
Transcrição integral de um artigo
publicado no Jornal "Expresso",
no suplemento "Idéias", no dia
20 de Junho de 2025
Rubrica:
<<O Mito Lógico>>
Da autoria de:
Luis Pedro Nunes
"Em tempos em que se reescreve a história
deixem-me contar a de um homem.
Falei dele há mais de uma década.
Mas desta vez tive de mencionar a sua religião,
algo que então não era relevante.
Necessito de
vos contar a história de Mamadu Camará, toda certinha. Fi-lo neste jornal pelo
40º aniversário da Independência da Guiné-Bissau, há mais de 10 anos. E aí
escrevi sobre o massacre do Porto de Pidjiguiti, em 1963, sobre o homem que
disparou o primeiro míssil Terra ar que abateu o Fiat português. Sobre muitos
guerrilheiros do PAIGC que combateram pela libertação do seu país.
Mas o comando Camará voltou me à memória quando se começou a debater esta coisa do “português puro”. A Guiné-Bissau é muito interessante do ponto de vista histórico: era um território pequeno e pantanoso, não havia praticamente colonos e a guerra estava totalmente perdida desde que o PAIGC tinha na sua posse os mísseis russos e as minas chinesas. Havia partes do território inacessíveis à tropa portuguesa. Foi na Guiné que se formaram os Capitães de Abril - e foi aí que se compreendeu que a guerra era impossível de vencer. Spínola tinha essa noção e por isso decidira escrever o seu famoso livro “Portugal e o Futuro”.
Fora ele que
decidira recrutar tropas indígenas, os comandos africanos, liderados por
brancos - destaco Matos Gomes, falecido recentemente -, e eram esses comandos
que faziam “missões impossíveis“. Em 1973 já a Guiné-Bissau declarava a sua
Independência unilateral em Medina do Boé, e a situação era de tal forma má que
Spínola ordenou daí a retirada, o que implicou uma travessia de todos os homens
e material pelo Rio Corubal - e a uma tragédia que levou a vida de 47 militares
afogados no Rio. E vem a independência.
Luis Pedro Nunes
Ficou acordado que não haveria perseguição aos homens que tinham combatido por Portugal. Tanto em Angola como em Moçambique, as guerras civis que se seguiram tiveram a particularidade de “assimilar” estes combatentes num dos lados. Na Guiné, não.
Conheci Mamadu Camará em Bafatá. Um homem tranquilo, suave.
Há dias, cometi um erro a dizer que ele tinha andado fugido no pós Independência. Releio os meus textos de 2014 e constato que o confundi com outro, dos muitos que conheci. Quando tinha estado no Corubal apareceu um homem alto e magrinho: “Sou fuzileiro especial português, Silai, curso NATO, quero ir para Portugal. Estou à espera que me venham buscar”. Estávamos em 2014. O fuzileiro Silai tinha andado anos fugido, receando ser assassinado. Tinha-lhe sido prometido, mesmo antes da Independência, que Portugal lhe asseguraria uma pensão enquanto ex-combatente. Zero.
Voltemos ao
Camará. Era comando. E muçulmano. O que, para quem conheça a Guiné, não
interessa para nada neste contexto. E dizia-se português. Ainda. Lembrava-se
bem das operações em que tinha participado. Bem duras. No “Mar Verde”, que
entrou na Guiné-Conacri. Na terrível “Ametista Real”, lá em cima, em Guidaje,
que se infiltrou no Senegal, na zona de Cumbamori, para atacar uma base do PAIGC
- e que foi das mais fatais de sempre para os comandos. E aqui, peço perdão,
quando chegou a Independência, voltou para casa e ficou à espera. “Um comando
não foge” disse-me mesmo.
Nos acordos
de Argel, e no que respeitava aos militares guineenses que tinham combatido do
seu lado, Portugal comprometeu-se a desarmar, a desmobilizar e a pagar soldos,
pensões de sangue, bem como a participar num plano de reintegração na vida
civil, com especial ênfase para os “graduados das companhias de comandos”. A
saída foi abrupta. Nada disto aconteceu. O PAIGC via estes homens como “colaboradores
do regime colonial”.. Alguns foram poupados devido à sua alfabetização e
integrados na nova administração pública. Deu-se início à purga, levada a cabo
pelo sinistro António Buscardini, o homem da segurança de Estado de Luís
Cabral, que executou milhares - uma testemunha relatou me o local onde comandos
eram atirados para serem comidos vivos por crocodilos. Foi Ramalho Eanes, em
1980, que exigiu a Nino Vieira o fim desta tragédia sob pena de Portugal cortar
relações com a Guiné. E Mamadu Camará, que queria em 2014? Que o Estado
português cumprisse. Garanto que tudo naquele homem era dignidade. Foi buscar a
única coisa que ainda o ligava a esse passado - uma fotografia dele fardado. E
recitou numa voz baixinha:
“O COMANDO
ama devotadamente a sua PÁTRIA, estando sempre pronto a fazer por ela todos os
sacrifícios. Constante exemplo de energia, de amor ao trabalho, de dedicação e
de lealdade aos chefes, não discute as ordens que recebe…”
E continuou.
E saiu uma lágrima. Querem fazer contas com a História? Camará estava do lado
errado? Não. Portugal é que estava do lado errado. Spínola sabia-o. A guerra
estava perdida. Os homens na Guiné sabiam no. O “nosso Vietname” é pior do que
o dos filmes americanos. Foram feitas promessas a Camará que o Portugal do
pós-25 de Abril não cumpriu? Verdade. Portugal deixou de imediato de ter
qualquer poder negocial e estava por cá a viver-se uma situação de quase guerra
civil. E os seus combatentes foram ignorados e desprezados, tendo chegado à
“metrópole” traumatizados.
Estou a dar importância a um africano que
lutou do lado colonial e a esquecer os que combateram pela libertação? Falei de
todos na altura. O que vi na Guiné, em Tite, lugar do primeiro tiro em 1963,
foram homens que lutaram dos dois lados, sentados debaixo do pilão a brincar
uns com os outros, a chamar-se turras e tugas. Já lá vai. O que só vi agora em
Portugal foi a mentira de se dizer que um muçulmano não combatia por Portugal.
Isso foi a ignorância a ser usada como arma. Dá maus resultados."
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