Ele há dias assim...
Conhecemos, convivemos um pouco, colaboramos com pessoas extraordinárias e não sabemos quem elas são, realmente.
Mas naqueles momentos eles também ainda não sabiam que o que fariam mereceria dos comuns mortais, que para eles olhavam com espanto, admiração e reconhecimento, as mais altas distinções.
Ele há dias em que se combate, com as parcas aptidões de que somos servidos, colaborando, em simultâneo, com dois homens extraordinários.
Daqueles que já ficaram na História.
Numa parte da nossa história ainda envolta em imensa controvérsia. A Guerra do Ultramar.
Não vou aqui opinar sobre essa Guerra. Vou falar de quem a fez, realmente.
Nesse dia de que vos vou falar, era eu o responsável pela acção da Força Aérea na colaboração com forças terrestres.
Não o sabia de todo, mas lá em baixo, dissimulados na mata, à espera que eu desse o sinal aos meus camaradas, da esquadrilha de 4 aviões T-6, para começarmos o bombardeamento, a quase uma hora de voo da nossa Base, estavam dois extraordinários homens, que eu conhecia e com quem já tinha colaborado.
Conhecia-os, mas não sabia de todo os Homens que eram.
Comandavam, em mútua colaboração, dois muito diferentes grupos de Combatentes.
Um deles nem Militar era...
Estes homens, mais tarde, mereceram:
O que nem Militar era,
- recebeu do Estado Português duas Cruzes de Guerra, a primeira em 10 de Junho de 1968, em Lourenço Marques (Maputo) e uma Medalha de Serviços Distintos.
A Cruz de Guerra que este homem recebeu foi a primeira jamais entregue a um civil pelo Estado Português
Mas recebeu também, mais tarde, as medalhas PRO PATRIA (Cunene clasp) e a SOUTHERN AFRICA medal.
Postumamente recebeu ainda a Cruz de Honra, Honoris Crux.
Foi o primeiro estrangeiro a receber esta Condecoração, a mais alta Condecoração Militar Sul-Africana.
Aquele que era militar,
- tinha já recebido uma Medalha de Prata de Valor Militar com palma e uma Cruz de Guerra de 2ª classe
Postumamente, viria a ser também agraciado com o grau de Oficial da Ordem da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito.
Com esta história quero prestar uma sentida homenagem ao
Capitão Miliciano de Artilharia Comando
Horácio Francisco Martins Valente
Capitão Miliciano de Artilharia Comando
Horácio Francisco Martins Valente
Ao outro Combatente, o que não era Militar, o Comandante Roxo, dediquei uma outra história que podem ler aqui
O Capitão Valente era o Comandante da 4.ª Companhia de Comandos/RAL 1, no Niassa, em Moçambique.
Foi um Homem que gostei de conhecer. Gostei da pessoa. Gostei do caracter.
Com ele mesmo ao meu lado, num pequeno avião mono motor, um Dornier Do-27 e com outro Oficial, executámos uma missão de reconhecimento ao terreno, no Niassa, a Província a Norte de Moçambique, junto ao Lago Niassa.
Guiava-nos um combatente da Frelimo.
Prisioneiro, não traidor.
Já não me lembro mas parece-me que seria um alto quadro militar. Um homem de poucas palavras, baixa estatura, uma postura digna durante toda a operação.
Homem que, é meu dever dizê-lo, fiquei também a admirar. Pela pessoa em si, pelo seu comportamento e pelas capacidades militares que demonstrou.
Esta é a história das poucas horas que partilhei com o Capitão Valente numa acção de combate, por sinal uma das mais importantes da guerra em Moçambique, na companhia também, embora nesse dia não o soubesse, do Comandante Roxo, com quem, nesta operação, não contactei.
Filho de Francisco Ferreira Valente Júnior e de Emília Martins Maia Valente, solteiro, nasceu no dia 29 de Maio de 1938, na freguesia de Santa Maria de Vilar, concelho de Vila do Conde.
O Capitão Valente embarcou, como Comandante da 4ª Companhia de Comandos, num navio em Lisboa no dia 9 de Novembro de 1966.
Já tinha feito duas comissões de serviço, uma na Guiné e outra em Angola, onde se revelou um Comando de eleição
Desembarcaram em Lourenço Marques no dia 26 desse mesmo mês.
A Companhia seguiu logo, ainda de barco, para Nacala, o grande porto no Norte de Moçambique.
Ali chegados, foram embarcados num comboio com destino a Nampula.
O Comandante da 4ª Companhia de Comandos recebeu ordens do Oficial responsável pelo transporte daqueles militares para que as espingardas automáticas dos seus homens, as G3, fizessem a viagem sem bala na câmara.
As G3 são alemãs, de calibre 7,62mm NATO, de nome original Gewehr 3, ou seja “Espingarda 3”.
E ficou ali á espera que o procedimento se executasse.
Obviamente que o Capitão Valente não podia aceitar que os seus homens viajassem desarmados, sujeitos a uma qualquer emboscada, mesmo que um pouco improvável, naquela altura, entre Nacala e Nampula.
Como tal, deu imediatamente ordens para que cada homem daquela Companhia armasse a sua G3, com aquele barulho característico de um carregador cheio de munições a ser introduzido com firmeza numa arma.
A 4ª Companhia de Comandos estava agora pronta para ser transportada naquele comboio para Nampula, o grande entreposto militar do Norte de Moçambique.
E todos os Comandos daquela célebre Companhia acharam que as coisas começavam bem. Já conheciam o seu Comandante. Aquilo não era novidade nenhuma.
Gerou-se um conflito entre o Oficial Comando e o Oficial encarregue do transporte daqueles militares. Por mais que o homem tentasse o Capitão Valente mais crescia.
Nada feito!
A viagem teve mesmo de ser feita assim. Todos armados, balas nas câmaras, prontos para qualquer eventualidade. Mas com muita calma e determinação.
Para quem não conheceu o Capitão Valente, nem está a ver o que é uma guerra de guerrilha, este poderá ser considerado um acto de bravata, uma acção descabelada, de um homem impulsivo e indisciplinado.
No entanto, em 28 de Novembro de 1964 era louvado pelo Brigadeiro Sá Carneiro nestes termos:
<< Oficial muito competente e de forte personalidade, impôs-se sempre pelas suas reais qualidades de valentia. Disciplinado, disciplinador e de extraordinário bom senso, soube mentalizar e instruir o seu Grupo de tal maneira que o mesmo bem pode ser considerado como modelo de Grupo de Comandos. >>
Este era o Homem. Que nunca esqueci.
Quanto ao Oficial responsável por aquele transporte militar não restou outra coisa senão, à chegada a Nampula, onde se situavam o Quartel General do Exército e também o da Força Aérea, (zona á qual, todos os militares, chamávamos a “ZAC” – Zona do Ar Condicionado) dizia eu, não restou outra alternativa àquele Oficial senão participar aquele acto de desobediência aos seus superiores.
Que outro remédio não tiveram também, senão aplicar um castigo a tão rebelde desconhecido Comandante de uma simples Companhia de Comandos…podia lá ser aquilo, pensaram as chefias que, sentados no Ar Condicionado, faziam dali toda a guerra.
O Capitão Valente foi temporariamente destituído do Comando da 4ª Companhia e enviado para um aquartelamento bem no interior do Niassa, a Norte de Moçambique, para comandar tropa regular.
Já não me lembro do nome da localidade onde o quartel estava implantado, mas lembro-me que se sabia, em todo o Norte de Moçambique, que ali, naquelas eternamente improvisadas instalações do Exército, à entrada “do Bar”, uma palhota feita de toscos troncos de árvore, coberta a colmo, havia um letreiro que dizia:
- “BEBA AGORA E PAGUE NA XEFINA”.
Não percebem, não é? Mas eu explico.
A Xefina é uma pequena ilha que está situada frente à Costa do Sol, a grande praia a Este de Lourenço Marques, hoje Maputo.
Na Costa do Sol ainda hoje se comem excelentes camarões grelhados num grande restaurante com esse nome.
Todas as praias dessa pequena ilha eram, na altura e se calhar hoje também, frequentadas por muitos tubarões que por ali andavam permanentemente à procura de algo para comer…
Acontece que depressa se descobriu que a Xefina dava um óptimo presídio militar. Ninguém se atreveria a fugir dali, pelo menos a nado…
Aquele letreiro “no Bar” significava, pois, que beber podia-se…, mas não havia a mínima intenção de ninguém pagar nada…E era o que acontecia de facto!
Aqueles militares, desterrados nos confins de coisa nenhuma, e sem salvação possível, sempre à espera de serem atacados, deviam já aos cofres do Estado Maior, ao Ministério das Forças Armadas, ao Ministério do Ultramar, a Salazar, até, sei lá... uma notável quantidade de bagaços e Laurentinas (a Sagres de Moçambique) que correspondia a 90 contos de reis.
Ok, também já não vos dizem nada os “contos”. Um conto eram mil escudos. Um Euro são aproximadamente 200 escudos. A um conto correspondem, pois, 5€. Pouca coisa? 450€? Nem por isso! Vejamos, assim talvez percebam melhor.
Uns quatro a cinco anos depois, já em Lisboa, comprei um Datsun 1200, um carro da classe média, novinho em folha, a sair do stand do Entreposto Comercial nos Olivais, onde eu morava, por 60 contos. Ou seja, 300€…
Um carro equivalente, hoje a um Toyota Auris, por exemplo.
O meu carro novinho, à estreia, saiu-me 30 contos mais barato, do que a dívida de bagaço e cervejas que o Capitão Valente herdou…mesmo sem ele ainda ter bebido nada.
Não sei se alguém daquele improvisado aquartelamento foi alguma vez parar à Xefina. Duvido…
Duvido também que dívida tamanha tenha sido paga, mas agora continuemos a história.
Ora o que faz um Capitão, Comandante de uma Companhia de Comandos, a chefiar tropa regular, homens que muito pouco sabiam de tácticas militares de guerrilha. Faziam o que lhes ensinaram. E já não era pouco o que faziam. Uns quantos rapazes saídos das suas aldeias no Norte ou no Alentejo a quem davam uma arma e esperavam que matassem todos os inimigos da Frelimo que vissem, sem mais! Coisa fácil...
O Capitão Valente ia pondo ordem naquela gente, sem grande esforço porque, como sempre, aqueles eram jovens disciplinados, quanto baste.
