Aventuras e desventuras entre alunos e instrutores.
Em Boeing B 707...
Era um Senhor o Comandante A. Reis
No cockpit do Boeing B707
Em 1971 foi o meu Instrutor de Voo em Boeing B 707.
Durante a formação técnica, os futuros pilotos da TAP, quando acabavam as teóricas, começavam a instrução em voo, o “Voo Base”, para a função de Co-Piloto, no avião mais baixo da hierarquia. Naquele tempo, seria o B 727, dado que o Caravelle estava a acabar a sua vida útil. Mas como a movimentação de pilotos estava a ser muito grande e para evitar acessos a aviões uns atrás dos outros, com um intervalo entre os cursos demasiado curto, optaram por nos colocar directamente no avião a seguir.
Foi assim que comecei a minha carreira de piloto da TAP, logo no Longo Curso, no B 707.
Exactamente antes do meu primeiro voo, tive a pouca sorte de me aparecer um abcesso num dente. Ora eu tinha que fazer, a todo o custo, aquele curso! Única solução para não dar baixa: comprimidos para as dores e um forte antibiótico.
Parecia resolvido o problema, mas não. Em voo, a medicação provocava-me um grande enjoo e por mais de uma vez me vi atrapalhado.
Alternativa? Um médico receitou-me uns supositórios que eu tinha de utilizar momentos antes de iniciar a minha sessão de treino em voo. Contra o enjoo.
Como éramos dois alunos em cada voo e começávamos a instrução alternadamente, quando eu era o primeiro, o supositório era aplicado logo no início do voo. Se não era eu a começar, a aplicação fazia-se quando o colega estava mesmo a acabar a sua sessão.
Uma desgraça...e assim fiz todos os meus voos!
O Comandante A. Reis era uma velha raposa, com muitos saberes.
Piloto militar com curso feito nos Estados Unidos. É o primeiro à dta.
Da velha escola. Do tempo em que se sabia tudo de cor. Toda a ciência, todo o saber, estava fielmente depositado em cabeças de grande capacidade, em grandes decisores. E neste caso, um piloto, esses saberes tinham que aparecer no momento exacto em que eram necessários.
Era uma aviação… diferente. Como é com tudo, em intervalos de uma geração ou mais.
Foi sempre assim. Assim será.
O
Comandante A. Reis está ao centro
Ainda guardo, religiosamente, o meu livrinho. Existe há 41 anos na minha posse:
O Índice do meu "livrinho" |
Performances |
E quando havia uma dúvida, durante aqueles voos de instrução, o meu companheiro, muito competente quanto aos seus saberes sobre os vários sistemas do avião, tinha sempre uma resposta pronta, que ele achava a adequada.
E invariavelmente o Comandante A. Reis perguntava-lhe:
- Ai é!? Como é que você sabe isso?
- Tenho no meu livro!
- Ok,
rasgue-o!
E por mais que eu lhe dissesse que não devia falar ao Comandante na porcaria do livro, nada feito... O livro era realmente muito importante para ele!
Eu, sem os mesmos saberes - importava-me mais a pilotagem correcta do avião - manifestava-me pouco nestes assuntos em que não conseguia, tinha a certeza, brilhar.
E assim fui progredindo, voo atrás de voo, até ao treino do voo nocturno, que me saiu realmente muito bem.
E notei que o meu Instrutor começou a ter um comportamento mais amistoso para comigo. Eu sempre era mais calmo, calado… menos belicoso e até parecia que não tinha livro, coisa em que, obviamente, nunca falei.
Deus me livrasse…
O Comandante Reis tinha um tique que lhe denunciava os momentos de descontracção: abanava a cabeça de um lado para o outro, de um ombro para o outro, sempre na vertical, com alguma rapidez. Para mim era o sinal de que as coisas me estavam a correr bem. E isto começou a acontecer cada vez mais…
Num dos últimos voos, feitos em Faro já ao acabar o dia, ele resolve tomar conta do avião e prepara-se para ser ele mesmo a fazer um toca e anda na pista apontada ao pôr-do-sol, enquanto eu observava pelo canto do olho a cidade, à minha direita.
