PEDAÇOS DE VIDA - Mano Rei

 





 



      Olhão



Tornei-me “olhanense” em 1987 quando para lá me mudei sem armas e muito pouca bagagem.

Tornei-me olhanense pela forte empatia com o espírito das gentes com quem comecei a lidar. E foi com toda a espécie de gente. Desde o Manel da mercearia, que mais tarde me alugou uma casa, até ao Eusébio, um Mestre que manobrava a sua traineira como só as melhores gentes do mar o sabem fazer.

Uma das primeiras casas que quis alugar em Olhão, foi um negócio que não correu muito bem, aluguei depois a casa do Manel. Não correu bem só porque não me alugaram aquela casa, a que eu queria e que estava disponível, na altura.

Eu conto o que aconteceu.







Foi á porta da um magnífico pequeno prédio Arte Nova, dos muito poucos que Olhão ainda tem, o segundo á direita do Restaurante Kinkas, aqui na imagem do Google Earth, que o diálogo se desenvolveu.

Atravessava uma fase da minha vida que me levava a viver um recomeço. Provavelmente demonstrava alguma vivacidade menos contida o que levou a senhora em causa a desconfiar do personagem que tinha á sua frente. Não deve ter desgostado da pessoa em si, mas do que lhe pareceu que poderia estar por detrás de tal desempoeirado pretendente á casa que tinha para alugar. E como tal achou por bem dar-me uma nega.

E aqui entra o espírito olhanense que me começou a cativar.

- Não, não lhe alugo a casa. Mas espere aí. Espere aí, que eu já venho.

E entrou no prédio e subiu ao primeiro andar.

Admirado, resolvi aceitar o momento de espera e ver no que aquilo dava.

Esperei pouco. A senhora desceu pouco depois e disse.me:

Olhe, tome lá estas latas de atum e desculpe, mas não lhe alugo a casa.

Nas mãos fiquei com três ou quatro vulgares latas de atum, que comi, obviamente...



Olhão, para mim, teve mais ou menos este início. Terra de conservas, é bem de ver.

Quanto ao Kinkas, de cujos donos, o Kim e a sua simpática mulher me tornei amigo, comi ali grandes almoçaradas, naquela esplanada…

De início fazia-me alguma confusão entrar, por exemplo numa espécie de drogaria e loja de ferragens que houve logo no começo da rua das compras, a rua principal, a rua do Comércio. Há já muitos anos que esse estabelecimento não existe.

O empregado, de quem tive de ficar também amigo, não tive outro remédio, tratava normalmente mal alguns clientes.

Os diálogos, pareceu-me nas primeiras duas ou três vezes que lá fui, só podiam vir a acabar com um deles a saltar por cima do balcão e desatar às bofetadas ao outro.

Mas não. Acabavam sempre a tratarem-se por tu, o mais cordialmente possível, são 5 parafusos inox e um litro de aguarrás. São 10 escudos. E pronto…

Até que comecei eu mesmo a entrar naquelas guerras onde valia tudo de modo até a pôr os incautos clientes, menos apercebidos, quase a fugir da loja, também.

Outro dos grandes amigos que por lá fiz, um grande e saudoso amigo que já não está conosco, foi um passageiro meu, na Air Atlantis, embarcado na Alemanha e vestido de enormes bermudas coloridas. Tive que meter conversa com o avantajado passageiro, olhanense emigrante na Alemanha, que emanava boa disposição por todos os poros, naquela cabina cheia de gente agradada, que vinha de férias para o Algarve.

Como demonstrasse conhecer Olhão palmo a palmo e toda a gente, perguntei-lhe se conhecia alguém que tivesse uma casa de férias para alugar a um familiar meu.

Disse-me para o contactar (ainda não havia telemóveis) no dia seguinte.

-Sr Pinto, mas como?
- Toda a gente me conhece em Olhão! Pergunte pelo Pinto da Alemanha…

Foi o que fiz. No dia seguinte fui meter gasolina no meu Diane, na Galp do Clube Naval e perguntei ao homem da bomba se conhecia o sr. Pinto.

Pinto? Sim, ele chama-se Pinto.

Quem? O Pinto da Alemanha?

Conhecia, claro. 

Pinto da Alemanha tinha fugido num barco, nos anos 60, para os Estados Unidos. O barco foi primeiro a Hamburgo e aí avariou durante três meses. O Pinto pensou melhor e resolveu abandonar a ideia da América e ficou por lá.

