Estatisticamente, pelo número de passageiros já transportados, pelas horas de voo já voadas, um grande acidente com um avião da TAP deveria ter acontecido vários anos antes do fatídico dia
19 de Novembro de 1977
Por essa razão, pela falha contínua de todas estas estatísticas, a TAP se mantém, desde sempre, como umas das companhias aéreas mais seguras do Mundo.
E dadas as características da pista na altura, esse acidente só poderia ter acontecido no Funchal e portanto com um B 727.
E na pista 24, tão esquecida da limpeza da borracha.
E por diversas razões, que aqui não cabem, num B 727-200.
O B 727-200 CS-TBR |
(Meses depois do acidente, por eu ter tido problemas de travagem num Boeing 727-100 no início da pista 36 em Lisboa, junto à rotunda do relógio, só deixei o Aeroporto depois de vários telefonemas meus que levaram ao encerramento imediato daquela pista, para a remoção da borracha.
Eu era Instrutor de Simulador e Verificador e essa condição foi uma alavanca.)
Já se passaram mais de 36 anos sobre a data desse acidente.
Das minhas escalas de serviço naquele mês de Novembro de 1977, fazia parte um voo ao Funchal no dia 20. Com apresentação às 6 horas da manhã no Aeroporto da Portela. Eu morava nos Olivais e bastava-me portanto acordar uma hora antes.
Na véspera, no dia 19, antes de me deitar resolvi ligar a televisão e dei de caras com a terrível notícia.
O acidente no Funchal!
Acto contínuo, decido ir imediatamente para as Operações da TAP, no Aeroporto, dado que não conseguia telefonar para ninguém e tinha uma necessidade imperiosa de saber o que tinha acontecido realmente.
E ali estive umas horas em conversa com os muitos colegas que decidiram fazer o mesmo. Todos nós nos colocámos à inteira disposição da Companhia para colaborar como pilotos em quaisquer voos extra que fosse necessário fazer.
E assim se decidiu que a Comissão de Inquérito seguiria num voo que ficou escalado para a hora do meu voo anteriormente programado, seguindo eu no terceiro, por volta das 9 horas da manhã.
Ainda hoje acho que a troca se ficou a dever à minha pouca experiência, na altura, naquele Aeroporto… A Comissão de Inquérito cuidou-se…
Voltei para casa seriam umas 4 horas e tentei descansar. Em vão, claro. E pensei que não estaria, poucas horas depois, nas melhores condições para fazer aquele voo e logo para o Funchal, que ainda estava sob muito mau tempo.
E quem é que estaria, naquele dia, em melhor estado do que eu?
Não terá sido só por isso, mas quando me apresento dou de caras com uma tripulação esfrangalhada, nervos destroçados, lágrimas nos olhos, vários amigos perdidos, encontros que nunca mais se voltariam a dar. Um grande e sério drama para o qual eu não tinha a mínima preparação e que me apanhou completamente desprevenido.
Não sei onde fui buscar tanta calma, tanto à vontade, mas tinha de fazer alguma coisa pela minha tripulação que naquele momento, sentia-o, estava completamente dependente do meu auto controle, da minha serenidade e da capacidade de me superiorizar a todo e qualquer outro Comandante.
Refiro-me à atitude, como é óbvio…
Consegui uma salinha onde nos reunimos todos e disse-lhes que me sentia muito bem, bem dormido e descansado, que tinha uma longa experiência de 7 anos de piloto na Força Aérea e 6 anos já na TAP, estava completamente desinibido perante a situação e que aquele voo iria correr muito bem. Todos nós voltaríamos a nossas casas no fim do dia, dever cumprido.
Nós tínhamos que colaborar, especialmente naquele dia, deixando para trás os nossos problemas, esquecendo, por umas horas, o acidente. E mantendo a cabeça fria, enfrentar com confiança aquele dia que teria de ser um dia normal de trabalho. Igual aos outros.
Fui convincente. Tão convincente que até me convenci a mim mesmo…
E tudo correu bem. Naturalmente com os imprevistos sempre possíveis.
Boeing B 727-100 |
O que significaria aterrar 3 vezes seguidas naquele agora fatídico Aeroporto, quando só nos cabia, por escala publicada, tentar que a única aterragem que tínhamos programada corresse bem…
Como os ânimos não davam para pura e simplesmente aceder, sem mais – eu tinha alguns jovens tripulantes de cabina em franjas – consultei toda a minha tripulação, mais com o intuito de os preparar do que á espera de ouvir sins ou nãos e lá respondi que faríamos o que nos fosse possível.
Um voo de cada vez. Iriamos ver…
A minha aproximação à pista onde deveria aterrar foi toda feita a observar o fumo que ainda se desprendia dos destroços esmigalhados do que fora um avião como o que eu pilotava. Íamos aterrar exactamente sobre o local onde o avião se precipitara após a aterragem, em sentido contrário ao que voávamos agora. O vento tinha mudado.
Aquele fumo sinalizava a morte de 131 pessoas. Entre elas vários colegas e amigos.
A curiosidade de tudo ver bem foi enorme e eu fiz os últimos segundos da aproximação, até a pista aparecer no topo do barranco, a observar tudo aquilo.