Mas o senhor Comandante não se estava a aproximar da pista mas sim do taxiway (caminho de rolagem dos aviões de e para a pista, paralelo a esta).
Bem, o homem vai aterrar, ali?!
E o Aeroporto cada vez mais perto. E eu com as mãos no colo e os pés encolhidos porque aquilo não era nada comigo.
E quando já não havia dúvidas do que ele ia fazer, estávamos a 500 pés, pouco mais de 150m de altura sobre a Ria Formosa, enfiadinhos ao Taxiway, a 300km por hora, o Quartel dos Bombeiros já mesmo ali, o Comandante A. Reis larga os comandos e diz-me calmamente:
- Aterre!
O quê!!? Aquilo era comigo?!
Era mesmo! Ele não tinha as mãos no manche e olhava para mim expectante com um meio sorriso desafiador.
Agarro imediatamente nos comandos e continuo a aproximação, já muito baixo, apontado ao taxiway, asas muito direitinhas para manter o voo tal e qual ele estava a fazer. Ordens são ordens!
- Aonde é que você vai?!
- Aterrar… Já não tinha muito tempo nem consegui dizer mais.
- Na pista! Grita-me ele. Na pista!
Como!? Só agora é que me dizes isso!? Pensei, mas desisti de mais quaisquer dúvidas.
Estava mais ou menos nesta posição, a 300km/h quando tive de começar a executar a manobra |
Já mesmo muito baixo, “entorno” o grande B 707 para a esquerda até apanhar o enfiamento da pista onde afinal o meu Instrutor queria que eu aterrasse, volto a entorná-lo agora para a direita, os pés a trabalhar a todo o gás para obrigar o grande avião a ficar quieto naquela direcção e endireito as asas mesmo a tempo do suave toque das rodas no chão, exactamente na marca dos 1000’, o sitio onde se deve tocar o chão, em qualquer pista, em qualquer avião, faça Sol ou faça chuva e o avião certinho, mesmo sobre a linha central!
Aquilo é que aquela cabeça abanava de um lado para o outro!...
Logo a seguir, meteu motores a fundo e descolámos rumo a Lisboa, para acabar em beleza mais uma sessão de treino.
Esta manobra que o Comandante A. Reis me obrigou inopinadamente a fazer, tem uma explicação. Naquela altura, anos 70 do Séc. XX, tanto aviões como Aeroportos não estavam equipados com a electrónica que hoje, felizmente, é comum. E muitas vezes acontecia, nas aterragens em sítios menos próprios, vermos a pista fora do alinhamento em que supostamente devia estar, na transição do voo por instrumentos, da aproximação, para o voo à vista, para aterrar. E quando, de repente a víamos, a pista, afinal, estava um bom bocado mais para um dos lados. E era mesmo preciso aterrar...
Treinava-se esta situação, sem nos dizerem nada.
Chamava-se fazer uma "cangocha".
No Simulador, o meu colega de curso tinha captado a atenção de outro Instrutor, tanto pelo excelente desempenho como por aquilo que demonstrou saber, graças também ao seu livrinho. E teve a nota mais alta que a TAP dava, 4 em 5. Ninguém tinha 5. Eu, claro, a actuar com mais cautela para disfarçar o não completo à vontade com os meandros do B 707, fui brindado com o 3.
Mas a minha táctica nos voos de instrução de me dedicar só a pilotar o avião o melhor que pudesse, também deu frutos. Para grande surpresa minha, tive um 4, em 5 também, na nota de Voo Base.
E como o coeficiente desta disciplina era superior à de quaisquer outras do Curso, a minha nota final não foi nada má… saí-me mesmo muito bem…
Graças também àquela cangocha…
O Comandante A. Reis no vôo inaugural Lisboa-Caracas, com o Embaixador da Venezuela em Portugal
Nota:
Todas as imagens
em que o Comandante A. Reis está foram gentilmente cedidas pelo seu neto Pedro
Reis Anjos, a quem muito agradeço.
(Actualizada em 26 de Janeiro de 2018)
... e de cada voo resultava sempre uma história interessante e diferente para contar!
ResponderEliminarAssim eu tivesse o hábito de registar logo na altura histórias como esta. Teria de escrever uma trilogia...
