdo da bola é arrastado para a direita, tal como a rotação dela“.

A tudo isto é preciso juntar o facto de a bola não só estar a girar, mas também a avançar para a frente, realça o MIT: “Como a bola se está a mover para a frente, é como se o ar se estivesse a mover para trás e ao longo da superfície da bola. Ao fazê-lo, as correntes de ar separam-se em torno da bola e depois voltam a unir-se novamente. Mas devido à maneira como o ar flui ao redor da bola, o fluxo de ar divide-se de uma maneira muito estranha”.

E é estranha porque é como se o fluxo de ar fosse soprado para o lado e não se encontrasse no centro de massa da bola: “Como os fluxos se encontram mais à direita do centro, o rasto que devia estar diretamente atrás da bola passa a estar mais para o lado direito da bola”. Mas a quantidade de ar em ambos os lados da bola permanece a mesma, por isso o ar à esquerda tem que se espalhar mais para preencher o espaço livre à direita. No caso específico do golo de Quaresma, como a mesma quantidade de ar precisava de ocupar mais espaço, isso criou uma pressão de ar no lado esquerdo da bola: “Como o ar ao redor da bola flui mais para a direita, a própria bola é forçada a rolar para a esquerda para preencher a lacuna causada pela rotação”, termina o artigo do MIT.
Tudo isto acontece tanto mais rápido quanto mais forte for o pontapé de Quaresma. Mas há mais um aspeto físico a favor do avançado português: é que a bola não é uma esfera perfeita. Tem hexágonos cosidos uns aos outros. Como a superfície da bola é irregular, mesmo que a bola esteja a girar devagar ou que não esteja a girar de todo, o ar não se agarra a ela: as costuras da bola interrompem o fluxo de ar, que se torna turbulento e por isso pode girar de volta para a bola dando-lhe empurrões que podem aumentar a velocidade ou colocá-la a girar mais depressa. 

Aquilo que Ricardo Quaresma fez na segunda-feira à noite é precisamente igual ao que o brasileiro Roberto Carlos fez em 1997: o Brasil defrontava a França num jogo de preparação para o Campeonato do Mundo quando o lateral foi chamado para marcar um pontapé livre. Ao início, a bola parecia dirigir-se para a direita como se fosse sair no canto da área francesa, mas depois fintou os defesas e voltou a encaminhar-se para a baliza de França, onde Fabien Barthez ficou imóvel sem conseguir reagir ao efeito conseguido.

Depois disso, vários cientistas tentaram explicar exatamente o que tinha acontecido em campo naquele dia, conforme noticiou a BBC em 2010: “Uma equipa francesa de cientistas descobriu a trajetória do golo e desenvolveu uma equação para descrevê-lo. Dizem que ele poderia ser repetido se uma bola fosse chutada com força suficiente e com o movimento giratório apropriado”, dizia a notícia. O estudo a que se referia a notícia acrescentava: “Nós demonstrámos que o caminho de uma esfera quando gira é uma espiral” como se fosse “uma trajetória com um formato igual à concha de um caracol”.
Aquilo que os cientistas estudam há cinco séculos e que só conseguiram aplicar ao futebol há dez anos não impressa Ricardo Quaresma. Nas entrevistas depois do Irão-Portugal, Quaresma disse: “Peguei bem na bola, já habituei as pessoas a esse tipo de remates. Foi um grande golo, mas o mais importante foi alcançar o grande objetivo de todos nós, que era chegar à fase seguinte”.

Quando está em campo, é pouco provável que Ricardo Quaresma faça contas aos efeito Magnus para dar feitios à trajetória da bola ou que tente calcular como a força de gravidade lhe vai traçar o rumo: para ele vão contando os 14 anos que passou a aperfeiçoar as trivelas.





A festa dos dois amigos de sempre




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Obrigado, Marta Leite Ferreira.

Gabriel Cavaleiro











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