Um dia houve necessidade de fazer um reconhecimento ao que se supunha ser um ninho de “terroristas”.
O Capitão Valente mandou uns quantos investigar. Meteram-se num jipe mas poucas horas depois estavam de volta.
Era impossível progredir, reportaram ao Comandante daquela mal preparada tropa, porque eles sentiam, sabe-se lá como, a presença de forças inimigas que fizeram abortar qualquer tentativa de progressão no terreno. A desproporcionalidade das forças era muita! Afirmaram.
- Como?! Admirou-se o Capitão Valente. Vocês não foram ao local!?
- Não se consegue, meu Capitão!
- Ai não? Então vou lá eu, sozinho…
Dito isto, aqueles atónitos rapazes, 20 anos feitos e com pouco mais competências do que amanhar as suas terras e dar uns tiros, viram o seu Comandante municiar-se com umas quantas cervejas e a sua arma. E pouco mais. Ah!... E um livro.
E abalou em grande velocidade num jipe da Unidade. Todos a verem, sem vislumbrarem o que deveriam fazer. Nada que alguma vez tivessem visto!
Limitaram-se a esperar e a comentar aquela loucura, que para eles era, certamente.
Aproximava-se já o fim daquela tarde, horas depois, e do Capitão nada… Não havia notícias.
O Sargento, o militar mais antigo, resolveu tomar conta da situação e organizou uma equipa que se meteu a caminho do objectivo que de manhã não tinham conseguido alcançar e para onde o Capitão se deveria ter dirigido. Achavam eles.
Chegados às proximidades embrenharam-se no mato, evitando ao máximo qualquer ruído que os denunciasse e foram progredindo em direcção ao local hipotético em que os “turras” se supunha estarem acoitados.
Havia que subir uma colina que encimava o acampamento do inimigo.
Do Capitão, nada.
Quase no topo do pequeno monte, um deles, o que ia na frente, sempre agachado, manda todos parar com um gesto firme, a outra mão com um dedo atravessado entre os lábios e aponta para a frente.
Chegaram-se todos, lentamente, um pouco mais à frente, receosos e o que viram?
O Capitão Valente tinha acabado a última cerveja e, sentado, encostado a uma árvore, o boné atirado para os olhos a tapar-lhe o sol que lhe dava de frente, quase no horizonte, o acampamento do inimigo logo ali em baixo à vista, que até se via bem, lia, concentrado, um dos últimos capítulos do livro que levara. Faltava apenas a última página para se poder retirar para o quartel.
Foi uma grande lição só possível de dar por quem tinha dotes muito acima do que aqueles simples militares alguma vez viriam a ter, não por incompetência pessoal, mas por falta dela, da competência que não lhes tinha sido ministrada.
E por dificuldades em circular nas picadas, não havendo uma pista de aviação ali perto, os reforços e até os suprimentos não se faziam amiúde, com receio de emboscadas.
Pois este Capitão, que eu conheci, com quem colaborei um pouco, já vos conto, explicou a toda a gente como se fazia. Por duas vezes meteu-se sozinho num jipe e foi ele mesmo a Nampula, num trajecto de 9 horas sem parança, resolver problemas.
O castigo acabou um dia, não durou muito e ele retomou o comando dos seus homens, a 4ª Companhia de Comandos em Moçambique.
Nos finais de Março de 1968, estava eu a meio caminho da minha comissão voluntária de serviço como Sargento Miliciano Piloto em Moçambique, tive conhecimento de que uma grande, mesmo grande operação militar estava em preparação.
Na Base só sabíamos isto. O secretismo era grande e a pouco e pouco fomos tomando conhecimento de alguns pormenores. Pouco mais.
Até que um dia, de surpresa, apareceram-nos na Base, em Vila Cabral, o Capitão Valente acompanhado de outro Oficial e um prisioneiro da Frelimo.
Nós já sabíamos que ia haver um voo, mas pouco mais.
Aqueles três homens que até ali eu desconhecia completamente, meteram-se rapidamente comigo num DO27, na cabina, lá atrás, num avião pilotado pelo Tenente Mira Godinho. A seu lado levava alguém de que já não me lembro o nome ou mesmo o ramo militar ou patente.
Na Guerra, eu nunca aceitei meter-me num avião que não fosse pilotado por mim. Por coisas…
Naquele dia duas razões houve para o aceitar.
Primeiro, era o Mira Godinho que pilotava.
Todas as praias dessa pequena ilha eram, na altura e se calhar hoje também, frequentadas por muitos tubarões que por ali andavam permanentemente à procura de algo para comer…
Acontece que depressa se descobriu que a Xefina dava um óptimo presídio militar. Ninguém se atreveria a fugir dali, pelo menos a nado…
Aquele letreiro “no Bar” significava, pois, que beber podia-se…, mas não havia a mínima intenção de ninguém pagar nada…E era o que acontecia de facto!
Aqueles militares, desterrados nos confins de coisa nenhuma, e sem salvação possível, sempre à espera de serem atacados, deviam já aos cofres do Estado Maior, ao Ministério das Forças Armadas, ao Ministério do Ultramar, a Salazar, até, sei lá... uma notável quantidade de bagaços e Laurentinas (a Sagres de Moçambique) que correspondia a 90 contos de reis.
Ok, também já não vos dizem nada os “contos”. Um conto eram mil escudos. Um Euro são aproximadamente 200 escudos. A um conto correspondem, pois, 5€. Pouca coisa? 450€? Nem por isso! Vejamos, assim talvez percebam melhor.
Uns quatro a cinco anos depois, já em Lisboa, comprei um Datsun 1200, um carro da classe média, novinho em folha, a sair do stand do Entreposto Comercial nos Olivais, onde eu morava, por 60 contos. Ou seja, 300€…
Um carro equivalente, hoje a um Toyota Auris, por exemplo.
O meu carro novinho, à estreia, saiu-me 30 contos mais barato, do que a dívida de bagaço e cervejas que o Capitão Valente herdou…mesmo sem ele ainda ter bebido nada.
Não sei se alguém daquele improvisado aquartelamento foi alguma vez parar à Xefina. Duvido…
Duvido também que dívida tamanha tenha sido paga, mas agora continuemos a história.
Ora o que faz um Capitão, Comandante de uma Companhia de Comandos, a chefiar tropa regular, homens que muito pouco sabiam de tácticas militares de guerrilha. Faziam o que lhes ensinaram. E já não era pouco o que faziam. Uns quantos rapazes saídos das suas aldeias no Norte ou no Alentejo a quem davam uma arma e esperavam que matassem todos os inimigos da Frelimo que vissem, sem mais! Coisa fácil...
O Capitão Valente ia pondo ordem naquela gente, sem grande esforço porque, como sempre, aqueles eram jovens disciplinados, quanto baste.
Um dia houve necessidade de fazer um reconhecimento ao que se supunha ser um ninho de “terroristas”.
O Capitão Valente mandou uns quantos investigar. Meteram-se num jipe mas poucas horas depois estavam de volta.
Era impossível progredir, reportaram ao Comandante daquela mal preparada tropa, porque eles sentiam, sabe-se lá como, a presença de forças inimigas que fizeram abortar qualquer tentativa de progressão no terreno. A desproporcionalidade das forças era muita! Afirmaram.
- Como?! Admirou-se o Capitão Valente. Vocês não foram ao local!?
- Não se consegue, meu Capitão!
- Ai não? Então vou lá eu, sozinho…
Dito isto, aqueles atónitos rapazes, 20 anos feitos e com pouco mais competências do que amanhar as suas terras e dar uns tiros, viram o seu Comandante municiar-se com umas quantas cervejas e a sua arma. E pouco mais. Ah!... E um livro.
E abalou em grande velocidade num jipe da Unidade. Todos a verem, sem vislumbrarem o que deveriam fazer. Nada que alguma vez tivessem visto!
Limitaram-se a esperar e a comentar aquela loucura, que para eles era, certamente.
Aproximava-se já o fim daquela tarde, horas depois, e do Capitão nada… Não havia notícias.
O Sargento, o militar mais antigo, resolveu tomar conta da situação e organizou uma equipa que se meteu a caminho do objectivo que de manhã não tinham conseguido alcançar e para onde o Capitão se deveria ter dirigido. Achavam eles.
Chegados às proximidades embrenharam-se no mato, evitando ao máximo qualquer ruído que os denunciasse e foram progredindo em direcção ao local hipotético em que os “turras” se supunha estarem acoitados.
Havia que subir uma colina que encimava o acampamento do inimigo.
Do Capitão, nada.
Quase no topo do pequeno monte, um deles, o que ia na frente, sempre agachado, manda todos parar com um gesto firme, a outra mão com um dedo atravessado entre os lábios e aponta para a frente.
Chegaram-se todos, lentamente, um pouco mais à frente, receosos e o que viram?
O Capitão Valente tinha acabado a última cerveja e, sentado, encostado a uma árvore, o boné atirado para os olhos a tapar-lhe o sol que lhe dava de frente, quase no horizonte, o acampamento do inimigo logo ali em baixo à vista, que até se via bem, lia, concentrado, um dos últimos capítulos do livro que levara. Faltava apenas a última página para se poder retirar para o quartel.
Foi uma grande lição só possível de dar por quem tinha dotes muito acima do que aqueles simples militares alguma vez viriam a ter, não por incompetência pessoal, mas por falta dela, da competência que não lhes tinha sido ministrada.
E por dificuldades em circular nas picadas, não havendo uma pista de aviação ali perto, os reforços e até os suprimentos não se faziam amiúde, com receio de emboscadas.
Pois este Capitão, que eu conheci, com quem colaborei um pouco, já vos conto, explicou a toda a gente como se fazia. Por duas vezes meteu-se sozinho num jipe e foi ele mesmo a Nampula, num trajecto de 9 horas sem parança, resolver problemas.
O castigo acabou um dia, não durou muito e ele retomou o comando dos seus homens, a 4ª Companhia de Comandos em Moçambique.
Nos finais de Março de 1968, estava eu a meio caminho da minha comissão voluntária de serviço como Sargento Miliciano Piloto em Moçambique, tive conhecimento de que uma grande, mesmo grande operação militar estava em preparação.
Na Base só sabíamos isto. O secretismo era grande e a pouco e pouco fomos tomando conhecimento de alguns pormenores. Pouco mais.
