Linha Aérea e outros voos – O último voo na PIA

Podia ter acabado mal...

No dia 30 de Agosto de 1976, fiz o último voo de assistência da TAP à PIA (Pakistan International Airlines) ao abrigo do acordo da venda de dois Boeings B 747. A PIA introduziu o B 747 na sua frota de aviões em Maio desse ano, com a colaboração dos Pilotos e Mecânicos de Voo da TAP, comprando os nossos dois mais recentes B 747.

O mais recente tinha sido fabricado na Boeing um ano antes…



No dia 30 de Agosto de 1976, fiz o último voo de assistência da TAP à PIA (Pakistan International Airlines) ao abrigo do acordo da venda de dois Boeings B 747. A PIA introduziu o B 747 na sua frota de aviões em Maio desse ano, com a colaboração dos Pilotos e Mecânicos de Voo da TAP, comprando os nossos dois mais recentes B 747.
 

O mais recente tinha sido fabricado na Boeing um ano antes…
 

Nesse último dia de Agosto de 1976 preparava-me para fazer o último voo desse acordo: Karachi, Islamabad, Karachi. No dia seguinte a última tripulação TAP, a minha, deixava o Paquistão já como simples passageiros num voo que nos levaria a Teerão, Frankfurt e depois, já na TAP, finalmente Lisboa.
 

Islamabad fica a pouco mais de 1h30m de voo de Karachi. O Aeroporto chama-se, actualmente, Aeroporto Benazir Bhutto. E nessa tarde, do nosso último voo, fomos brindados com uma situação meteorológica peculiar. A pressão atmosférica local era de 888mb (milibares), a mais baixa com que jamais iniciei um voo em toda a minha carreira aeronáutica.
 

Na China o Nº8 significa sorte. Então 888...
 

A pressão standard é de 1013mb… Acima deste valor começam as Altas Pressões, os Anticiclones, como o dos Açores. Abaixo de 1013mb começam as Depressões, o “mau tempo” que tantas vezes nos dá um magnífico pôr-do-Sol ou um suave entardecer a olhar para uma chuvinha mansa.
 

O Aeroporto de Karachi estava pois exactamente no centro de uma grande depressão, até porque o vento era nulo e a temperatura atingia os 36ºC.
 

Estávamos exactamente no meio do “olho” da grande depressão meteorológica, como se diz na gíria.
 

Na nossa rota estavam previstos encontros com inúmeros cumulonimbus, aquelas grandes nuvens onde se escondem todas as raivas atmosféricas, todos os grandes geradores de enormes e faiscantes relâmpagos, com aquelas carantonhas medonhas de bochechas cheias para soprar ventos de espantar.
 
A beleza assustadora de um Cumulonimbus. A parte superior tem o nome técnico de "bigorna", significativo...

Foi assim que descolámos, executando eu, como Co-Piloto, as funções de pilot not flying, para no regresso ser eu a fazer então a última aterragem, já em Karachi.
 

Felizmente os nossos dois écrans de radar permitiam-nos seguir sem problemas a rota planeada. E foi o que nos preparámos para fazer. Com cuidados redobrados, dada a situação meteorológica.
 

A turbulência começou ainda durante a subida, por volta dos 12.000 pés, 4km de altitude.
 

E foi aumentando, significativamente, à medida que o grande avião dava tudo para chegar à altitude desejada.
 

Olhos pregados no radar, os écrans cheios de enormes pontos de luz esverdeada com grandes manchas vermelhas no centro - uma zona a evitar passar a todo o custo! - que nos sinalizavam o miolo dos muitos e problemáticos cumulonimbus que sabíamos de antemão ir enfrentar. E eles lá estavam, realmente.
 

Mas o nosso caminho, em frente, continuava, felizmente, livre deles.
 

No entanto, a subida fazia-se à custa de cada vez mais turbulência, o piloto automático a esfalfar-se para manter a rota e a velocidade e a pedir, aos berros, às manetes da potência dos reactores que fossem mais diligentes:
 

- Vocês não vêem que a velocidade está a cair?! Metam mais motor!
 

- E agora foi demais!
 

- Reduz, reduz! Olha-me essa turbulência!
 

O monólogo do piloto automático enchia-nos o cockpit de stress.
 

Na cabina iam todos sentados, passageiros, Assistentes e Comissários. E de cintos apertados. Aquilo abanava bem...
 

Entretanto aproximávamo-nos rapidamente dos 18.000’, 6km de altitude.
 