Em Hamburgo.

Depois de muitas peripécias, acabou por se tornar proprietário de um Restaurante Argentino (é mesmo verdade!) que se tornou famoso e com selecta clientela e tudo!

Na casa do Pinto, em Marim, Olhão, eu vi fotos dele, nesse Restaurante, a cantar com o Frank Sinatra e outras celebridades que o visitavam regularmente. Além da magnífica carne que ele importava da Argentina para servir aos amigos, quando se reformou…

A minha casa não ficava longe da dele.

Podia contar-vos histórias sem fim de outros ilustres olhanenses que me encheram a alma de muita vida. Gente simples. Mas gente forte. Gente autêntica, principalmente.

A ideia desta história é dar-vos conta de dois ou três episódios que só olhanenses podiam materializar. Episódios que encontrei num livrinho:

- “História breve da Vila de Olhão da Restauração” de Antero Nobre. Uma edição da APOS – Associação de Valorização do Património Cultural e Ambiental de Olhão

Como sabeis, ou talvez não (e a culpa é dos olhanenses que pouco ligam ao caso) foi em Olhão que começou a revolta contra a invasão francesa de Junot.






A família Real tinha já deixado Lisboa rumo ao Rio de Janeiro, no dia 29 de Novembro de 1807, não sem antes o Príncipe Regente D. João ter, por decreto real de 26 desse mesmo mês, ordenado que o nosso povo recebesse com “uma generosa hospitalidade” os invasores.

Por todo o Algarve assim foi e quando no dia 23 de Fevereiro de 1808 as tropas do General Maurin entraram alegremente em Faro, bem recebidos, tiveram, logo em Abril, de mandar instalar em Olhão una guarnição militar para acalmar os ânimos daquela gente, os únicos no Algarve, que não viam com bons olhos tal invasão.

“Generosa hospitalidade”? Alguma vez!? Exército francês, aqui!?! Está bem, está…

Dois meses depois, a 16 de Junho, os olhanenses derrotam o exército de Napoleão junto á ponte de Quelfes, que foge a bom fugir.



Três dias após a revolta e depois de, finalmente, outras cidades se juntarem a Olhão, cria-se a Junta Suprema do Reino do Algarve, um Governo que assume a regência do Reino em nome do Príncipe D. João enquanto este não regressasse do Brasil. Para chefiar esse Governo foi nomeado o conde de Castro Marim, D. Francisco de Melo da Cunha de Mendonça e Meneses.

E para que a coroa, no Brasil, soubesse do que se estava a passar, que os franceses de Napoleão estavam de regresso á Gália com o Asterix, o Obelix e os franceses todos, de onde nunca deviam ter saído, (olhanenses não tinham nada a ver com romanos…) um homem do “lugar de Olhão”, nem vila era, Miguel do Ó, ofereceu um caíque para servir de correio marítimo para que se desse a boa nova ao Príncipe Regente.

O caíque, que ficou conhecido pelo nome de “Bom Sucesso, partiu para o Rio de Janeiro no dia 7 de Julho de 1808 pilotado por Manuel de Oliveira Nobre, o mestre Manuel Martins Garrocho e outros quinze tripulantes.



A réplica do Bom Sucesso, um barco com cerca de 20 x 5m     




Pararam no Funchal, para fazer aguada, no dia 14 de Julho, 19 anos depois da tomada da Bastilha…

Coincidências, digo eu…

Aí, o piloto do caíque deu de caras com um jovem que já tinha navegado de Lisboa a Macau, um tal Francisco Domingos Machado e convidou-o para os ajudar a dar com o Brasil, que aquilo fica longe mas nada que não se possa achar…numa viagem onde se navegou sem sextante nem mesmo cartas náuticas, sem nenhum mapa. Foram… Pronto! Em lado nenhum se diz se levavam, ou não, agulha de marear…

Chegaram. Chegaram mesmo á Baia de Guanabara no dia 22 de Setembro, dois meses e meio depois, sendo pessoalmente recebidos pelo Príncipe Regente, que os agraciou, a cada um, com um conto e duzentos mil reis. Além disso comprou-lhes o caíque por 6000 cruzados para o expor no Arsenal da Marinha da corte brasileira. Agraciou-os também com várias patentes militares, vários hábitos da Ordem de Cristo e um iate novo para voltarem a casa.