Até que um dia, de surpresa, apareceram-nos na Base, em Vila Cabral, o Capitão Valente acompanhado de outro Oficial e um prisioneiro da Frelimo.
Nós já sabíamos que ia haver um voo, mas pouco mais.
Aqueles três homens que até ali eu desconhecia completamente, meteram-se rapidamente comigo num DO27, na cabina, lá atrás, num avião pilotado pelo Tenente Mira Godinho. A seu lado levava alguém de que já não me lembro o nome ou mesmo o ramo militar ou patente.
Na Guerra, eu nunca aceitei meter-me num avião que não fosse pilotado por mim. Por coisas…
Naquele dia duas razões houve para o aceitar.
Primeiro, era o Mira Godinho que pilotava.
Mais de 50 anos depois continuamos amigos...
Tinha nele confiança total. Em segundo lugar, a minha função lá atrás era descobrir a base terrorista que se queria derrubar.
Modéstia à parte, eu era considerado um elemento que via toda as palhotas que houvesse debaixo de qualquer mata. Tinha algumas qualidades para tal e normalmente saía-me bem…
A Base da Frelimo, que o prisioneiro teria que me indicar a posição exacta, era a Base Provincial Gungunhana. A “Inteligência Militar" (basicamente agentes da PIDE) havia descoberto que se iria dar ali uma importante reunião das chefias da Frelimo. Era preciso tomar a Base naquele dia e com alguma sorte capturar quadros superiores do inimigo.
O secretismo era, pois, muito, muito grande e nós nada podíamos comentar com ninguém o que iríamos fazer.
Descolados de Vila Cabral num DO27, voámos durante 45 minutos sobre montes e vales.
O prisioneiro sempre imperturbável, sobrevoando florestas densamente cobertas de grandes árvores, em direcção a um objectivo difícil de encontrar mesmo para pilotos muito batidos, como todos nós éramos naquela zona.
Fiquei com uma enorme admiração por aquele prisioneiro, provavelmente um Comando da Frelimo, por aquilo que foi capaz de fazer, bem entendido, sob prisão.
Ao fim desse tempo, 45 minutos, na zona que ele já tinha, em terra, apontado numa carta militar, na área do Monte Cissindo, no Lunho, o Capitão Valente pergunta-lhe:
- A Base é aonde? Aponta lá o sítio!
Estávamos a uns 1000 pés sobre o terreno num avião que voava lentamente, a 90 nós.
Nunca falámos nisso, acho eu agora, mas intuímos que as antiaéreas, se as houvesse (e havia mesmo!) não iriam disparar porque eles não quereriam denunciar a importância do local que supunham que nós não conhecêssemos.
O prisioneiro olhou calmamente para baixo, varreu os olhos numa e noutra direcção e com serenidade, como quem sabe muito bem o que está a fazer, foi o que me pareceu, apontou para um ponto, no meio de milhares de árvores cerradas umas contra as outras, braço esticado e dedo indicador em riste e disse:
- É ali.
O Tó Mira Godinho leva o DO 27 para aquela posição e eu olho, com toda acuidade possível, para a base daquelas enormes árvores, tentando fixar o olhar, metro a metro, ao longo da mata, numa qualquer coloração diferente do verde acastanhado das folhas, que era tudo o que eu conseguia ver
Mas o que eu via mesmo eram árvores. Só árvores. Muitas árvores. Não via, sequer, chão nenhum!
Naquela breve passagem à vertical do hipotético aldeamento, não vi sinal algum de o que quer que fosse senão a exuberante vegetação, ainda por cima num dia de Sol radioso.
Alguma coisa me escapara. Ou não…
Decide-se fazer uma segunda passagem e o Capitão Valente volta a perguntar, desta vez mais a sério, num tom de voz um bom bocado mais acima do que aquele que usara na primeira passagem.
- Ouve! A Base fica aonde, pá!
O prisioneiro volta a olhar tudo à volta e aponta, de novo, exactamente para o mesmo sítio.
- É ali.
Eram as mesmas árvores. A mesma mata cerrada! A mesma inexistência de nada que se visse senão milhões de lindíssimas folhas verdes… Ou pelo menos que eu conseguisse ver.
A sorte do prisioneiro, aparentemente, dependia de mim. Não era muito razoável que, havendo um aldeamento tão importante como as informações que os Estados Maiores tinham e o prisioneiro confirmara existir, eu não o conseguisse ver, nem mais ninguém a bordo daquele pequeno avião que, no entanto, sobrevoava uma importante Base da Frelimo equipada com 3 antiaéreas, como se veio a verificar dias depois.
O Tó Mira Godinho dá mais uma volta pela esquerda e volta a apontar, pela terceira vez consecutiva o nariz do avião para onde deveria estar a Base, para onde o prisioneiro, insistentemente, mas com toda a calma deste mundo, sem uma única palavra, comunicando com a ponta do dedo indicador da mão direita, nos sinalizava a posição.
Ou talvez não... Naquele momento tudo era possível. Quem teria razão?
Foi um grande stresse. Ao mesmo tempo, sentia uma enorme angústia e a sensação de não estar a conseguir, de estar a falhar, porque acreditava naquele indefeso homem que agia, com risco da sua integridade física, com a maior serenidade, sem perder a sua humanidade e como tal captando a minha simpatia para com ele.
São aqueles momentos em que percebemos que dali para a frente alguma coisa vai ter de mudar…
Todos nós lá atrás, os quatro, percebemos que desta vez o caso iria ter um desfecho menos razoável, mais musculado, se eu não visse nada.
Todo o peso da acção estava sobre mim, dependia dos meus olhos.
Ou talvez não…
Ou nada havia, porque nada havia para ver ou eu não conseguia ver a grande Base da Frelimo que, talvez, sobrevoávamos.
Havia 50% de probabilidades de eu estar a decidir a sorte daquele indefeso homem praticamente encostado a mim, que nunca disse uma palavra, que nunca manifestou qualquer sinal de medo ou pânico.
Limitava-se a dizer: “É ali, é ali” e nada mais.
Calmamente esperava a sua sorte e fazia o que achava que devia fazer.
Com alguma dignidade, o que ainda me deixava mais embatocado.
Sentia dentro de mim o que achava que aquele homem devia estar a sentir.
Era agora... ou eu passaria a desejar sair daquele avião, se um para-quedas houvesse...
- Agora vais MESMO dizer onde é!!! Ouviste!?
E era já um rugido ameaçador que o Capitão Valente fazia!
A ameaça bateu também em mim, olhando em desespero para o prisioneiro, que, no entanto, se mantinha, como sempre, imperturbável.
O Tó Mira Godinho volta a levar o DO 27 para lá, para onde nada havia que eu conseguisse ver.
Pouco depois, o homem volta a dizer-nos:
- É ali.
E aponta, como nas duas vezes anteriores, calmamente, exactamente para a mesma mancha de árvores.
Não se esqueçam que aquele homem não tinha as competências de um piloto habituado a voar com referências visuais de montes e vales visíveis lá de cima. Ele que combatia a pé, debaixo das árvores, tinha sido conduzido num pequeno avião àquele local. E 45 minutos depois, lá de cima, teria de indicar um objectivo escondido debaixo da mata. Nem para mim estava a ser fácil…
O Mira Godinho sobrevoa pela terceira vez aquele mesmo bocado de muitas árvores de folhas verdes...
Mas desta vez... de repente, as palhotas “apareceram”!
Como se as tivessem posto ali, de um momento para o outro, para eu as ver.
Vi umas três ou quatro e com aparentes sinais de vida.
Com caminhos arranjados e tudo, como se de um bairro se tratasse!
- É ali! É ali!
Sou eu, agora, que o digo para o Capitão Valente que memoriza rapidamente todas as referências à volta do objectivo que teria de conquistar ao inimigo, poucos dias depois.
Manteve-se imperturbável, como desde o primeiro minuto, o nosso passageiro forçado, o moçambicano prisioneiro, combatente da Frelimo.
Regressados à Base, Vila Cabral, havia que preparar a “Operação Marte”. A conquista da Base Provincial Gungunhana. Foi uma das operações mais significativas da guerra em Moçambique.
O Capitão Valente coordenou com o Comandante Roxo uma operação que teria na sua última etapa uma marcha a pé, a pé, de 4 dias seguidos, em pleno mato, no Niassa, noroeste de Moçambique.
Texto do louvor, da Portaria de 24
de Setembro de 1968
O Capitão Valente comandou uma força de dezanove Comandos divididos em três grupos que em conjunto com o Comandante Roxo, que tinha sob as suas ordens 26 milícias, todos moçambicanos, todos negros, iriam colocar-se em posições estratégicas em volta daquele grande objectivo militar da Frelimo.
Nessa altura apareceriam os aviões da Força Aérea para bombardear aquela importante Base, culminando então a operação com o ataque coordenado daqueles bravos combatentes.
Em Vila Cabral, nos dias que se seguiram, sempre rodeados de grande secretismo, tentámos organizar aquela pequena parte da conquista da Base que nos cabia fazer.
E como era eu quem sabia onde estava o objectivo, fui naturalmente designado o chefe de uma esquadrilha de 4 aviões. Um Sargento a comandar patentes superiores… Já estava habituado pelo que fiz no F-86 em Monte Real, na Base Aérea Nº5.
Eu era, afinal, sou, um Falcão!
Poucos dias antes soubemos qual seria o nosso dia “D", provavelmente no mesmo dia em que as forças terrestres foram colocadas pela Força Aérea em Nova Coimbra, 27 de Março de 1968.
Estes Comandos e as Milícias do Comandante Roxo, meteram-se a caminho do objectivo, a pé, no dia seguinte.
E enquanto aqueles homens caminhavam no meio da mata, nós, pilotos da Força Aérea, só esperávamos com vontade e ansiedade pelo dia em que fossemos chamados a cumprir o que nos competia na execução de tão importante Objectivo.
E no último dia de Março tivemos a confirmação da data do ataque: o dia seguinte, 1 de Abril de 1968.
Vila Cabral, que hoje se chama Lichinga, fica a 1500 metros de altitude, num vasto planalto pejado de montes, vales e densas floresta. Ali perto, a Oeste, 50km em linha recta, fica o grande Lago Niassa.
O tempo, a meteorologia, é o típico de um planalto. Nem sempre está mau tempo no topo como está nos vales ali à volta. Mas muitas vezes o planalto fica coberto de denso nevoeiro, mas os vales em redor, não.