Que é, nem mais, nem menos, a altitude mais crítica dentro de um Cumulonimbus, onde todos os demónios da baixa e negra meteorologia se envolvem numa luta fratricida.
 

Onde todos eles actuam com todas as suas demoníacas capacidades e atacam em simultâneo, cegamente, todos como um só, numa raiva extrema, na maior violência que se possa imaginar, sem a mínima complacência! Quanto pior, melhor…
 

Afinal, o Castelo da Má, como um dia lhe chamou a minha neta Beatriz ao ver um, por cima da Serra da Arrábida.
 

E foi exactamente ao passar pelos 18.000’ que aquilo aconteceu.
 


BANG!
 


Chocámos contra uma vasta massa de matracas mecânicas que em fúria atacavam a frente do avião, apanhado de surpresa.


O grande B 747 gemia, apavorado mas soberano e sofria na pele toda aquela loucura dos elementos revoltos, procurando desesperadamente manter-se no ar tentando evitar os golpes mais dolorosos.

Sem se perceber se era por nos estarmos a meter no meio daquela insanidade ou se era um deliberado ataque suicida contra inocentes que inadvertidamente tivessem beliscado tão sensíveis demónios, o que estava realmente a acontecer, o que eu realmente via, confesso que com muito receio, eram grandes blocos de gelo, do tamanho de meloas ovaladas, a chocarem connosco a 600 quilómetros por hora, umas atrás das outras, continuamente, dando a sensação que havia sempre mais projécteis atrás dos muitos que simultaneamente nos atingiam.
 

Um perfeito pesadelo mesmo para aviadores de barba rija!
 

No meio de um enorme barulho de muitas pedras contra tão pouca lata.
 

A minha reacção instintiva foi baixar a cadeira de modo a evitar um provável impacto contra a minha cabeça, de um em milhares, daqueles veloses e cegos pedregulhos de gelo compacto.
 

Ao fim de algum tempo, que nos pareceu demasiado castigo, ou por se terem acabado os projécteis ou mais provavelmente por termos saído do centro do cumulonimbus, voltámos a conseguir pensar e falar, três esfrangalhados argonautas.
 

Mas a situação no cockpit já não era a normal. Aquele cobarde ataque, com blocos de gelo em contínuo arremesso, deixou danos no nosso avião.
 

Com uma ressalva.
 

Os reactores.
 

Aqueles magníficos quatro bravos motores, nem pestanejaram. Nem por um momento quiseram olhar sequer para os pedregulhos de gelo. Devem-nos ter engolido, desfeito, retribuindo a raiva e restabelecendo a identidade de quem é soberano e sabe lidar contra elementos em fúria. Todos nós, humanos e todo o avião, éramos uma única força a lutar contra o mal.
 

Vencemos, mas tivemos que lamber as feridas.
 

Uma delas, grave, atingiu os dois vidros da frente do cockpit. O vidro do Comandante ficou com o aspecto de uma chapa de plástico, pintada de branco. Completamente opaco… o Comandante nunca mais viu nada para a frente. E cabia-lhe a ele aterrar, de noite, em Islamabad. Na altura uma pista mal apetrechada em equipamento para voos nocturnos.
 

O vidro da frente do meu lado, o da direita, felizmente de fabricante diferente, soubemos depois, ficou sem toda a camada protectora exterior, cerca de 8mm de espessura a menos, provocando uma visão ondulada da realidade à minha frente. Nada do que eu via tinha linhas rectas… Mas ainda via o suficiente.
 

Para que se perceba melhor a escala do incidente, a espessura daqueles vidros é de 7,5cm. E pesam 90kg cada um.
 

Foi este o dano mais imediato e preocupante de que nos apercebemos.
 

Para além disso, o diálogo entre nós tornou-se difícil. O grande barulho aerodinâmico que agora ouvíamos, obrigava-nos a falar muito alto para nos entendermos. O que significava danos, que desconhecíamos, na aerodinâmica do avião, na zona do cockpit. Algo estava a obrigar a normal passagem do ar pela fuselagem a seguir caminhos tortuosos.
 

Restava-nos avaliar a situação agora criada, nomeadamente os possíveis estragos físicos e psicológicos na grande cabina dos passageiros e afinar a estratégia da aterragem nocturna naquela pista, com o Comandante agora “cego” e o Co-Piloto meio zarolho.
 

Passageiros na cabina, Assistentes e Comissários estavam todos bem.
 