Elevou o lugar de Olhão a “Vila de Olhão da Restauração” com os mesmos direitos das mais notáveis vilas de Portugal e criou também o título de “Conde de Olhão”.

Mas não é só destes acontecidos que vos quero dar conta. Mas também não esqueçam que foi graças a isto que Olhão passou a chamar-se para sempre e com orgulho, “Vila de Olhão da Restauração”. Hoje é cidade. De uma Restauração já meio esquecida…



Painel de azulejos com a chegada do Bom Sucesso á Baia de Guanabara




Agora que estamos a viver a covarde invasão da Ucrânia por um país que em vez de lutar homem a homem, manda mísseis de cruzeiro bombardear civis, quero relatar-vos o que os olhanenses têm a ver com a Ucrânia.

Olhanenses com a Ucrânia?! Sim…com a Ucrânia!

Olhão, a partir de meados do século XIX, começa a ter um desenvolvimento grande através de trocas comerciais, normalmente contrabandeadas, está-se mesmo a ver…realizadas por via marítima, usando todo o tipo de navios, como chalupas, palhabotes, caíques e barcas. Os negócios faziam-se no Norte de África, Mar de Larache e pelo Mediterrâneo mais próximo.

Em 1864 tinha sido criada a Capitania do Porto de Olhão, que por sua vez tinha sido construído em 1857, por iniciativa de uma falida Câmara Municipal de Olhão.

A Alfandega já existia, desde 1842, não sei bem para quê, nem se conseguia arrecadar algum dinheiro… “com um quadro de pessoal privativo constituído de começo por um director, um tesoureiro, um verificador, um escrivão de receita, um escrivão de carga e descarga, um porteiro, um meirinho, quatro guardas de bordo, um patrão e três remadores” tal como diz o livro acima referido.

Palpita-me que os remadores serviam somente para levar o pessoal da Alfandega a banhos para a Culatra, mas posso estar enganado.

Com os negócios a prosperar, quase sempre fugidos aos impostos, com aqueles barcos vendia-se, fora de portas, peixe e fruta algarvios e compravam-se sedas, veludos, tapetes, bugigangas de valor, cereais e por aí fora que, sem passarem nunca pelos direitos aduaneiros, eram depois vendidos por todo o Algarve.

Porém, porém, a viagem de contrabando, olhanense, mais famosa que se conhece, relatada no livro, foi a que se realizou em 1871.

Convém sentarem-se bem para lerem o que vos vou relatar...

António da Silva Guerreiro, marítimo de Olhão e proprietário do caíque “Urso”, cismou, cismou, falou com uns quantos e tomou a decisão da sua vida. Havia de ficar rico! E ficou mesmo. Tornou-se um dos mais abastados proprietários do Termo de Olhão.

E o que fez ele?

O António da Silva Guerreiro conseguiu convencer uns quantos outros marítimos amigos, como o piloto António de Jesus e os tripulantes António da Silva Trindade, Manuel da Costa, José Martins Facada e Manuel João Gomes, para a sua causa.

Não sei se eram também pescadores, aliás mariscadores, ou se compraram somente, mas o que se sabe é que conseguiram umas toneladas de biqueirão que meteram em salmoura.
Tudo bem embalado, bem-acondicionado, meteram-se ao caminho, no “Urso”, Ria Formosa fora.



Urso era assim     



Foram até á ponta da Culatra junto á Ilha da Armona, entraram no Oceano Atlântico e rumaram a Leste, a caminho do Estreito de Gibraltar.

Passado o Estreito, continuando a rumar a Leste, atravessaram todo o Mar Mediterrâneo, sempre encostados ao Norte de África, passaram entre Malta e a Sicília, contornaram a Grécia, entraram no mar de Creta, subiram ao Mar Egeu, atravessaram o Estreito de Dardanelos, entraram no Mar da Mármara, passaram por Constantinopla, meteram-se pelo Estreito do Bósforo até irem parar ao Mar Negro.
Aí, finalmente (digo eu, que só escrever isto, cansa…) a chegar quase ao destino, já cá estamos! rumaram a Norte e foram ter... aonde?

Imaginem!


A Odessa…

Nesta viagem gastaram 31 dias.

Já para o final da viagem, nos Dardanelos e em Odessa, foram muitos os oficiais de marinha de diversas nacionalidades que visitaram, espantados, tão pequeno barco que de tão longe partira.

O que era Odessa nessa altura?