O dia 1 de Abril de 1968, em Vila Cabral, acordou com uma espessa camada de nuvens baixas, tão baixas como a altura das nossas rasteiras casernas de um só piso. Um avião, mal descolasse, ficava a voar às cegas dentro daquela concentração de humidade que não parecia nuvem nem era, certamente nevoeiro.
Descolar assim…
Pelo meu trajecto na Força Aérea até aquele dia, eu era o piloto com mais formação técnica de todos os meus camaradas presentes naquela Base. Oficiais ou Sargentos. Ninguém tinha ali, voado aviões a jacto a não ser eu.
Fizera o curso de T6 na excelente escola da força Aérea Espanhola da Base Aérea de Matacán, em Salamanca, 5 anos antes.
Fizera dois cursos de voo por instrumentos, seguidos, em aviões a jacto T-33 por uma birra de um Comandante de Base que achou que eu não podia voar F-86 por não estar credenciado para voar aqueles aviões em condições meteorológicas marginais. Estava, mas faltava o documento que por qualquer razão não me tinha sido dado. Após o 2º curso, um desperdício de dinheiro para os contribuintes, lá recebi a Carta Verde de Voo por instrumentos que me habilitava a voar em condições meteorológicas no limite, no mais evoluído avião da Força Aérea da altura. O equivalente, hoje, ao F-16. ( Roo-me de inveja por já não o poder voar...)
Com este palmarés sentia-me perfeitamente à vontade para descolar, naquela complicada manhã.
De início não tive a noção das dificuldades que os meus camaradas estariam a sentir em descolar naquele dia.
A elite de combate contra-guerrilha em Moçambique, estava à espera, naquele preciso momento, que os aviões da Força Aérea bombardeassem, daí a uma hora, um dos objectivos mais importantes de toda a guerra naquela Província Ultramarina.
Eu era o responsável pela missão, mas não conseguia convencer os meus outros camaradas a descolar naquelas condições, os aviões carregados de bombas, o Capitão Valente e os seus Comandos à espera. E o Comandante Roxo e os seus milicianos negros também.
Bem lhes disse que aquilo que nos cobria eram nuvens baixas, ok, muito baixas mesmo, que no nosso regresso da missão se teriam dissipado. A nossa missão era importante e poderíamos estar a pôr em perigo a vida de camaradas do Exército e Milicias do Comandante Roxo.
Nada. Nenhum se condoeu.
Na hora limite da partida, era agora ou nunca, perguntei-lhes-lhes:
.............
- “Ok, vou eu sozinho”!
E meti-me no meu avião e preparei tudo para descolar com o auxílio sempre fiel do meu Camarada Mecânico de Manutenção naquele dia. Gente competente em quem confiávamos a vida sem a mínima dúvida.
Quando estava quase a sair da placa da Base para a pista reparei que havia muita agitação no local.
Todos os outros meus camaradas escalados superiormente para aquela missão corriam para os aviões que lhes estavam atribuídos.
Rolei pelo taxyway lentamente de modo a que todos pudessem apanhar-me antes de eu descolar.
Não queria perder ninguém à descolagem nem que ninguém se perdesse logo a seguir. E queria que me imitassem na maneira de sair dali sem perigo que eu mentalmente arquitectara.
Quando todos estavam atrás, mas juntos, de mim, pedi à Torre, da Aeronáutica Civil, autorização para descolarmos.
A descolagem era feita por um avião de cada vez.
Assim que descolei, deixei-me ficar a rasar a pista, por baixo da espessa camada de nuvens, a ver, ao Sol, a base de um monte a quilómetros de distância, o trem de aterragem recolhido e à espera que os outros fizessem o mesmo.
Eu sabia que eles tinham todas as capacidades para o fazer. De outro modo não teria arriscado.
E assim que o planalto começou a transformar-se num declive em direcção ao vale ensolarado, baixei o nariz do avião e continuei por ali abaixo, fora das nuvens, reduzindo a velocidade para que todos pudessem aproximar-se do meu avião.
Quando nos juntámos, como prémio por se ter conjurado o problema da falta de visibilidade vertical, as nuvens desapareceram, como que por magia. E ficámos a voar sob um Sol esplendoroso, felizes por termos conseguido fazê-lo e estarmos, finalmente, a cumprir o nosso objectivo há tanto tempo esperado. Que era o que todos queríamos, afinal.
Íamos a caminho de poder colaborar com os melhores Combatentes, que nos esperavam, numa delicada missão não isenta de perigos, mas como qualquer outra, para nós.
Era para isso que ali estávamos e naqueles momentos era a pensar naqueles homens que conduzíamos em sua direcção, aqueles aviões com todas as bombas possíveis.
Eu sabia que o Capitão Valente e o Comandante Roxo deveriam estar, naquele preciso momento, a consultar os seus relógios. Faltavam exactamente 45 minutos para que a primeira bomba fosse lançada. Era exactamente o tempo que eu estimava levar até à Base da Frelimo cuja localização aquele prisioneiro me indicara.
Foram 45 minutos de silêncio nos rádios com receio de que a Frelimo tivesse capacidade de ouvir as nossas comunicações e deixar tudo a perder, pondo em risco a nossa dissimulada tropa no terreno, tão perto que eles estavam do inimigo, com toda a certeza.
Ao fim de meia hora vejo aquela mancha da floresta que me enganara e continuo a voar numa trajectória que nos afastaria do objectivo.
Aqueles barulhentos aviões eram detectados no chão uns 15 minutos antes de qualquer aproximação, em linha recta, por quem os ouvisse.
Assim, tentei fazer uma manobra de diversão e só no último minuto é que apontei o avião, ainda em linha de voo, ao objectivo que ainda não via, mas tinha gravado na memória a posição exacta.
Tudo corria bem quando ouço na rádio uma voz um pouco desmaiada, que dizia. “Não entrem! Não entrem”.
Situação muito estranha já que normalmente havia imensas dificuldades em conseguirmos comunicar com os rádios do Exército.
Só podia significar “Não bombardeiem o objectivo”.
Estariam os Comandos e a Milícia já no aldeamento e como tal correriam o risco de serem bombardeados por nós?
Foi breve a minha hesitação. De modo algum aqueles profissionais da guerra, altamente competentes e disciplinados, nunca, NUNCA! poderiam ter tomado posições que não estivessem no plano de operações, pondo em risco a vida de todos eles, se estivessem no local errado na hora planeada para o bombardeamento começar.
O que era, nunca o soube, mas não me impediu de cumprir com perfeição o que nos encomendaram fazer. Ignorei aquela desconhecida voz de comando.
Para os mais susceptíveis e pacifistas que estejam a ler este episódio verídico da Guerra do Ultramar, saibam que nunca tive problemas em executar estas missões de bombardeamento ou tiro com rockets ou metralhadoras.
(Vejam aqui, a propósito, esta história deste blogue: O meu Inimigo vestido de Branco")
Pelo que antes vos disse, 15 minutos são muitos minutos numa vida em perigo. E ninguém que ouvisse, em pleno mato, um avião a aproximar-se ficaria na cama à espera que não fosse nada. Eles sabiam o que aquele barulho poderia significar. E um quarto de hora é tempo suficiente para qualquer pessoa se afastar bastante, em segurança.
As palhotas ficavam, obviamente, destruídas, mas foram muitos, muitos os bombardeamentos que fiz em que, em vez de ver o pequeno rebentamento da bomba que deixara cair exactamente no centro da palhota, o que assistia era ao fantástico rebentamento de um grande paiol carregado de armas, balas, minas anti carro e anti pessoal (as que decepavam pernas e braços aos nossos soldados) e tudo o mais que ia pelos ares em fortes explosões, muitas luzes tremelicantes de várias coisas a explodir ao mesmo tempo e muito fumo, também.
E nesses momentos os ares, através dos rádios dos nossos aviões, enchiam-se de gritos de alegria por termos conseguido minorar um problema que se poria dias depois aos nossos jovens Camaradas de armas, que combatiam lá em baixo.
Voltando ao episódio do nosso ataque à Base da Frelimo, identificadas palhotas que dias antes tinha visto com tanta dificuldade, inicio o bombardeamento, sinalizando assim aos meus camaradas a posição que deviam destruir.
Largadas todas as bombas, sem nenhuma resistência da parte do inimigo, regressámos a Vila Cabral.
Como eu previra, estava um fim de manhã radioso. Nem uma nuvem.
Fizemos as boas aterragens do costume…
Missão cumprida. E bem cumprida!
Ou talvez não…
No rescaldo da Operação Marte fui informado que a Força Aérea tinha falhado o alvo.
Falhado o alvo, quem, eu!?
Passo a explicar, para defesa das nossas capacidades de colocar qualquer bomba exactamente em cima de qualquer objectivo, por mais pequeno que fosse.
Acertámos e obviamente destruímos todas as palhotas que vimos. E foram muitas. Mas…
Aquilo que eu conseguira ver quando o prisioneiro nos indicara o sítio, era realmente um aldeamento modelo, com arruamentos e casas que até tinham, algumas, um jardinzito frente à porta, como mais tarde me informaram.
Só que era exactamente o que eles queriam que eu visse…
O aldeamento militar, a Base Gungunhana, ficava um pouco mais afastada, extraordinariamente bem dissimulada. Foi esse alvo que eu falhei no bombardeamento, eu e todos os que tiveram de me seguir.
Mas também ninguém viu mais nada…
Nunca tirei a limpo se os Comandos, que tinham a responsabilidade da Operação, sabiam da existência daquele falso alvo, mesmo assim tão bem camuflado.
Eles estavam colocados, à nossa espera, de modo a que, após bombardearmos a Base que eles cercavam, a 500 metros de distância, sem serem apercebidos, atacassem de imediato evitando-se assim baixas nas nossas forças, com o inimigo em fuga e certamente com muitos deles assim abatidos de surpresa.
Mas não. Ouviram-nos bombardear o que a Frelimo queria que atacássemos, e só depois disso puderam dar início á operação que tão bem fora planeada, após termos bombardeado o alvo errado.
Sem nós termos causado o mínimo dano à base do inimigo.
Ele há dias assim...
No entanto, como em tudo na vida, há males que vêm por bem. Apesar de tudo não houve baixas a lamentar nos nossos homens. A Base foi tomada sem grandes sobressaltos.