Se soubessem que tínhamos um vidro a menos…
 

O Comandante, que era Instrutor de voo na TAP, decidiu que, não estando legalmente certificado para aterrar sentado no lugar do Co-Piloto num voo com passageiros, quem teria de fazer a aterragem em Islamabad era eu.
 

Decisão difícil. Com a independência do Ultramar, os voos dos B 747 diminuíram imenso com a falta de tráfego. Os voos passaram a ter quase sempre 2 Comandantes e um só Co-Piloto a quem de vez em quando era dada a facilidade de fazer uma aterragem, para não perder a mão. Nós, Co-Pilotos, não tínhamos o treino normal naquele avião. Foi uma das razões porque me ofereci para voar na PIA. Uma oportunidade de fazer pelo menos uma aterragem por dia e não por mês, como tinha feito, em média, no último ano.
 

Coube-me pois, por força da situação, aterrar em Islamabad como se estivesse sozinho no avião. Imagino o que foi para o Comandante. Ele nada via. E eu via tudo aos esses. A pista, na altura, não tinha nenhuma outra ajuda electrónica ou visual que não fosse exclusivamente as luzes da pista. Nem Papis, nem Vasis, nem sequer, ao menos, Luzes de Aproximação. Nem mesmo um ILS.
 

Papis e Vasis são equipamentos colocados ao lado das pistas, com luzes de grande intensidade, encarnadas e brancas, que facilmente nos dizem, por observação das cores, se vamos na altitude correcta, a cada momento da aproximação à pista.
 

As Luzes de Aproximação facilitam a visualização da geometria do espaço, da pista em relação ao terreno, permitindo um alinhamento com a pista desde uma grande distância. 

Especialmente de noite, ou com mau tempo, quando a pista, sem elas, parece uma pequena ilha em forma de rectângulo alongado.
 

ILS é um sistema electrónico de guiamento para a aterragem, que já na altura permitia até fazer aterragens com o Piloto Automático ligado.
 

Tudo facilidades que eu não iria ter naquela noite, quando todas as minhas capacidades iriam ser postas à prova.


Aeroporto Benazir Bhutto, em Islamabad. À direita vê-se uma auto-estrada. A pista está ao centro. Imagem actual

E foi assim que me fiz àquele rectângulo comprido, com ar de pista com umas luzinhas, mas muito cool. Muito cool… estava tudo aos esses! E eu não fumava coisas, não bebia antes dos voos, muito menos shots que ainda não havia, nem nunca me meti em drogas. 

Mas deve ficar-se assim…
 

Escusado será dizer que a aterragem foi, a sério, acreditem, magnifica. Eu e aquele avião tínhamos uma paixão avassaladora um pelo outro. Temos. Temos, porque eu nunca a perdi…
 

Este foi, tenho a certeza, um dos voos que me elevou a classificação na escolha dos futuros Comandantes da TAP, cujo curso comecei três meses depois.
 

Já no chão fomos avaliar melhor a situação.
 

A saber: o nariz do avião, de seu nome técnico, em Inglês, “radome” (radar dome) tinha sido empurrado para cima. Como o avião voava, normalmente, com cerca de 2º de nariz para cima, aqueles criminosos blocos de gelos tinham empurrado violentamente a radome ainda mais para cima como se tivesse rodado num eixo criando uma “fenda” na parte de baixo com 2cm de largura!
 
Slide tirado por mim no dia 31 Ago 1976

Além das grandes mossas, mesmo na ponta do nariz. Quase que lho partiam. Mas não, aguentou-se bem… mas empinou-o, orgulhoso de estar ali, ferido mas inteiro!
 

Ao longo da fuselagem, a todo o comprimento do avião e englobando as janelas dos passageiros, aquele avião da PIA tinha uma larga risca de tinta verde.
 

Pois ficou a ver-se um cinzento esverdeado, a cor base do primário aplicado.
 



O vidro do lugar do Comandante tinha uma grossa camada exterior de vidro laminado feito em centenas de pedacinhos de vidro que iam escorrendo lentamente. Parecia gelo, tão branco era. Tive de subir uma escada para lhe ir tocar e ter a certeza de que não era gelo. Com 35ºC era difícil, mas…
 

Decidiu-se que não voltávamos para Karachi sem um vidro novo do Comandante, que só foi substituído no dia seguinte, mandado num outro voo.
 

E foi já para além do nosso contracto de trabalho, que expirara no dia anterior, que regressámos a Karachi, a tempo de ir a correr ao Hotel fazer as malas e voltar apressadamente para o Aeroporto a tempo de apanhar o voo para casa.
 

