A gestação de uma grande tragédia e o que se fez dela.
Dois T-37 e um F-86 em Monte Real.
09h20m da manhã do dia 4 de Junho de 1965.
Dois T-37 descolam da Base Aérea de Sintra numa missão de instrução de voo em formação.
Aviões T-37 da Força Aérea Portuguesa
Dois intrutores a ensinarem dois jovens pilotos da Academia Militar a voar em 2 aviões seprados, mas muito perto um do outro. Tão perto que são como um só. E na verdade formam uma unidade que tem um nome e tarefas próprias: uma "Parelha".
Duas parelhas a voar em formação, coisa que aprenderiam mais tarde, é uma "Esquadrilha". Uma só unidade também mas que em combate se pode sub-dividir. Passam a ser duas parelhas subordinadas ao comandante daquela esquadrilha.
Normalmente uma parelha executa funções de ataque enquanto a outra parelha forma uma unidade que protege os atacantes.
Sensivelmente à mesma hora, na Base Aérea de Monte Real, nos arredores de Leiria, descolo eu também, mas num F-86 matriculado 5340. Como o do desenho abaixo, de Carlos Gomes.
Descolei para uma missão muito diferente. Um tipo de voo que me realisava sempre bastante, como piloto. Um voo de treino de voo por instrumentos.
Neste caso ia fazer GCAs.
Iniciais de Ground Controlled Approachs.
Ou seja, iria fazer aterragens controladas por um homem, um controlador em terra, que me estava a seguir num écran de radar numa espécie de contentor com rodas, rebocável, completamente fechado, com uma única porta e sem janelas sequer, todo pintado de cor cinzento militar.
O que eu tinha de fazer era colocar o meu avião num ponto determinado durante a aproximação à pista (e só se podiam fazer aproximações na pista 18, apontada a Sul) e estabelecer contacto via rádio com o controlador do GCA, depois de libertado do controle da Torre da Base.
A partir daí, só me restava seguir as instruções que ele me ia dando ininterruptamente, com poucas respostas da minha parte mas as definidas para aquele procedimento de modo a garantir que o controlador sabia que eu o estava a ouvir bem.
As minhas funções, como é óbvio, não se limitavam a ouvi-lo. Eu tinha de pilotar o avião, controlar a velocidade, por o trem de aterragem em baixo, os flaps, verificando sempre todos os parâmetros de voo a cada momento… Enquanto seguia fielmente o que o controlador me mandava fazer.
E que instruções eram essas?
- Volte dois graus para a direita.
- Está bem na descida.
- Está ligeiramente acima do que devia
- Está bem na descida e na direcção.
E sempre assim enquanto me aproximava da pista no meio do nevoeiro e de noite caso fosse necessário, a 300km/h a pilotar obviamente à mão, sem piloto automático que não havia.
Era empolgante e exigia muita disciplina e uma condução suave do avião para evitar grandes desvios da rota até ao chão. Desvios esses que a partir de certos parâmetros implicavam o abortar da manobra por falta de segurança daí para a frente, caso o avião continuasse em direcção à pista.
E um desperdício dos escassos fundos da Força Aérea. Não havia dinheiro para muitos erros. Nem para pneus… Nestas aproximações por GCA não estávamos autorizados a tocar com as rodas na pista para evitar o desgaste dos poucos pneus disponíveis. Simulava-se a aterragem e partia-se para novo treino de GCA. Na última aproximação aterrávamos então normalmente.
Enquanto eu fazia o primeiro GCA na pista 18, virada na Rosa dos Ventos na direcção dos 180º, portanto apontado a Sul, em pleno pinhal de Leiria com o Mar á minha direita, os meus colegas dos T-37, após umas quantas manobras de aquecimento aos alunos, apontam então a Norte para executarem um breve voo em formação na direcção da minha Base Aérea onde a Torre de controle já os esperava, de acordo com o Plano de Voo entregue em Sintra na Torre de Controlo.
Todos os voos entre locais diferentes requerem um Plano de Voo e autorização prévia dos diversos intervenientes para coordenação das manobras de aterragem e descolagem mas também da ocupação do espaço aéreo que os separa.
Numa Base Aérea equipada com GCA é necessário haver um coordenador que permita a operação conjunta de aproximações em treino de GCA e as outras normais operações de voo com aviões que têm de aterrar e descolar para execução de outros serviços. Com esta coordenação a operação de uma Unidade é polivalente, permitindo todo o tipo de manobras com a devida segurança.
Só assim eu podia estar a fazer GCAs controlado por um homem metido dentro de um contentor em semi-escuridão, em quem eu confiava e tinha de obedecer no prosseguimento do meu voo em direcção à pista, enquanto todas as outras descolagens e aterragens se faziam no espaço de tempo em que eu não estava em aproximação.
Saiu bem o primeiro GCA…
Logo a seguir brinco com a pista, estou a centímetros do chão e não lhe toco.
Meto toda a potência do meu reactor, recolho o trem a voar ainda a meio da pista e recolho logo de seguida os flaps (que me ajudam a voar a baixa velocidade para as aterragens).