Os Comandos do Capitão Valente e as Milícias do Comandante Roxo causaram várias baixas aos inimigos de então. Hoje somos todos, de ambos os lados daquela estúpida guerra, Ex-Combatentes. Pretos e brancos, de ambos os lados também.
Há males que vêm por bem quer, na verdade, dizer que se tivesse havido o bombardeamento no alvo certo, aqueles bravos Combatentes não teriam capturado quase 20 toneladas de material de guerra, de todo o tipo, incluindo as antiaéreas que se suspeitava que existissem!
(Da Portaria de 24 de Setembro de 1968)
A maior apreensão de material bélico da guerra em Moçambique.
(Da Portaria de 24 de Setembro de 1968)
Mas uma guerra é uma guerra. Mata-se e morre-se. E tudo pode acontecer a qualquer momento.
Meses depois, em Agosto, no regresso da sua Unidade a Vila Cabral após uma outra acção de combate, uma coluna de viaturas militares de carga, combate e transporte de tropas, tendo saído de Metangula, a grande base dos Fuzileiros no Lago Niassa, caminhava lentamente em direcção à bifurcação Metangula-Nova Coimbra.
A Berliet da frente era conduzida pelo Capitão Valente e a seu lado seguia o Alferes António Calvinho oficial do QP, tirocinante da AM.
Daquela coluna de viaturas militares fazia também parte o Alferes Diniz de Almeida, o Comandante do RALIS no 11 de Março de 1975.
Circulavam no momento num troço da estrada que era conhecido como o “Caracol de Maniamba”, a cerca de 800 metros daquele bifurcação Metangula-Nova Coimbra.
A conversa seria certamente animada e a descontracção também, dado que se afastavam da zona mais problemática de acção da Frelimo no Niassa.
Nunca poderiam ter visto, ainda que com muita atenção, mesmo no enfiamento do rodado das viaturas, uns metros mais à frente, um pouco enterrada no chão da picada, muito bem dissimulada, aquela potente mina anticarro, reforçada (com fósforo)...
Que deflagrou, com enorme estrondo, debaixo da Berliet, envolvendo-a imediatamente em chamas atiçadas pelo fósforo incorporado na mina.
Toda a gente das outras viaturas correu em socorro dos ocupantes da Berliet da frente.
Exactamente nesse mesmo momento, o Furriel Miliciano Piloto Carlos Borges Ferreira, que viria a ser meu colega, anos depois, na TAP como Comandante, voava “sobre a coluna da 4ª quando aconteceu o rebentamento”, contou-me.
Vítima de um poderoso artefacto que tantas vidas tirou entre os nossos Combatentes. Tantos homens mutilou para o resto das suas vidas. A tantos deixou sequelas no corpo e na alma de um segundo para o outro. Eram uma pessoa e num breve relâmpago, com um fortíssimo estrondo, passaram a ser outra.
Ou, simplesmente, deixaram de ser.
Foi no dia 11 de Agosto de 1968.
O Capitão Valente morreu na Berliet em chamas, completamente destruída e o Alferes António Calvinho sofreu graves queimaduras no corpo, com fósforo, especialmente nos membros inferiores e na cara.
Terminava, assim, a vida de mais um Combatente, entre tantos e tantos milhares.
E um outro homem tornava-se, num repente, num Deficiente das Forças Armadas.
Daqueles a quem nem sempre foram prestadas as devidas obrigações.
De uma Pátria que por força de querer esquecer uma guerra, um regime ditatorial, tanto se afastou e tão de pressa, tão de pressa, que muitas vezes se esqueceu de levar consigo estes homens. Deixou-os. Por aí.
Um incómodo. Uma grande despesa para o Orçamento. Uma chatice para o bom nome do Estado Português "lá fora".
Homens que por terem optado por combater e não desertar, foram condenados ao esquecimento.
A maior parte, refiro-me aos soldados, completamente desconhecedores de regimes políticos, lá na aldeia onde nasceram, onde todos, esses jovens, nada mais conheciam, mesmo sabendo ler e escrever, do que aquilo que viam e ouviam à sua volta. Sem televisão, sem telefones fixos, sem estradas. E mesmo assim foram condenados por terem combatido. E ser deficiente passou, quase, a ser um problema só deles. Famílias inteiras a cuidar de homens acabados, física e mentalmente.
Sem recursos.
Nem dinheiro nem Saúde.
Outros houve, com mais cultura, muito mais, e que tendo passado pelo mesmo, resolveram, por exemplo, escrever livros carregados de tragédia, a tragédia dos outros, seus estropiados camaradas. Episódios terríveis que carregarão consigo até ao fim dos seus dias.
Mas estas histórias de guerra, feitas por homens de razões opostas, são isso mesmo. Histórias de Homens, homens, gente de carne e espírito, mas de alma também. Homens que num determinado momento passam tormentos inimagináveis para o comum dos mortais.
E que muitas vezes se perdem uns dos outros na voragem da vida.
Muitos conseguem juntar-se em convívios animados onde se recordam momentos que desejariam não ter vivido. Mas outros momentos houve que comemoram por ter valido a pena ser um homem. Por actos de bravura, de abnegação ou simplesmente de sã camaradagem.
Mas também acontecem encontros que nos deixam perdidos, baralhados.
Como é possível!?
Mais de 30 anos depois destes tristes acontecimentos, o Carlos Borges Ferreira, já Comandante na TAP, num e-mail que me mandou disse-me que, um dia, foi “levar um carro para revisão em Alfragide. Regressei à TAP de táxi”.
Nesta fotografia, sentados num T-6 estão, da esq. para a dtª, o Major Piloto Aviador Mantovani (abatido no dia 6 de Abril de 1973 na Guiné por um missil Strela) o ex-Presidente da República General Ramalho Eanes, o Tenente Piloto Aviador Malaquias (abatido pouco tempo depois desta fotografia ter sido tirada, por fogo antiaéreo, no dia 22 de Outubro de 1967 ) e o Alferes Piloto Aidos
E 49 anos depois...
Em 2017, por se terem agravado as consequências do rebentamento daquela bomba de fósforo, em 1968, o Coronel António Calvinho foi sujeito à amputação de uma perna.
a Medalha de Prata de Valor Militar com palma.
Ao lado direito a Cruz de Guerra com que já tinha sido agraciado
Alguns sites que consultei:
http://ultramar.terraweb.biz/CapMilArtCMD_HoracioFranciscoMartinsValente_brevissima_resenha_biografica.htm
http://ultramar.terraweb.biz/CapMilArtCMD_HoracioFranciscoMartinsValente_Medalha_de_Prata_de_Valor%20Militar_e_Torre_e_Espada.htm
http://ultramar.terraweb.biz/CapMilArtCMD_HoracioFranciscoMartinsValente.htm
http://associacaocomandos.pt/noticias/category/companhias/
https://www.esquerda.net/artigo/antonio-calvinho-adfa-assumiu-se-como-forca-justa-das-vitimas-de-uma-guerra-injusta/61342
http://www.adfa-portugal.com/jornal_elo/2017/03/Elo_mar_2017.pdf
Modéstia à parte, eu era considerado um elemento que via toda as palhotas que houvesse debaixo de qualquer mata. Tinha algumas qualidades para tal e normalmente saía-me bem…
A Base da Frelimo, que o prisioneiro teria que me indicar a posição exacta, era a Base Provincial Gungunhana. A “Inteligência Militar" (basicamente agentes da PIDE) havia descoberto que se iria dar ali uma importante reunião das chefias da Frelimo. Era preciso tomar a Base naquele dia e com alguma sorte capturar quadros superiores do inimigo.
O secretismo era, pois, muito, muito grande e nós nada podíamos comentar com ninguém o que iríamos fazer.
Descolados de Vila Cabral num DO27, voámos durante 45 minutos sobre montes e vales.
Um DO-27 |
O prisioneiro sempre imperturbável, sobrevoando florestas densamente cobertas de grandes árvores, em direcção a um objectivo difícil de encontrar mesmo para pilotos muito batidos, como todos nós éramos naquela zona.
Fiquei com uma enorme admiração por aquele prisioneiro, provavelmente um Comando da Frelimo, por aquilo que foi capaz de fazer, bem entendido, sob prisão.
Ao fim desse tempo, 45 minutos, na zona que ele já tinha, em terra, apontado numa carta militar, na área do Monte Cissindo, no Lunho, o Capitão Valente pergunta-lhe:
- A Base é aonde? Aponta lá o sítio!
Estávamos a uns 1000 pés sobre o terreno num avião que voava lentamente, a 90 nós.
Nunca falámos nisso, acho eu agora, mas intuímos que as antiaéreas, se as houvesse (e havia mesmo!) não iriam disparar porque eles não quereriam denunciar a importância do local que supunham que nós não conhecêssemos.
O prisioneiro olhou calmamente para baixo, varreu os olhos numa e noutra direcção e com serenidade, como quem sabe muito bem o que está a fazer, foi o que me pareceu, apontou para um ponto, no meio de milhares de árvores cerradas umas contra as outras, braço esticado e dedo indicador em riste e disse:
- É ali.
O Tó Mira Godinho leva o DO 27 para aquela posição e eu olho, com toda acuidade possível, para a base daquelas enormes árvores, tentando fixar o olhar, metro a metro, ao longo da mata, numa qualquer coloração diferente do verde acastanhado das folhas, que era tudo o que eu conseguia ver
Mas o que eu via mesmo eram árvores. Só árvores. Muitas árvores. Não via, sequer, chão nenhum!
Naquela breve passagem à vertical do hipotético aldeamento, não vi sinal algum de o que quer que fosse senão a exuberante vegetação, ainda por cima num dia de Sol radioso.
Alguma coisa me escapara. Ou não…
Decide-se fazer uma segunda passagem e o Capitão Valente volta a perguntar, desta vez mais a sério, num tom de voz um bom bocado mais acima do que aquele que usara na primeira passagem.
- Ouve! A Base fica aonde, pá!
O prisioneiro volta a olhar tudo à volta e aponta, de novo, exactamente para o mesmo sítio.
- É ali.
Eram as mesmas árvores. A mesma mata cerrada! A mesma inexistência de nada que se visse senão milhões de lindíssimas folhas verdes… Ou pelo menos que eu conseguisse ver.
