Linha Aérea e outros voos - Ponte Aérea Luanda - Ilha do Sal / 1975


Uma história trágico… cómica não! Patética.

Estes acontecidos passam-se durante a Ponte Aérea que tentou recolher as centenas de milhar de Portugueses e não só, completamente abandonados e sem nenhuma protecção do Estado a que julgavam pertencer. Agora já não eram Portugueses, agora era apátridas, incómodos, descartados.

E não foi Estado nenhum que os salvou. Foram alguns Portugueses, com a incómoda ajuda do Estado Português.

Esta história passa-se com uma pequeníssima parte desses ex-Portugueses, agora duplamente apátridas, terrivelmente abandonados, completamente desprotegidos.

Que naquele dia tiveram sorte. O que restava do Estado Português, alguns Portugueses, apiedaram-se e deram-lhes o conforto possível

Às oito da manhã daquele dia com muito Sol, em Luanda, em 1975, da janela do meu quarto do Hotel Trópico, vi um pequeno ajuntamento a formar-se em frente ao prédio em construção do outro lado da rua.

Eram os cabo-verdianos que iam ser "retornados" no meu voo e que estavam ali temporariamente alojados. Alojados? O prédio de vários andares só tinha de pé a estrutura e as paredes interiores. Nada mais. Nem água nem electricidade nem portas ou janelas.

Luanda vivia os dramáticos dias finais da soberania portuguesa de 500 anos e preparava-se afanosamente para uma sangrenta guerra civil que iria durar décadas.

Os sinais de desorientação, anarquia e decadência eram perceptíveis em todo o lado.

No próprio Hotel as condições ameaçavam degradar-se rapidamente. O Restaurante, no 6º Andar, com os elevadores avariados, proporcionava um excelente exercício físico que depois não era compensado. Quando cheguei a Luanda para fazer este voo, soube que a ementa da última semana tinha mudado. Depois de sete dias seguidos a feijoada, mudaram finalmente. Tive sorte...

A nossa apresentação para o voo Luanda - Ilha do Sal estava prevista para as duas da tarde. E aquela gente que já aguardava o transporte para o Aeroporto desde as 8 da manhã, tinha pernoitado naquele esqueleto de prédio.

Magnifico refúgio, em boa verdade. Ali pelo menos não voavam balas.

Antes das dez da manhã, já com o meu pequeno-almoço tomado no quarto, dava para ver que no meio da rua estavam já os cerca de 400 “retornados”, homens, mulheres e muitas crianças, que iríamos transportar para a Ilha do Sal por volta das 4 da tarde.

O telefone toca e então recebo o primeiro adiamento da partida.

E aquelas famílias na rua à espera dos camiões que nunca mais vinham, ajeitando as bagagens e com um olho nos miúdos que só lhes apetecia era correr de um lado para o outro.

As cabeças num permanente rodopio a ver quem via primeiro um qualquer camião.

Recebi mais um ou dois telefonemas com adiamentos.

Os outros, do outro lado da rua, continuavam à espera debaixo de um Sol abrasador. O transporte sempre quase a chegar e ninguém era informado de nada.

Tiveram que esperar até cerca das 8 da noite. Sem água ou comida.

A tripulação do Boeing B 747 da TAP, eu era o Co-Piloto do voo, saiu do Hotel às 21h30m.

Os “passageiros” daquele voo não comercial, da Ponte Aérea, sob a autoridade do IARN, Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais, embarcaram já perto da meia-noite finalmente libertos daquele drama, finalmente em paz.

E o voo lá saiu, para a Ilha do Sal, nas primeiras horas do novo dia.

A bordo, para dar de comer a toda aquela gente que eu vira de pé, na rua, sem comida nem água, desde pelo menos 16 horas antes, nada havia para lhes dar.

Nada tinha embarcado!

Nada, é mesmo NADA. . .

Os nossos Tripulantes de Cabine, Assistentes e Comissários, sensíveis à situação, fizeram uma espécie de consomé, muito à base de água… para as crianças mais pequenas. Não dava para mais.

E foi assim que toda aquela gente retornou a casa.

Com a muito pouca dignidade que o agora ex-Estado a que ainda pertenciam as tratavam.

Felizmente para tantos, ainda tiveram o auxílio de muito poucos Portugueses.

Mas no meio dos maiores dramas há sempre episódios, embora muito pungentes, que no entanto nos fazem querer sorrir.

De tão absurdos que são.

Os dias de desespero e desnorte que se viviam em Luanda proporcionaram-me um dos mais dramáticos e ao mesmo tempo caricatos episódios a que assisti durante aqueles meses de Ponte Aérea.

Após o desembarque daqueles agora libertos cidadãos, o chefe de escala da TAP na Ilha do Sal, meio a rir meio atrapalhado, veio pedir ao Comandante os seus bons ofícios para um drama difícil de resolver.

Um homem já entrado na idade e provavelmente muito entrado no drama que era viver em Luanda naqueles tempos com a família, pedia desesperadamente que lhe dissessem o que era feito da sua mulher e dos seus filhos. 

- Mas ó homem!  Você perdeu a sua família... a bordo?! Perguntou-lhe o Comandante.

- Não senhor… dizia o homem muito choroso.

- Atão ?
 

- Eu trabalho no aeroporto de Luanda e ouvi dizer que todos os cabo-verdianos vinham neste voo.

Nesse dia houve 3 voos de Luanda para o Sal.

- Sim…
 

- Como vinham todos, a minha mulher e os meus filhos também vinham…
 

- Sim, e depois ?
 

- Depois, quando desembarquei, vi que não estavam a bordo…
 

- Então não embarcaram consigo ?
 

- Eu sou funcionário do Aeroporto de Luanda, estava a trabalhar no Aeroporto e corri para apanhar este voo.
 

- E a sua família, você não falou com eles, não os viu?
 

- Atão não era para virem TODOS os cabo-verdianos ???
 

- Ó homem de Deus … !!!

E lá regressámos com o avião vazio a Luanda sem saber muito bem como arrumar todas estas complicadas ideias na cabeça.


(Actualizada em 6 de Maio de 2014)



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