ResponderEliminarBeijinhos.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarObrigado por este momento tão precioso! Sou neto do Comandante Reis e é fabuloso ver retratada esta "pintura" tão fiel e característica do meu avô. Exigente, correcto e grande amigo. Ė bom ouvir de outros algo que tanta saudade deixou. Muito obrigado
ResponderEliminarSendo a filha do Comandante Reis, não tenho palavras suficientes para lhe agradecer as memórias que despertou em mim,das histórias que ele me contava. Um abraço Teresa Reis
ResponderEliminarSendo a filha do Comandante Reis não tenho palavras suficientes para lhe agradecer as memórias que despertou em mim, das histórias que ele me contava. Um abraço Teresa Reis
ResponderEliminarFoi com enorme prazer que li os vossos comentários. O Comandante Reis era um Senhor muito estimado por todos na TAP. Deve notar-se na minha prosa que foi com muita estima pelo vosso Pai e Avô que contei a história… Um beijo aos dois (tenho 6 netos e um com mais de 30 anos… posso mandar beijos)
ResponderEliminarEstimado Gabriel. Como outro neto do Comandante Reis e como prova da enorme alegria que foi para toda a família descobrir este seu maravilhoso texto, aproveito esta oportunidade para também eu agradecer este momento tão mágico. Tal como dizia o meu irmão e a minha mãe, tem um significado muito especial o facto de rever nas palavras de outros, aquilo que sentimos e caracterizava o nosso querido avô e pai. Temos algumas fotografias desses tempos em que se retrata o meu avô e alguns colegas, que possivelmente sejam do seu interesse. Se assim for, diga-me e será com prazer que as digitalizo e envio. Um abraço, Pedro.
ResponderEliminarMeu caro Pedro
ResponderEliminarObrigado pelo seu comentário.
Uma das maiores alegrias que este blogue me tem dado é ter recebido o reconhecimento da família e amigos de quem conto histórias. A grande maioria delas são histórias em que eu entro também. Mas não são histórias. São factos. Contados de memória porque nunca tirei notas de nada.
Fico muito grato pelas fotos que me possa enviar para:
gcavaleiro2012@gmail.com
Grande Abraço
Comandante Cavaleiro,obrigada pelas suas palavras a respeito do meu querido pai. Também tenho netos de 11 e de 6 anos, por isso é com toda a legitimidade que lhe mando um beijinho com carinho,Teresa
ResponderEliminarObrigado Teresa (o nome da minha irmã). Vou actualizar a história com as fotos que o Pedro me mandou. Beijinhos
EliminarQueria igualmente agradecer o relato deste momento do percurso do Comandante Reis, que me fez sorrir, emocionar e recordar um sogro de quem guardo muita saudade.
ResponderEliminarTeresa Bivar Santana
Um Homem como ele só podia ter o carinho, respeito e saudade da sua grande família e de todos os que com ele lidaram. É o meu caso… Um beijo.
EliminarConheci de perto o comandante A. Reis, fui namorado, depois marido da filha e depois apenas amigo. Em cada uma das situações desfruteio sabor do seu feitio:rigoroso, sério, brincalhão. Um pai, um professor um enorme amigo.
ResponderEliminarAgora anda lá por cima, nas nuvens , o seu verdadeiro habitat.
Obrigado Francisco. Um Abraço
EliminarTambém eu, no princípio dos anos 70, tive o privilégio de ter aprendido a voar o B-707 com o Comandante A. Reis, um Senhor como pessoa, como piloto e sobretudo como instrutor de voo.
ResponderEliminarPouco tempo depois, durante um voo de instrução, teve que fazer uma aterragem com roda de nariz bloqueada em cima. Contou depois que tinha usado os "speed breaks" quando o nariz começou a descer, conseguindo, assim, retardar o toque do nariz do avião na pista. Na verdade, o avião voltou a ficar operacional em muito pouco tempo.
Mano, obrigado pelo reforço da imagem do Comandante A. Reis que todos temos, afinal.
EliminarComandante LuísVdaSilva,muito obrigada pelas suas palavras em relação ao meu pai,um abraço.Teresa
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