A sorte do prisioneiro, aparentemente, dependia de mim. Não era muito razoável que, havendo um aldeamento tão importante como as informações que os Estados Maiores tinham e o prisioneiro confirmara existir, eu não o conseguisse ver, nem mais ninguém a bordo daquele pequeno avião que, no entanto, sobrevoava uma importante Base da Frelimo equipada com 3 antiaéreas, como se veio a verificar dias depois.
O Tó Mira Godinho dá mais uma volta pela esquerda e volta a apontar, pela terceira vez consecutiva o nariz do avião para onde deveria estar a Base, para onde o prisioneiro, insistentemente, mas com toda a calma deste mundo, sem uma única palavra, comunicando com a ponta do dedo indicador da mão direita, nos sinalizava a posição.
Ou talvez não... Naquele momento tudo era possível. Quem teria razão?
Foi um grande stresse. Ao mesmo tempo, sentia uma enorme angústia e a sensação de não estar a conseguir, de estar a falhar, porque acreditava naquele indefeso homem que agia, com risco da sua integridade física, com a maior serenidade, sem perder a sua humanidade e como tal captando a minha simpatia para com ele.
São aqueles momentos em que percebemos que dali para a frente alguma coisa vai ter de mudar…
Todos nós lá atrás, os quatro, percebemos que desta vez o caso iria ter um desfecho menos razoável, mais musculado, se eu não visse nada.
Todo o peso da acção estava sobre mim, dependia dos meus olhos.
Ou talvez não…
Ou nada havia, porque nada havia para ver ou eu não conseguia ver a grande Base da Frelimo que, talvez, sobrevoávamos.
Havia 50% de probabilidades de eu estar a decidir a sorte daquele indefeso homem praticamente encostado a mim, que nunca disse uma palavra, que nunca manifestou qualquer sinal de medo ou pânico.
Limitava-se a dizer: “É ali, é ali” e nada mais.
Calmamente esperava a sua sorte e fazia o que achava que devia fazer.
Com alguma dignidade, o que ainda me deixava mais embatocado.
Sentia dentro de mim o que achava que aquele homem devia estar a sentir.
Era agora... ou eu passaria a desejar sair daquele avião, se um para-quedas houvesse...
- Agora vais MESMO dizer onde é!!! Ouviste!?
E era já um rugido ameaçador que o Capitão Valente fazia!
A ameaça bateu também em mim, olhando em desespero para o prisioneiro, que, no entanto, se mantinha, como sempre, imperturbável.
O Tó Mira Godinho volta a levar o DO 27 para lá, para onde nada havia que eu conseguisse ver.
Pouco depois, o homem volta a dizer-nos:
- É ali.
E aponta, como nas duas vezes anteriores, calmamente, exactamente para a mesma mancha de árvores.
Não se esqueçam que aquele homem não tinha as competências de um piloto habituado a voar com referências visuais de montes e vales visíveis lá de cima. Ele que combatia a pé, debaixo das árvores, tinha sido conduzido num pequeno avião àquele local. E 45 minutos depois, lá de cima, teria de indicar um objectivo escondido debaixo da mata. Nem para mim estava a ser fácil…
O Mira Godinho sobrevoa pela terceira vez aquele mesmo bocado de muitas árvores de folhas verdes...
Mas desta vez... de repente, as palhotas “apareceram”!
Como se as tivessem posto ali, de um momento para o outro, para eu as ver.
Vi umas três ou quatro e com aparentes sinais de vida.
Com caminhos arranjados e tudo, como se de um bairro se tratasse!
- É ali! É ali!
Sou eu, agora, que o digo para o Capitão Valente que memoriza rapidamente todas as referências à volta do objectivo que teria de conquistar ao inimigo, poucos dias depois.
Manteve-se imperturbável, como desde o primeiro minuto, o nosso passageiro forçado, o moçambicano prisioneiro, combatente da Frelimo.
Regressados à Base, Vila Cabral, havia que preparar a “Operação Marte”. A conquista da Base Provincial Gungunhana. Foi uma das operações mais significativas da guerra em Moçambique.
O Capitão Valente coordenou com o Comandante Roxo uma operação que teria na sua última etapa uma marcha a pé, a pé, de 4 dias seguidos, em pleno mato, no Niassa, noroeste de Moçambique.
Salienta-se, ainda, num acto de justiça que se impõe, a
maneira brilhante e extraordinária como conduziu a acção da 4ª Companhia de
Comandos na operação “Marte” de ataque à base provincial Gungunhana, para o
comando da qual se ofereceu voluntariamente, em virtude de todos os restantes
oficiais da companhia estarem feridos por acções do inimigo e acidentes em
operações e apesar de ele próprio se encontrar convalescente de um ferimento
recebido em combate.
O Capitão Valente comandou uma força de dezanove Comandos divididos em três grupos que em conjunto com o Comandante Roxo, que tinha sob as suas ordens 26 milícias, todos moçambicanos, todos negros, iriam colocar-se em posições estratégicas em volta daquele grande objectivo militar da Frelimo.
Nessa altura apareceriam os aviões da Força Aérea para bombardear aquela importante Base, culminando então a operação com o ataque coordenado daqueles bravos combatentes.
Em Vila Cabral, nos dias que se seguiram, sempre rodeados de grande secretismo, tentámos organizar aquela pequena parte da conquista da Base que nos cabia fazer.
E como era eu quem sabia onde estava o objectivo, fui naturalmente designado o chefe de uma esquadrilha de 4 aviões. Um Sargento a comandar patentes superiores… Já estava habituado pelo que fiz no F-86 em Monte Real, na Base Aérea Nº5.
Eu era, afinal, sou, um Falcão!
Poucos dias antes soubemos qual seria o nosso dia “D", provavelmente no mesmo dia em que as forças terrestres foram colocadas pela Força Aérea em Nova Coimbra, 27 de Março de 1968.
Estes Comandos e as Milícias do Comandante Roxo, meteram-se a caminho do objectivo, a pé, no dia seguinte.
Da esq para a dtª, Paixão, Baguinho, Gil e um desconhecido |
E enquanto aqueles homens caminhavam no meio da mata, nós, pilotos da Força Aérea, só esperávamos com vontade e ansiedade pelo dia em que fossemos chamados a cumprir o que nos competia na execução de tão importante Objectivo.
E no último dia de Março tivemos a confirmação da data do ataque: o dia seguinte, 1 de Abril de 1968.
Vila Cabral, que hoje se chama Lichinga, fica a 1500 metros de altitude, num vasto planalto pejado de montes, vales e densas floresta. Ali perto, a Oeste, 50km em linha recta, fica o grande Lago Niassa.
O tempo, a meteorologia, é o típico de um planalto. Nem sempre está mau tempo no topo como está nos vales ali à volta. Mas muitas vezes o planalto fica coberto de denso nevoeiro, mas os vales em redor, não.
O dia 1 de Abril de 1968, em Vila Cabral, acordou com uma espessa camada de nuvens baixas, tão baixas como a altura das nossas rasteiras casernas de um só piso. Um avião, mal descolasse, ficava a voar às cegas dentro daquela concentração de humidade que não parecia nuvem nem era, certamente nevoeiro.
De pé, junto aos aviões, víamos aldeias a quilómetros de distância, cheias de Sol, naquela faixa vertical com poucos metros de altura, entre a pista no planalto e a base daquela espessa concentração de humidade tornada quase preta por o Sol não a conseguir penetrar.
Descolar assim…
Pelo meu trajecto na Força Aérea até aquele dia, eu era o piloto com mais formação técnica de todos os meus camaradas presentes naquela Base. Oficiais ou Sargentos. Ninguém tinha ali, voado aviões a jacto a não ser eu.
Fizera o curso de T6 na excelente escola da força Aérea Espanhola da Base Aérea de Matacán, em Salamanca, 5 anos antes.
Fizera dois cursos de voo por instrumentos, seguidos, em aviões a jacto T-33 por uma birra de um Comandante de Base que achou que eu não podia voar F-86 por não estar credenciado para voar aqueles aviões em condições meteorológicas marginais. Estava, mas faltava o documento que por qualquer razão não me tinha sido dado. Após o 2º curso, um desperdício de dinheiro para os contribuintes, lá recebi a Carta Verde de Voo por instrumentos que me habilitava a voar em condições meteorológicas no limite, no mais evoluído avião da Força Aérea da altura. O equivalente, hoje, ao F-16. ( Roo-me de inveja por já não o poder voar...)
Com este palmarés sentia-me perfeitamente à vontade para descolar, naquela complicada manhã.
De início não tive a noção das dificuldades que os meus camaradas estariam a sentir em descolar naquele dia.
A elite de combate contra-guerrilha em Moçambique, estava à espera, naquele preciso momento, que os aviões da Força Aérea bombardeassem, daí a uma hora, um dos objectivos mais importantes de toda a guerra naquela Província Ultramarina.
Eu era o responsável pela missão, mas não conseguia convencer os meus outros camaradas a descolar naquelas condições, os aviões carregados de bombas, o Capitão Valente e os seus Comandos à espera. E o Comandante Roxo e os seus milicianos negros também.
Bem lhes disse que aquilo que nos cobria eram nuvens baixas, ok, muito baixas mesmo, que no nosso regresso da missão se teriam dissipado. A nossa missão era importante e poderíamos estar a pôr em perigo a vida de camaradas do Exército e Milicias do Comandante Roxo.
Nada. Nenhum se condoeu.
Na hora limite da partida, era agora ou nunca, perguntei-lhes-lhes:
- "Vamos ou não"?
.............
- “Ok, vou eu sozinho”!
E meti-me no meu avião e preparei tudo para descolar com o auxílio sempre fiel do meu Camarada Mecânico de Manutenção naquele dia. Gente competente em quem confiávamos a vida sem a mínima dúvida.
Quando estava quase a sair da placa da Base para a pista reparei que havia muita agitação no local.
Todos os outros meus camaradas escalados superiormente para aquela missão corriam para os aviões que lhes estavam atribuídos.
Rolei pelo taxyway lentamente de modo a que todos pudessem apanhar-me antes de eu descolar.
Não queria perder ninguém à descolagem nem que ninguém se perdesse logo a seguir. E queria que me imitassem na maneira de sair dali sem perigo que eu mentalmente arquitectara.
Quando todos estavam atrás, mas juntos, de mim, pedi à Torre, da Aeronáutica Civil, autorização para descolarmos.
A descolagem era feita por um avião de cada vez.
Assim que descolei, deixei-me ficar a rasar a pista, por baixo da espessa camada de nuvens, a ver, ao Sol, a base de um monte a quilómetros de distância, o trem de aterragem recolhido e à espera que os outros fizessem o mesmo.