Verifico, com um rápido desvio do olhar para o indicador, se eles recolheram realmente e já para lá do fim da pista, ainda apontado a Sul, relativamente a baixa altitude ainda, olho em frente, a aldeia de “Amor” ali ao lado esquerdo e inicio a volta à esquerda que me levará mais rapidamente ao sítio onde vou reiniciar mais uma daquelas aproximações GCA que me davam tanto gozo.
A Base Aérea de Monte Real e os vizinhos |
Sou autorizado a prosseguir para Norte, nova volta para a esquerda depois de passar a aldeia de “Carvide”, despeço-me de novo da torre e contacto outra vez o radar.
Era o ritual normal para os treinos de GCA. Tinha mais dois para aperfeiçoar o procedimento.
Sou encaminhado de novo para a pista seguindo aquelas monocórdicas instruções:
- Volte dois graus para a esquerda.
- Está bem na descida.
- Está ligeiramente abaixo do que devia.
- Está bem na descida e na direcção.
E de novo a pista mesmo ali. Eram muito bons aqueles profissionais do radar! Colocavam-nos sempre no exacto ponto onde poderíamos aterrar.
Só posso aterrar na próxima. O último GCA planeado. Executo de novo os procedimentos de aborto da aterragem que não podia fazer, recolho o trem, recolho os flaps verifico se eles recolheram realmente para evitar que se danifiquem com o aumento da velocidade, caso não fiquem totalmente recolhidos.
Os meus olhos passam rapidamente do horizonte, o pinhal de Leiria já a aparecer debaixo de mim, para o indicador dos flaps e destes de volta para o horizonte, de novo.
E foi neste preciso momento que os vi. Mesmo, mesmo à minha frente!
2 T-37 em tamanho natural!
A voarem contra mim!
Reconstituição fiel do que vi naquele momento |
Não tive tempo, nem para pensar. Fui um espectador da minha própria morte com milésimos de segundo para poder reagir.
- Não faças nada!
- Não faças nada e passamos uns pelos outros!
Estas duas frases foram somente instruções instantâneas, relâmpago, que me lembro perfeitamente de terem transitado do meu cérebro para os músculos devidos.
Estava apontado ao exíguo espaço entre as pontas das asas inclinadas deles, exactamente ao centro e se nada fizesse...
Á minha frente, calculo que a 20 a 30 metros de mim, estavam os dois T-37 a voar em formação, já em início de fuga à colisão. Tinham-me visto no exacto momento em que eu fui verificar os flaps, com o Sol à minha frente, a voar para Sul.
Eles voavam para Norte, com o Sol por detrás deles, sob autorização da Torre de Controle de Monte Real para fazerem uma passagem baixa a grande velocidade sobre a pista executando, mais ou menos a meio, uma "ruptura" ou seja uma volta rápida para a esquerda, um de cada vez com um intervalo de 2 ou 3 segundos, uma figura sempre espectacular de se ver.
Quando me viram, estavam quase no princípio da pista, precisamente no momento em que eu acabava de executar o normal procedimento da recolha dos flaps, ainda sob controlo do radar...
Instintivamente iam a fugir um para cada lado e eu passei exactamente no meio.
Quando nos cruzámos eles estavam com os aviões ligeiramente inclinadas para se afastarem cada um para o seu lado, mas no momento inicial da manobra, o que deu para eu passar com as asas do meu avião por baixo das asas deles. As pontas a passaram a 2 ou 3 metros da minha cabeça. Á mesma altura.
Voávamos todos a cerca de 150 km/h.
Éramos 5 pilotos.
Eu deveria contactar a Torre logo depois de recolher os flaps. Não sei quando o fiz. Só me lembro de ver imensos telhados e torres de Igreja quase à mesma altura do que eu... De raiva e para arrefecer, sobrevoei deliberadamente os desgraçados vizinhos da Base a baixa altitude de um lado para o outro até conseguir voltar a ter capacidade de falar com a Torre. Não faço a mínima ideia que terras sobrevoei nem em que direcção.
Abandonei o treino, aterrei e em vez de ir para o estacionamento da Esquadra fui até ao edifício da Torre, abri a canopy e ao berros lá para cima chamei-lhes todos os nomes, dos mais escabrosos do baixo vernáculo em que a língua portuguesa é tão fértil.
Mais do que uma vez.
Até me saciar…
(Actualizada em 27 de Abril de 2014)
Olá meu caro Camarada de Armas. Chamo-me Felizardo (apenas de nome) e estava na BA5 neste dia. Por lá nos cruzamos desde o ínício de 65 até meados de 67. Creio mesmo ter-mos "cruzado" umas bolas sobre uma mesa no bar dos Cabos, que ambos eramos na altura: eu de armamento, mais "especialista" do Sidwinder. Bons tempos, boas recordações, tínhamos VINTE aninhos...recordo também (assisti) aquela fantástica e faiscante aterragem sem trem, com T33 na Ota. Um grande abraço e desejos de muita saúde. Mais tarde também vim a tirar o brevet e ainda fiz umas centenas de horas, e não fora um enfarte de miocárdio seguido de uma cirurgia cardio/toraxica, ainda hoje voaria. Até sempre, vamo-nos vendo por aqui, já que tb sigo o "Especialistas da BA12" embora não tenha ido ao Ultramar, mas não gosto muito da configuração daquele Blog já que não permite interactividade imediata do comentário que acho interessante.
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