E o que é que nos calhou?
 

O mesmo avião e no mesmo estado!
 

A PIA não tinha “narizes” de avião para substituir e o avião foi assim despachado para Teerão. Não me lembro, mas o “meu” vidro deve ter sido também substituído.
 

E nós os três, os que tinham feito o último voo naquele avião, fomos minuciosamente interrogados pelos nossos colegas paquistaneses, incrédulos.
 

- Atão… vocês entraram como, dentro de um cumulonimbus, com dois écrans de radar e a cores? Estavam ligados? Vocês estavam a olhar para onde?
 

Difícil explicar. Tínhamos feito o normal, só que a rota estava limpa de ecos e mesmo assim foi o que foi. É estranho, mas foi mesmo assim.
 

E quem é que os convencia?
 

Naquele dia tínhamos estragado não só a pintura e outras coisas ao avião, como a boa imagem que a TAP tinha deixado naqueles aviadores.
 

Mas a vida também tem destas coisas.
 

Teerão, finalmente. Ainda ali reinava o Resha Palhevi, Sha do Irão.
 

Aqui havia sempre troca de tripulação e foi pois passado o testemunho ao outro Comandante paquistanês que, à medida que ia sendo informado da situação menos boa do avião, ia mandando olhares menos simpáticos aos três portugueses que, embora calmos e serenos, sentados no upper deck, lá em cima atrás do cockpit, não deixavam de ser, provavelmente, censurados pelos colegas da PIA.
 

E a decisão, correcta a nosso ver, daquele Comandante que tinha de levar o avião naquele estado para a Europa, foi:
 

- Não aceito o avião assim! A radome tem de ser substituída!
 

Quem dava assistência Técnica à PIA em Teerão era a extinta Pan American, um mecânico Americano que já tinha também franzido o sobrolho em conversa connosco.
 

- Então vocês entraram por um cumulonimbus dentro!? Ok…
 

Mas havia um problema. A radome da PIA era em tons de verde, como todo o avião. E só havia uma para substituir e era da Iran Air, muito azul…
 

- Ponha essa! Aceita o Comandante paquistanês.
 

E nós os três fomos deixados sós, como os meninos mal comportados de que ninguém gosta. Gente que não merece o respeito de ninguém.
 

- Daqui a umas horas já nos livramos deles. Teriam pensado aqueles nossos colegas, aborrecidos por aquele atraso e pelos estragos e despesa causada no seu belo e novíssimo avião…
 

Nem meia hora depois aparece o Mecânico da Pan Am, a subir a correr as escadas, os degraus dois a dois, ofegante e furibundo, dedo em riste apontado ao chateado Comandante paquistanês e diz-lhe:
 

- Você sabe porque é que eles entraram por um cumulonimbus dentro? Sabe?
 

- Pois eu vou-lhe dizer! O nariz da radome tinha anteriormente uns buracos, provavelmente provocadas por pequenas pedras atiradas durante a rolagem, no chão, empurradas pelos jactos dos reactores dos aviões a rolar á frente. E sabe como é que os seus mecânicos em Karachi resolveram o problema? Sabe? Colaram fita metálica auto-adesiva, de alumínio, mesmo em frente à antena de Radar! De alumínio! E voltaram a pintar por cima, tudo de preto baço! Como é que eles podiam ver ecos de radar para a frente? Como!? Com a fita metálica ali mesmo à frente…Fita metálica!
 
Ampliação do slide que está mais acima, onde se vêm perfeitamente as fitas de alumínio, ainda agarradas à antena do radar, o circulo desenhado à volta das fitas.

E voltou, já mais calmo, para a placa onde acabavam a montagem daquele nariz de palhaço.

Azul, num avião verde.

No avião que, depois de aquele dia, nunca mais vi.

Durante muito tempo, os meus olhos, quando eu voava para um qualquer Aeroporto, procuravam com ansiedade um B 747 em tons de verde…

B 747, o melhor avião que voei. 

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Este voo para Islamabad foi feito no B 747 da PIA, matriculado AP-AYV ex-TAP CS-TJC. Diário de Navegação Nºs 9545/006 e 007.


(Actualizada em 6 de Maio de 2014)




2 comentários:

  1. Excelente relato, tenho muito gosto em ler as suas aventuras. Muito obrigado.
    Manuel.
    ps. Também é o meu avião favorito. No FSX tenho que sempre dar uma voltinha nele.

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