Eu sabia que eles tinham todas as capacidades para o fazer. De outro modo não teria arriscado.
E assim que o planalto começou a transformar-se num declive em direcção ao vale ensolarado, baixei o nariz do avião e continuei por ali abaixo, fora das nuvens, reduzindo a velocidade para que todos pudessem aproximar-se do meu avião.
Quando nos juntámos, como prémio por se ter conjurado o problema da falta de visibilidade vertical, as nuvens desapareceram, como que por magia. E ficámos a voar sob um Sol esplendoroso, felizes por termos conseguido fazê-lo e estarmos, finalmente, a cumprir o nosso objectivo há tanto tempo esperado. Que era o que todos queríamos, afinal.
Íamos a caminho de poder colaborar com os melhores Combatentes, que nos esperavam, numa delicada missão não isenta de perigos, mas como qualquer outra, para nós.
Era para isso que ali estávamos e naqueles momentos era a pensar naqueles homens que conduzíamos em sua direcção, aqueles aviões com todas as bombas possíveis.
Eu sabia que o Capitão Valente e o Comandante Roxo deveriam estar, naquele preciso momento, a consultar os seus relógios. Faltavam exactamente 45 minutos para que a primeira bomba fosse lançada. Era exactamente o tempo que eu estimava levar até à Base da Frelimo cuja localização aquele prisioneiro me indicara.
Foram 45 minutos de silêncio nos rádios com receio de que a Frelimo tivesse capacidade de ouvir as nossas comunicações e deixar tudo a perder, pondo em risco a nossa dissimulada tropa no terreno, tão perto que eles estavam do inimigo, com toda a certeza.
Ao fim de meia hora vejo aquela mancha da floresta que me enganara e continuo a voar numa trajectória que nos afastaria do objectivo.
Aqueles barulhentos aviões eram detectados no chão uns 15 minutos antes de qualquer aproximação, em linha recta, por quem os ouvisse.
Assim, tentei fazer uma manobra de diversão e só no último minuto é que apontei o avião, ainda em linha de voo, ao objectivo que ainda não via, mas tinha gravado na memória a posição exacta.
Tudo corria bem quando ouço na rádio uma voz um pouco desmaiada, que dizia. “Não entrem! Não entrem”.
Situação muito estranha já que normalmente havia imensas dificuldades em conseguirmos comunicar com os rádios do Exército.
Só podia significar “Não bombardeiem o objectivo”.
Estariam os Comandos e a Milícia já no aldeamento e como tal correriam o risco de serem bombardeados por nós?
Foi breve a minha hesitação. De modo algum aqueles profissionais da guerra, altamente competentes e disciplinados, nunca, NUNCA! poderiam ter tomado posições que não estivessem no plano de operações, pondo em risco a vida de todos eles, se estivessem no local errado na hora planeada para o bombardeamento começar.
O que era, nunca o soube, mas não me impediu de cumprir com perfeição o que nos encomendaram fazer. Ignorei aquela desconhecida voz de comando.
Para os mais susceptíveis e pacifistas que estejam a ler este episódio verídico da Guerra do Ultramar, saibam que nunca tive problemas em executar estas missões de bombardeamento ou tiro com rockets ou metralhadoras.
(Vejam aqui, a propósito, esta história deste blogue: O meu Inimigo vestido de Branco")
Pelo que antes vos disse, 15 minutos são muitos minutos numa vida em perigo. E ninguém que ouvisse, em pleno mato, um avião a aproximar-se ficaria na cama à espera que não fosse nada. Eles sabiam o que aquele barulho poderia significar. E um quarto de hora é tempo suficiente para qualquer pessoa se afastar bastante, em segurança.
As palhotas ficavam, obviamente, destruídas, mas foram muitos, muitos os bombardeamentos que fiz em que, em vez de ver o pequeno rebentamento da bomba que deixara cair exactamente no centro da palhota, o que assistia era ao fantástico rebentamento de um grande paiol carregado de armas, balas, minas anti carro e anti pessoal (as que decepavam pernas e braços aos nossos soldados) e tudo o mais que ia pelos ares em fortes explosões, muitas luzes tremelicantes de várias coisas a explodir ao mesmo tempo e muito fumo, também.
E nesses momentos os ares, através dos rádios dos nossos aviões, enchiam-se de gritos de alegria por termos conseguido minorar um problema que se poria dias depois aos nossos jovens Camaradas de armas, que combatiam lá em baixo.
Voltando ao episódio do nosso ataque à Base da Frelimo, identificadas palhotas que dias antes tinha visto com tanta dificuldade, inicio o bombardeamento, sinalizando assim aos meus camaradas a posição que deviam destruir.
Largadas todas as bombas, sem nenhuma resistência da parte do inimigo, regressámos a Vila Cabral.
Como eu previra, estava um fim de manhã radioso. Nem uma nuvem.
Fizemos as boas aterragens do costume…
Missão cumprida. E bem cumprida!
Ou talvez não…
No rescaldo da Operação Marte fui informado que a Força Aérea tinha falhado o alvo.
Falhado o alvo, quem, eu!?
Passo a explicar, para defesa das nossas capacidades de colocar qualquer bomba exactamente em cima de qualquer objectivo, por mais pequeno que fosse.
Acertámos e obviamente destruímos todas as palhotas que vimos. E foram muitas. Mas…
Aquilo que eu conseguira ver quando o prisioneiro nos indicara o sítio, era realmente um aldeamento modelo, com arruamentos e casas que até tinham, algumas, um jardinzito frente à porta, como mais tarde me informaram.
Só que era exactamente o que eles queriam que eu visse…
O aldeamento militar, a Base Gungunhana, ficava um pouco mais afastada, extraordinariamente bem dissimulada. Foi esse alvo que eu falhei no bombardeamento, eu e todos os que tiveram de me seguir.
Mas também ninguém viu mais nada…
Nunca tirei a limpo se os Comandos, que tinham a responsabilidade da Operação, sabiam da existência daquele falso alvo, mesmo assim tão bem camuflado.
Eles estavam colocados, à nossa espera, de modo a que, após bombardearmos a Base que eles cercavam, a 500 metros de distância, sem serem apercebidos, atacassem de imediato evitando-se assim baixas nas nossas forças, com o inimigo em fuga e certamente com muitos deles assim abatidos de surpresa.
Mas não. Ouviram-nos bombardear o que a Frelimo queria que atacássemos, e só depois disso puderam dar início á operação que tão bem fora planeada, após termos bombardeado o alvo errado.
Sem nós termos causado o mínimo dano à base do inimigo.
Ele há dias assim...
No entanto, como em tudo na vida, há males que vêm por bem. Apesar de tudo não houve baixas a lamentar nos nossos homens. A Base foi tomada sem grandes sobressaltos.
Por meio de valorosa e verdadeiramente magistral
conduta, levou a sua unidade indetectada durante a aproximação até à distância
de 500 metros do objectivo através de uma região ocupada por população
controlada pelo inimigo, sentinelas e armadilhas, do que resultou a total
surpresa da operação, um dos factores primordiais do êxito obtido.
Ocupou no dispositivo do ataque o posto de maior
perigo, e, indiferente aos tiros do inimigo, com um reduzido grupo dos seus
homens, com rara decisão, audácia e valentia, entrou na base inimiga, que,
segundo as informações obtidas, deveria possuir cento e vinte elementos armados
e acoitar os chefes principais da subversão do Niassa.
(Da Portaria de 24 de Setembro de 1968)Os Comandos do Capitão Valente e as Milícias do Comandante Roxo causaram várias baixas aos inimigos de então. Hoje somos todos, de ambos os lados daquela estúpida guerra, Ex-Combatentes. Pretos e brancos, de ambos os lados também.
Há males que vêm por bem quer, na verdade, dizer que se tivesse havido o bombardeamento no alvo certo, aqueles bravos Combatentes não teriam capturado quase 20 toneladas de material de guerra, de todo o tipo, incluindo as antiaéreas que se suspeitava que existissem!
Podem classificar-se de formidáveis e excepcionais os
resultados desta acção, em que foram abatidos vinte e dois elementos inimigos
armados, entre os quais alguns de elevado nível dentro da subversão; capturado
todo o material de guerra do depósito base, entre o qual quarenta e quatro
armas automáticas e semi-automáticas, cento e sete granadas de canhão, de
morteiro, de lança-chamas e de mão, cento e dezanove minas anticarro e
antipessoal; destruído um depósito repleto de fardamento e calçado, e
capturados valiosíssimos documentos, entre os quais os do chefe provincial de
operações da Frelimo. Depois de ter comandado a total destruição da mais
importante base inimiga no sector, retirou com a sua unidade sem uma única
baixa.
(Da Portaria de 24 de Setembro de 1968)
A maior apreensão de material bélico da guerra em Moçambique.
Com as magníficas qualidades militares de firmeza,
decisão, rara abnegação, valentia e coragem anteriormente evidenciadas, com
grave risco de vida, em frente do inimigo e mais uma vez confirmadas neste valoroso
e distinto feito de armas em campanha, que constitui o mais severo golpe até
agora infligido ao inimigo no Norte de Moçambique, afirmou-se o Capitão Valente um
exemplo vivo de Chefe de indiscutível valor militar, que muito tem contribuído
para o bom êxito das operações realizadas e que muito honra as melhores
tradições das armas portuguesas, às quais veio acrescentar grande lustre e
glória.
Mas uma guerra é uma guerra. Mata-se e morre-se. E tudo pode acontecer a qualquer momento.
Meses depois, em Agosto, no regresso da sua Unidade a Vila Cabral após uma outra acção de combate, uma coluna de viaturas militares de carga, combate e transporte de tropas, tendo saído de Metangula, a grande base dos Fuzileiros no Lago Niassa, caminhava lentamente em direcção à bifurcação Metangula-Nova Coimbra.
A Berliet da frente era conduzida pelo Capitão Valente e a seu lado seguia o Alferes António Calvinho oficial do QP, tirocinante da AM.
Daquela coluna de viaturas militares fazia também parte o Alferes Diniz de Almeida, o Comandante do RALIS no 11 de Março de 1975.
Circulavam no momento num troço da estrada que era conhecido como o “Caracol de Maniamba”, a cerca de 800 metros daquele bifurcação Metangula-Nova Coimbra.