“O guia de Robert Sears  de 1855  para o Império Russo, dizia que "talvez não haja nenhuma cidade no mundo em que tantas línguas diferentes possam ser ouvidas como nas ruas e cafés de Odessa. A população, multicultural, é composta por russos, tártaros, gregos, judeus, polacos, italianos, alemães, franceses, etc."



      Odessa em 1850



Em particular, Odessa atraia os migrantes judeus porque a cidade estava localizada no extremo sul da área do Império Russo à qual os judeus estavam confinados. Isto significava que os judeus poderiam instalar-se lá com poucas restrições, tornando a cidade um destino atraente. “(texto de “ODESSA”, por Isabella Buzynski.

No final do século XIX, Odessa tornou-se a quarta maior cidade do Império Russo.


















Naquela época, Odessa foi abençoada, ou amaldiçoada, com muitos cafés. Em 1894, o jornal Proshloe Odessy relatou a existência de cerca de 55 cafés e casas de chá, 127 padarias e 413 restaurantes na cidade. 

Em meados do século XIX, Odessa tornou-se cidade-resort famosa entre as classes altas russas. Essa popularidade gerou uma nova era de investimentos na construção de hotéis e projetos de lazer.




Em Odessa, como esperavam aqueles olhanenses sabidos, venderam a muito bom preço aquela iguaria nunca vista por ali.

E o que fizeram ao muito, muito dinheiro arrecadado?

Investiram-no.

Compraram toneladas de trigo e artigos orientais que depois, no Reino dos Algarves, venderam, de novo, a muito bom preço…sempre a leste da Alfandega, claro.

A viagem de regresso demorou 45 dias. Suponho que por causa de algumas vendas que tivessem feito durante o caminho. Não sei.


Vamos agora ao último trecho desta história, que é a que define melhor o caracter das gentes de Olhão.

Mas antes é preciso dizer que Olhão foi dos primeiros Municípios portugueses a declarar-se Republicano. Logo no dia 12 daquele mês de Outubro de 1910, o Vice-Presidente em exercício da Câmara Municipal, Padre Francisco Inácio dos Reis, deu posse a uma Comissão Administrativa do novo Município Republicano.





Muito antes deste acontecimento histórico, o Rei D. Carlos, um homem dedicado ao mar, sabia perfeitamente onde escolher os seus colaboradores mais capazes e experientes para tudo o que dissesse respeito ás suas famosas e muito apreciadas actividades oceanográficas.

Por essa razão, naturalmente, era aos marítimos olhanenses que confiava tudo o que dissesse respeito á faina no mar.

No seu iate D. Amélia, por exemplo, o Mestre era o olhanense Trabucho, bem como a maioria dos tripulantes.

As galeotas reais eram remadas por olhanenses.

Durante as suas viagens de estudos oceanográficos, percorrendo amiúde as costas portuguesas, encontrava frequentemente pequenos barcos de pesca olhanenses a quem dava muitas vezes reboque. Ou convidava mesmo os pescadores a subirem a bordo para falar com eles, partilhando alguma coisa de comer enquanto trocavam impressões sobre o mar ou o pescado conseguido ou não e porquê.

Acudia-lhes em caso de mau tempo ou naufrágio, dando-lhes agasalho a bordo do iate, levando-os para casa, dando-lhes algum dinheiro para os compensar dos prejuízos.



      Iate D. Amélia IIII, navio Oceanográfico mas também vaso de guerra, mais tarde renomeado "Cruzador 5 de Outubro".



Naturalmente que os olhanenses olhavam para o Rei como um deles. Um homem do mar como eles. Um homem como eles. E como era isso que sentiam, era assim que lhe correspondiam.

As muitas “guerras” que os políticos e os jornais debitavam contra a Monarquia, não era coisa que os demovesse da empatia que sentiam para com aquele homem que era como eles, fosse ou não Rei. Um autêntico e simples marítimo...







Quando o Rei ia a Olhão era sempre recebido com muita alegria, com muita amizade. Como um deles.

Ao Rei, de visita á Vila e provavelmente sempre que o encontravam em alto mar, tratavam carinhosamente por 

“mano Rei”.




O seu assassinato deixou uma profunda tristeza nos olhanenses.


E é por estas, mas também por muitas outras razões, que nunca me canso de manifestar o meu apreço e saudade pelos meus manos olhanenses…



E a eles dedico hoje esta história.

No dia 27 de Março de 2022.

Dia em que o blogue fez 11 anos


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