E não era fácil de se ver. Praticamente nada havia de minimamente volumoso no local onde o cockpit do avião tinha ficado, mesmo à beira de água. E saia fumo de vários sítios.
E foi por isso que me “esqueci”, por milésimos de segundo, do que estava a fazer e o avião decide, por si só, acabar com o voo e num assomo de rebeldia, estatela-se fragorosamente naquele chão, hoje ainda mais duro, da pista. E como ele não sabia o que fazer e eu só percebi isso demasiado tarde, resolveu voltar para o ar...
E aí sim. Agora mando eu! Vais para o chão e é já!
Mais um enorme trambolhão e o Boeing B 727, que eu controlava sempre tão bem, acabou por se imobilizar, também ele com os nervos à flor da pele. Todo a tremer, com os reactores em reverse, num esgar de raiva.
Como só o Comandante é que podia aterrar, não me podia desculpar com a azelhisse do Co-Piloto. Também nunca o fiz…Ou melhor, fi-lo várias vezes, mas sempre a sorrir.
Claro que toda a equipa de Investigadores de Acidentes, os meus chefes, colegas e outros que tal de vários Organismos Oficiais, se divertiram imenso a ver aquela falhada e mirabolante aterragem, sabendo que era eu o Comandante e resolveram tentar, só tentaram, subir ao avião quando os passageiros saíram. Mas de cima da pouca altura da escada do avião avisei-os que não queria ninguém a bordo e que fossem pregar para outra freguesia.
Resultou…
Saí rapidamente do avião munido da minha máquina fotográfica e fui para o Inferno dos destroços e fotografei tudo.
As pessoas, ainda surpresas, a meio do barranco. Um B 727 vai descolar na Pista 06 |
Parte de um brinquedo em cima de uma roda |
Estas fotos foram tiradas por mim a preto e branco.
E tratadas depois em Computador.
E tratadas depois em Computador.
Sem querer integrar-me no que via.
Aquilo não era verdade.
Aquilo não podia ser real.
De volta ao meu avião agora já descarregado limpo e de novo abastecido, descolámos para o 1º voo extra a Porto Santo. Toda a tripulação a tentar recompor o esqueleto após a aterragem que eu tão graciosamente proporcionara…
Pedi ao meu Co-Piloto (a quem peço desculpa por não me conseguir lembrar quem era) se não se importava que eu fizesse também a aterragem no Porto Santo para esconjurar os fantasmas do que acabara de fazer.
Ele percebeu-me e a coisa correu bem.
Foto recente do Aeroporto de Porto Santo. De "A Terceira Dimensão - Fotografia Aérea" |
Acabámos por almoçar por lá, num repasto difícil quanto a conversas, ambiente e bifes também.
Uns falavam das consequências para os familiares que tinham perdido o sustento da casa, outros de Seguros, etc., etc. e uma assistente chorava revoltada com a conversa. Como era possível falar-se de dinheiro e eles ali, mortos!
Entretanto a comida condizia com o estado de espírito. O meu bife era verde. Verde a sério. E o acompanhamento e tudo mais. Tudo verde. A sala onde comíamos era interior e mal iluminada por lâmpadas fluorescentes verdes, de luz muito verde. Verde a sério. Mas naquele dia já estávamos por tudo…
Depois deste complicado almoço descolámos de Porto Santo, agora num excelente dia de Sol, para uma nova aterragem no Funchal e sobrevoando outra vez os destroços que teimosamente ainda fumegavam!...
Desta vez o grande aviador que assim se autoproclamara em Lisboa tinha de provar que o era realmente.
E foi mesmo!
Quando as rodas tocaram, muito suavemente, no chão e no sítio regulamentar, já os speed brakes estavam em posição de actuar em simultâneo com o reverse dos reactores.
Foi tudo ao mesmo tempo e sem um único solavanco.
A pista era de algodão…
Pista do Funchal após a 1ª ampliação, 5 anos depois destes acontecimentos. |
E a tal comitiva de inquiridores, que me esperava avidamente para se banquetear com novo fracasso, foi convidada em bloco para subir as escadas e beber um café. Agora, sim, autorizados a entrar!
Felizmente não nos pediram para fazer o 2º voo a Porto Santo. Depois de tudo o que todos tínhamos passado nas últimas horas seria um pouco inseguro esticar tanto a corda.
Mas tê-lo-íamos feito, se fosse necessário.
Estávamos preparados e dispostos a tudo.
Não era um dia normal.
A minha tripulação de cabina neste voo inesquecível:
CC Ruben
AB Vanda Pires
AB Céu Mendes
CB Rui Quintas
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Veja a descrição do voo fatídico nesta história:
O acidente do Funchal - O voo TP 425
Veja uma história relacionada neste texto:
As Bruxas do Funchal
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Tirei várias outras fotografias que não quis colocar nesta história.
É no entanto um documento. Pertence à nossa História.
À História da Aviação Portuguesa.
Para que não se repita.
Para que as lições que se aprenderam não fiquem esquecidas.
Para as ver, click aqui.
(Actualizada em 11 de Janeiro de 2016)
Parabéns Gabriel, muito bem escrito!
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