A conversa seria certamente animada e a descontracção também, dado que se afastavam da zona mais problemática de acção da Frelimo no Niassa.
Nunca poderiam ter visto, ainda que com muita atenção, mesmo no enfiamento do rodado das viaturas, uns metros mais à frente, um pouco enterrada no chão da picada, muito bem dissimulada, aquela potente mina anticarro, reforçada (com fósforo)...
Que deflagrou, com enorme estrondo, debaixo da Berliet, envolvendo-a imediatamente em chamas atiçadas pelo fósforo incorporado na mina.
Toda a gente das outras viaturas correu em socorro dos ocupantes da Berliet da frente.
O Borges Ferreira é o da esquerda |
Exactamente nesse mesmo momento, o Furriel Miliciano Piloto Carlos Borges Ferreira, que viria a ser meu colega, anos depois, na TAP como Comandante, voava “sobre a coluna da 4ª quando aconteceu o rebentamento”, contou-me.
Tendo-se apercebido do resultado do incidente, viu logo que
a coluna estaria em perigo, pois era normal os “turras” atacarem logo de
seguida, aproveitando o desnorte que sempre provocava tão graves incidentes. Principalmente porque impedia a movimentação das viaturas, já que o caminho ficava bloqueado com a imobilização da viatura da frente. E as estradas, ou picadas, não eram muito largas.
“Só pude descarregar as metralhadoras para a área adjacente
à estrada, onde poderiam estar elementos do IN”.
E acrescentou:
E acrescentou:
“Na minha caderneta de voo (onde os pilotos registam
todos os voos que fazem) figura como tendo sido no dia 10 de Agosto de 1968,
com o avião T-6, matriculado com o Nº 1753.
Mas pode ser erro de transcrição de quem fazia, depois, os
registos. Hipótese pouco provável.”
A Berliet acidentada ardia com fragor e quando lá chegaram o Capitão Horácio Valente já não dava sinais de vida, consumido pelas chamas que devoravam a Berliet, o que também tornava impossível o acesso ao seu corpo.
Vítima de um poderoso artefacto que tantas vidas tirou entre os nossos Combatentes. Tantos homens mutilou para o resto das suas vidas. A tantos deixou sequelas no corpo e na alma de um segundo para o outro. Eram uma pessoa e num breve relâmpago, com um fortíssimo estrondo, passaram a ser outra.
Ou, simplesmente, deixaram de ser.
Foi no dia 11 de Agosto de 1968.
O Capitão Valente morreu na Berliet em chamas, completamente destruída e o Alferes António Calvinho sofreu graves queimaduras no corpo, com fósforo, especialmente nos membros inferiores e na cara.
Diniz de Almeida |
O Alferes Diniz de Almeida encarregou-se dos preparativos da evacuação do Alferes António Calvinho, já que ao Capitão Valente ninguém se podia chegar, envolto no violento fogo que continuava a consumir por completo a Berliet.
Terminava, assim, a vida de mais um Combatente, entre tantos e tantos milhares.
E um outro homem tornava-se, num repente, num Deficiente das Forças Armadas.
Daqueles a quem nem sempre foram prestadas as devidas obrigações.
De uma Pátria que por força de querer esquecer uma guerra, um regime ditatorial, tanto se afastou e tão de pressa, tão de pressa, que muitas vezes se esqueceu de levar consigo estes homens. Deixou-os. Por aí.
Um incómodo. Uma grande despesa para o Orçamento. Uma chatice para o bom nome do Estado Português "lá fora".
Homens que por terem optado por combater e não desertar, foram condenados ao esquecimento.
A maior parte, refiro-me aos soldados, completamente desconhecedores de regimes políticos, lá na aldeia onde nasceram, onde todos, esses jovens, nada mais conheciam, mesmo sabendo ler e escrever, do que aquilo que viam e ouviam à sua volta. Sem televisão, sem telefones fixos, sem estradas. E mesmo assim foram condenados por terem combatido. E ser deficiente passou, quase, a ser um problema só deles. Famílias inteiras a cuidar de homens acabados, física e mentalmente.
Sem recursos.
Nem dinheiro nem Saúde.
Outros houve, com mais cultura, muito mais, e que tendo passado pelo mesmo, resolveram, por exemplo, escrever livros carregados de tragédia, a tragédia dos outros, seus estropiados camaradas. Episódios terríveis que carregarão consigo até ao fim dos seus dias.
Mas estas histórias de guerra, feitas por homens de razões opostas, são isso mesmo. Histórias de Homens, homens, gente de carne e espírito, mas de alma também. Homens que num determinado momento passam tormentos inimagináveis para o comum dos mortais.
E que muitas vezes se perdem uns dos outros na voragem da vida.
Muitos conseguem juntar-se em convívios animados onde se recordam momentos que desejariam não ter vivido. Mas outros momentos houve que comemoram por ter valido a pena ser um homem. Por actos de bravura, de abnegação ou simplesmente de sã camaradagem.
Mas também acontecem encontros que nos deixam perdidos, baralhados.
Como é possível!?
Mais de 30 anos depois destes tristes acontecimentos, o Carlos Borges Ferreira, já Comandante na TAP, num e-mail que me mandou disse-me que, um dia, foi “levar um carro para revisão em Alfragide. Regressei à TAP de táxi”.
Normalmente pouco falador com os condutores, Borges Ferreira
disse-me que:
“nesse dia lá falei com ele e a conversa apareceu".
“nesse dia lá falei com ele e a conversa apareceu".
"África, Moçambique, comissão militar, em que anos,
até o condutor chegar a dizer que foi dos Comandos”.
- Em que Companhia? Perguntou o Borges Ferreira ao condutor
- Na 4ª, foi a resposta do homem
- Do saudoso Cap Valente?
- Sim, como sabe? E vira-se para trás, admirado, pondo
em perigo até a condução daquele táxi.
- Lembra-se que na altura daquela tragédia eram sobrevoados
por um T6 que vos tinha lançado correio? Perguntou-lhe o Borges Ferreira.
- Lembro sim, e graças a ele a situação não foi pior porque
o piloto desbaratou os inimigos que se preparavam para nos atacar. Mas como
sabe isso?
- O Piloto era eu!
O condutor parou o carro e veio dar-me um grande abraço!
Chorava…
E eu chorei também.
Memorias amargas e doces.
São momentos como estes, de profunda humanidade, que nos fazem sentir a força que se pode gerar entre os homens, quando lhes dá para existirem com dignidade.
Momentos únicos, ímpares, irrepetíveis, que seguirão connosco até ao fim dos nossos dias.
O agora Coronel António Calvinho, que sobreviveu ao incidente mas com graves ferimentos, reflecte bem o que
tem acontecido a tantos Deficientes das Forças Armadas.
O Alferes Calvinho viria a ser um Militar de Abril, fundador e ex-presidente da direcção da ADFA, a Associação dos Deficientes das Forças Armadas.
Em 1968, o então Capitão
Ramalho Eanes comandou o Batalhão de
Caçadores 1889, em Tenente Valadim, no Niassa, Norte de Moçambique. O Alferes Calvinho fazia
parte deste batalhão, agora na sua 2ª comissão.
Nesta fotografia, sentados num T-6 estão, da esq. para a dtª, o Major Piloto Aviador Mantovani (abatido no dia 6 de Abril de 1973 na Guiné por um missil Strela) o ex-Presidente da República General Ramalho Eanes, o Tenente Piloto Aviador Malaquias (abatido pouco tempo depois desta fotografia ter sido tirada, por fogo antiaéreo, no dia 22 de Outubro de 1967 ) e o Alferes Piloto Aidos
E 49 anos depois...
Em 2017, por se terem agravado as consequências do rebentamento daquela bomba de fósforo, em 1968, o Coronel António Calvinho foi sujeito à amputação de uma perna.
O General Ramalho Eanes visitou o Coronel António Calvinho no Lar
Militar, em Lisboa, no dia 21
de Fevereiro 2017, acompanhado pelo presidente da Direção Nacional da ADFA, José Arruda, e pela enfermeira diretora Teresa Mendonça, depois de ter sido informado do agravamento
da deficiência de guerra do seu antigo
alferes miliciano. (Da revista ELO da ADFA, Março de 2017)
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O Capitão Valente está sepultado em Vila do Conde,
no cemitério de Santa Maria.
Horácio Francisco Martins Valente
já agraciado com:
a Medalha de Prata de Valor Militar com palma.
Ao lado direito a Cruz de Guerra com que já tinha sido agraciado
A título póstumo foi agraciado com
o grau de
Oficial da Ordem da Torre e Espada,
do Valor, Lealdade e Mérito.
Até um dia Capitão Valente!
Espero que continue bem, meu Coronel António Calvinho!
Nota final: sobre Metangula leiam aqui a fantástica história do transporte, por terra, do Oceano Índico ao Lago Niassa, das lanchas da Marinha. Uma epopeia!
Nota 1: os meus agradecimentos ao Portal dos Veteranos da Guerra do Ultramar, Terraweb pelos dados que me forneceram por e-mail.
Nota 2: os meus agradecimentos à Associação de Comandos pelos dados que me forneceram por e-mail.
Nota 3: obrigado Litos Borges Ferreira pelo excelente momento de confraternização que compartilhaste comigo e com todos os que lerem esta história
Nota 3: obrigado Litos Borges Ferreira pelo excelente momento de confraternização que compartilhaste comigo e com todos os que lerem esta história
Nota final: sobre Metangula leiam aqui a fantástica história do transporte, por terra, do Oceano Índico ao Lago Niassa, das lanchas da Marinha. Uma epopeia!
Alguns sites que consultei:
http://ultramar.terraweb.biz/CapMilArtCMD_HoracioFranciscoMartinsValente_brevissima_resenha_biografica.htm
http://ultramar.terraweb.biz/CapMilArtCMD_HoracioFranciscoMartinsValente_Medalha_de_Prata_de_Valor%20Militar_e_Torre_e_Espada.htm
http://ultramar.terraweb.biz/CapMilArtCMD_HoracioFranciscoMartinsValente.htm
http://associacaocomandos.pt/noticias/category/companhias/
https://www.esquerda.net/artigo/antonio-calvinho-adfa-assumiu-se-como-forca-justa-das-vitimas-de-uma-guerra-injusta/61342
http://www.adfa-portugal.com/jornal_elo/2017/03/Elo_mar_2017.pdf
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